A coletânea de HQs “Chapa Quente”, de Luís Silva, produzida independentemente pelo próprio autor, foi publicada em 2006. Na época, conheci o trabalho do Luís Silva por meio do dramaturgo e poeta João Pedro; “Chapa Quente” é formado pelas sete histórias de Silva adaptadas para o palco pelo João também em 2006. Essa relação entre HQ e teatro é importante, ainda mais quando se trata do teatro de Pedro, teatro contrário à dramaturgia burguesa; nesse contexto, os quadrinhos de Silva participam da mesma contestação e, para confirmar isso, vou me valer de “Super T”, a quarta história de “Chapa Quente”.
Há quadrinhos burgueses justificando as ideologias das classes dominantes? Não há dúvidas de que há quadrinhos burgueses; também não tenho dúvidas de sua maior expressão, faz algum tempo, ser os quadrinhos de super-heróis e, dentro desse gênero, os quadrinhos de Jack Kirby. Apesar dos imperialismos de Tin Tin ou do Tio Patinhas, nada se compara ao neoliberalismo do Homem de Ferro e seu tráfico de armas, à ideologia tradição-família-propriedade do Capitão América, ao conservadorismo puritano dos X-Men, ao fascismo do Justiceiro. Nos quadrinhos americanos, basta comparar Robert Crumb ou os irmãos Hernandez com Jack Kirby para verificar a crítica ao modo de vida burguês dos primeiros indo de encontro às ideologias justificadas pelos donos da Marvel.
Silva está do lado de Crumb e dos Hernandez. Para mostrar isso em seus quadrinhos, “Super T” é uma HQ ideal, pois justamente nela os super-heróis são questionados; além disso, sua distribuição de cores explicita as diferenças entre alienação e resistência. A primeira página é colorida, nela um rapaz acende o baseado e começa a viajar em ser super-herói, o Super T.
Enquanto isso, nas páginas seguintes, as cores são substituídas pelo traço PB e são narradas as desventuras de um casal perdido durante a noite em bairros de população de baixa renda; trata-se da alta burguesia, o casal dirige uma Mercedes. A dupla é assassinada durante um assalto; o rapaz, porém, é filho de narcotraficante rico e influente, promotor de verdadeiras chacinas, quem termina assassinando o assassino do filho. A cor retorna parcialmente na hora das chacinas cobrindo a página de vermelho até retornar totalmente na retomada da cena do maconheiro, que já não se lembra mais do “Super T”.
O vermelho, semelhantemente ao sangue, substancializa a realidade social no clímax da violência durante os assassinatos, mas ela se perde nas divagações do Super T, que não combate crime nem em sua imaginação, esquecido de si mesmo, alienando-se antes em sua comodidade de classe do que pelo uso da maconha. Nesse contexto, as drogas não cumprem o papel de abrir as portas da percepção e promover estados alterados de consciência; elas apenas são mais um produto inserido no mercado burguês e nos crimes do capitalismo.