PL da Dosimetria é anistia branda que fere a Constituição e ajuda criminosos

Na próxima quarta-feira (17), o Senado poderá começar a análise do chamado “PL da Dosimetria”, conforme pautado pelo presidente Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Na semana passada, parecia que a matéria teria vida fácil após ser resgatada de supetão pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) e ser aprovada pela maioria da Casa. No entanto, sinais mais recentes indicam haver obstáculos que podem dificultar a segunda fase da sua tramitação.

Aprovado de maneira sub-reptícia em plena madrugada da quarta-feira (10), o projeto é a aposta da direita para emplacar uma espécie de anistia mais branda a Jair Bolsonaro (PL) e demais condenados pela trama golpista e pelo 8 de Janeiro, depois que a tentativa de enfiar o perdão explícito goela abaixo dos brasileiros se mostrou inviável.

Desde que o PL saiu da Câmara, os apoiadores de Bolsonaro tentam atropelar o processo e fazer com que a proposta seja aprovada de maneira açodada no Senado, antes que termine o ano legislativo. Ao que tudo indica, essa tem sido a tática do presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP).

Segundo o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), senador Otto Alencar (PSD-BA), Alcolumbre não teria consultado todos os líderes sobre a tramitação do projeto e pretendia colocá-lo diretamente para votação sem passar pelo colegiado, um dos mais importantes do legislativo.

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À GloboNews, Alencar declarou, nesta segunda-feira (15), que “na sessão de terça-feira, o presidente Davi Alcolumbre foi explícito e falou de um acordo, feito na Câmara, com o Senado, com a participação de todos os líderes. Aí que eu não entendi. O meu líder, senador Omar Aziz, não participou. E outros líderes não participaram. Foi quando eu intervim e disse que precisava passar pela CCJ”.

No mesmo dia, o senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que também compõe a CCJ, disse ao UOL que deverá apresentar um voto de rejeição ao projeto por discordar de diversos pontos ali expostos. “Eventualmente, alguma redução para quem participou apenas dos danos materiais do 8/1, que você não tem prova de planejamento, preparação, financiamento. Separando o pequeno do grande”, declarou.

Vieira — que foi o relator do PL Antifacção no Senado — também chamou atenção para um fato que tem sido levantado por juristas e especialistas da área: tal como saiu da Câmara, o projeto poderia beneficiar condenados por outros crimes que nada têm a ver com a tentativa de golpe.

“É a segunda vez que você tem textos vindos da Câmara dos Deputados com o objetivo declarado de atender a determinado fato e, quando você vai ver o texto, na realidade muito mais coisa é atingida”, criticou Vieira.

A base governista também estuda medidas para barrar a iniciativa. Segundo o líder do PT no Senado, Rogério Carvalho (SE), o governo deverá pedir vista e adiar a votação. Ao mesmo tempo, os petistas articulam outras saídas com senadores aliados.

Outro elemento a dificultar a vida do PL da Dosimetria é a mobilização popular. Pelas ruas e pelas redes, o rechaço tem sido grande e sua maior manifestação veio dos grandes atos realizados no final de semana, que reuniram milhares de pessoas em diversas capitais, com destaque para Rio de Janeiro e São Paulo. Os protestos tinham como alvo a proposta de revisão das penas e a anistia, entre outras pautas.

“Estamos aqui para mais uma vez dizer que nós não aceitamos nem o alívio, nem o perdão, nem uma anistia disfarçada de dosimetria para quem tentou golpear a democracia brasileira”, disse a deputada do PCdoB, Jandira Feghali, no ato em Copacabana.

Para ela, a Câmara cometeu um crime ao aprovar a matéria e, agora, “o Brasil inteiro tem de se dirigir ao Senado, onde nós poderemos derrotar essa dosimetria. E se assim não for, irá para as mãos do nosso presidente Lula, que terá a responsabilidade de vetar ou não esse projeto”.

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O PL da Dosimetria pode, ainda, suscitar ações de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF), em que pese haver especulações de que ministros da Corte teriam concordado com a tramitação de uma medida de redução de penas.

Questões técnicas

Mas, se o PL da Dosimetria é imoral do ponto de vista político, é uma aberração também do ponto de vista técnico-jurídico, por razões diversas.

Há poucos dias, como já colocado, o Senado aprovou uma nova redação do Projeto de Lei Antifacção, proposto pelo governo e desfigurado na versão aprovada na Câmara. Retomando pontos da matéria original do Executivo e acrescentando novos itens trazidos pelos senadores, o texto, entre outros pontos, endurece as penas e dificulta a progressão para condenados que fazem parte do crime organizado (tráfico ou milícia).

Agora a direita, tão “ciosa” da segurança dos cidadãos de bem e que costuma vociferar que “bandido bom é bandido morto”, resolveu defender o contrário: facilitar a vida dos que cometeram crimes (no caso, contra nada mais, nada menos, do que a democracia e as instituições nacionais), possibilitando benefícios também para os criminosos comuns.

O líder do governo Lula no Congresso Nacional, senador Randolfe Rodrigues (AP), não deixou a contradição passar em branco e ironizou a posição dos bolsonaristas. Em reunião da CCJ que aprovou o PL Antifacção, destacou: “Eu espero que, nesta mesma CCJ, daqui a pouco, ninguém apresente projeto para reduzir pena de quem comete crime. Eu não acredito que esta CCJ vai querer debater redução de pena para criminoso. (…). Eu quero a mesma veemência para não aceitar qualquer projeto de redução de pena, da tal de dosimetria, ou qualquer que seja”.

Embora o relator do PL na Câmara, Paulinho da Força (Solidariedade/SP) diga que não há “nenhuma possibilidade de este texto beneficiar crime comum”, diversos especialistas no tema discordam.

Um deles é o professor de Direito Rodrigo Azevedo, da PUC do Rio Grande do Sul (RS). À Agência Brasil, ele explicou que “na prática, ela (a proposta) beneficia sim criminosos comuns, pois padroniza o marco básico de progressão em um sexto da pena, reservando percentuais mais altos apenas para crimes violentos e hediondos. Isso representa um afrouxamento relevante em relação ao sistema atual, que exige 20% para primários e 30% para reincidentes, mesmo em crimes sem violência”.

Outro ponto grave da matéria está no fato dela favorecer especificamente um grupo de pessoas, o que afronta pilares básicos da Constituição e do arcabouço legal brasileiro, entre os quais o da impessoalidade.

Em artigo para o site Consultor Jurídico, os professores Fernando Hideo Lacerda, da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, e Pedro Estevam Serrano, do mestrado e doutorado da Faculdade de Direito da PUC-SP, criticam tecnicamente o PL da Dosimetria e apontam ao menos duas inconstitucionalidades: a violação ao princípio da separação e independência dos poderes e o desvio de poder.

Sobre este último aspecto, escrevem que “a competência legislativa deveria ser exercida para formular normas gerais e impessoais, mas foi utilizada para proteger indivíduos condenados por atentados contra a democracia e reverter, por via normativa, o resultado de processos penais específicos”.

Eles continuam explicando que “essa contaminação da finalidade transforma o PL da Dosimetria em um ato de abuso de poder legislativo: a lei é instrumentalizada não para reger a coletividade, mas para intervir no destino jurídico de beneficiários predeterminados. Trata-se, portanto, de um abuso de poder mediante desvio da própria função legislativa — e, por isso, de uma modalidade grave de violação constitucional”.

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