No último dia 23 de abril, o PL 1648/2023, que obriga profissionais de saúde a notificarem casos suspeitos de aborto provocado, ganhou novo fôlego no Senado Federal. Após permanecer parado desde dezembro de 2024 na Comissão de Direitos Humanos (CDH) aguardando relator, o senador Jorge Seif (PL-SC), conhecido por suas posições contrárias ao aborto, foi finalmente designado.

A escolha de Seif – crítico declarado do direito ao aborto – acende um alerta para os riscos de avanço dessa proposta, que, se aprovada, aprofundará a criminalização de mulheres e a perseguição aos profissionais de saúde, já que médicos, enfermeiros e instituições de saúde que não denunciarem mulheres sob suspeita poderão sofrer punições administrativas e até mesmo penais.

O que propõe o PL 1648/2023

O projeto, de autoria do senador Magno Malta (PL-ES), impõe a notificação compulsória às autoridades de saúde e policiais de qualquer aborto que pareça “suspeito” de ter sido induzido, transformando profissionais de saúde em delatores.

Trata-se de mais uma investida da bancada conservadora para restringir direitos reprodutivos no Brasil. Ao impor a notificação compulsória, mesmo em situações ambíguas (como abortos espontâneos ou complicações obstétricas), a medida pode levar a um aumento da judicialização da saúde, da subnotificação de complicações e, consequentemente, da mortalidade materna por abortos inseguros. Além de violar princípios éticos fundamentais, como o sigilo médico, e desencorajar mulheres a buscarem atendimento por medo de represálias, reforçando um cenário de terror e morte.

A medida é extremamente perigosa. Mulheres que sofrem complicações de abortos inseguros podem evitar buscar atendimento médico com medo de serem presas, aumentando não só a subnotificação – o que é gravíssimo, visto a necessidade de dados para elaborar políticas de saúde -, mas principalmente os riscos de hemorragias, infecções e mortes evitáveis.

Por outro lado, a subjetividade do termo “autoviolência” pode levar à notificação de casos em que a gravidez foi interrompida naturalmente, mas sob suspeita de negligência ou comportamento de risco, em especial quando se tratar de mulheres pobres e negras.

Sem falar na quebra do sigilo médico-paciente, essencial para garantir que mulheres busquem atendimento sem medo de represálias, e na punição de profissionais de saúde que não denunciarem, criando um clima de intimidação nos hospitais. Nem é preciso dizer, portanto, que a proposta fere os direitos humanos e aprofunda a violência institucional contra mulheres.

O projeto da extrema direita: criminalizar totalmente o aborto

O PL 1648/2023 não é um caso isolado. Faz parte de uma estratégia mais ampla da bancada conservadora e religiosa para retroceder nos direitos reprodutivos das mulheres. Outros projetos semelhantes, como o “Estatuto do Nascituro” (que equipara o feto a uma pessoa com direitos plenos) e leis estaduais que dificultam o aborto legal, seguem a mesma lógica de controle sobre as mulheres, transformando-as em criminosas por exercerem autonomia sobre seus corpos.

Magno Malta (PL-ES), autor do projeto, tem um histórico de posições extremamente conservadoras em relação aos direitos reprodutivos. Foi o proponente da PEC 29/2015, que propunha a inviolabilidade da vida desde a concepção, e já se manifestou diversas vezes contra o aborto mesmo em casos de estupro, risco de morte para a gestante e anencefalia fetal.

O relator designado, Jorge Seif (PL-SC), também é conhecido por suas posições contrárias ao aborto, criticando publicamente as resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) que orienta médicos a não denunciarem mulheres que abortam, e do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que estabelece diretrizes para o aborto legal em meninas vítimas de estupro, demonstrando nítida disposição em criminalizar ainda mais a prática.

Silêncio cúmplice e conivência do governo

Até o momento, o governo Lula não apenas se omite diante do PL 1648/2023, como também reforça, na prática, a marginalização dos direitos reprodutivos. Ministérios que deveriam estar na linha de frente dessa defesa – como Saúde, Mulheres e Justiça – mantêm-se em um silêncio ensurdecedor, mesmo diante de uma proposta que ampliará a perseguição às mulheres e elevará os índices de mortalidade materna. Essa inação não é casual: infelizmente, o governo tem tratado os direitos das mulheres como moeda de troca em suas negociações com o centrão e a bancada conservadora, em nome de uma suposta “governabilidade” que sacrifica conquistas históricas.

Mais do que se opor a esse projeto retrógrado, o governo federal deveria assumir uma posição nítida em defesa da descriminalização e legalização do aborto. No entanto, o que vemos é justamente o contrário: uma recusa em promover campanhas públicas que eduquem a população sobre os riscos da criminalização e a urgência da autonomia reprodutiva. Enquanto o Executivo se curva às pressões reacionárias, mulheres continuam morrendo em abortos inseguros e sendo criminalizadas por decisões sobre seus próprios corpos.

A omissão diante dessa ofensiva não é neutra – é conivência. E enquanto o governo prioriza acordos políticos em vez de direitos humanos, a vida das mulheres segue sendo tratada como negociável.

Tramitação e possíveis desdobramentos

O PL 1648/2023 já passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e agora está na Comissão de Direitos Humanos (CDH). Se aprovado ali, seguirá para outras comissões, como a de Assuntos Sociais (CAS), antes de ir ao plenário. Dada a composição conservadora do Senado, há risco real de avanço do projeto, especialmente porque, como já dissemos, o governo federal não se posicionou até agora contra essa ofensiva.

Diante desse cenário, é fundamental a organização contra mais esse ataque aos direitos das mulheres e à saúde pública. Seu objetivo não é proteger vidas, mas controlar, punir e aprofundar a criminalização de quem recorre ao aborto – muitas vezes em situações extremas.

Os movimentos sociais e feministas, os profissionais de saúde e organizações da classe trabalhadora – como sindicatos e associações – devem se colocar veementemente contra esse projeto de lei, exigir do governo um posicionamento contundente contra essa iniciativa reacionária, e do Congresso seu imediato arquivamento.

A legalização do aborto é uma questão de saúde pública e justiça social. Qualquer retrocesso nessa pauta representa um passo atrás na luta pelos direitos das mulheres trabalhadoras.

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Last Update: 05/05/2025