O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou na terça-feira 7 um reajuste da previsão de crescimento do PIB do ano passado, dos 3,3% estimados em novembro para 3,6%, e de déficit de 0,1% nas contas públicas, dentro da projeção do governo e dos limites do arcabouço fiscal. A arrecadação federal atingiu 209,2 bilhões de reais em novembro, 11,2% acima dos 188,1 bilhões do mesmo mês de 2023, e um total de 2,4 trilhões entre janeiro e novembro, o segundo melhor resultado desde 1995. Um efeito do crescimento da economia e de novos impostos, como aquele sobre fundos de investimento exclusivos, restritos a famílias e grupos de milionários, e a recuperação de receitas tributárias perdidas em governos anteriores com isenções e benefícios indevidos.

As montadoras atingiram recordes de vendas e de investimentos. Os resultados econômicos são relevantes, ainda mais quando se leva em conta que a inflação, apesar de ter ultrapassado o teto da meta, continua sob controle, assim como o gasto público. O oposto, portanto, do cenário descrito nas atas do Banco Central e nas manifestações do sistema financeiro, em especial no segundo semestre do ano passado, como retrataram as manchetes alarmistas do noticiário econômico no fim do ano. O País não está à beira do precipício em consequência da “gastança” do governo nem à beira de um descontrole inflacionário, apesar de ser esta a toada cotidiana da mídia e das declarações de economistas vinculados ao mercado. A versão de descontrole e alto risco impôs-se, entretanto, e a expectativa inicial de um fim de 2025 com juros e inflação em queda foi engolfada pela especulação desenfreada com o dólar, em especial no mês de dezembro.

Destaca-se, nessa mudança de ventos, o papel desempenhado pelo Banco Central sob a batuta de Roberto Campos Neto, pródigo em declarações fora do protocolo e avessas à chamada liturgia do cargo, todas proferidas na mesma direção, a de caracterizar uma situação de risco e de alarme quanto ao gasto público e à inflação. A profecia, gravada a ferro e fogo nas atas do Copom, tornou-se realidade e é nesse ambiente de profundo descompasso entre a situação objetiva e a fantasmagoria da crise fiscal imaginária que o novo presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, terá de atuar.

O mercado, no País e no mundo, está de olho nas primeiras ações do presidente do BC

A proeza do déficit fiscal zero e o compromisso de cortes de gastos do governo em mais de 70 bilhões de reais não mereceram uma linha de reconhecimento por parte das instituições financeiras, empenhadas em não recuar nem 1 milímetro na pressão brutal por uma austeridade fiscal sem-fim. A histeria por conta de um presumido, mas falso, risco fiscal elevadíssimo prestou-se à perfeição, no entanto, para manter o governo encurralado diante da muralha do dólar acima de 6 reais e desse modo conservar intacto o poder do sistema financeiro na transição da presidência do BC, de um lacaio para um profissional de perfil técnico, independente de fato e comprometido com o interesse público.

Espaço existe para a nova direção da instituição melhorar a situação delicada do momento, nas esferas monetária e cambial, mas é um terreno minado, mostra a análise de economistas ouvidos por esta revista. “Todo o mercado financeiro, nacional e estrangeiro, está de olho nas primeiras ações do novo presidente do Banco Central. Ele terá de se mostrar mais realista do que o rei, caso não queira ser qualificado como alguém que não preza pela autonomia do BC e não merece confiança. Galípolo começa bastante pressionado e sabe disso. Imagino que ele vá cumprir o que a ata do último Copom sinalizou: duas novas altas de 1 ponto porcentual em cada uma das próximas reuniões do órgão colegiado”, aposta o economista Lício da Costa Raimundo, professor da Facamp. É preciso entender, prossegue o acadêmico, que o BC brasileiro lida com um arranjo institucional que o coloca em um corner: liberdade quase plena de movimentação de capitais de curto prazo, independência formal e saldo negativo de 15,9 bilhões de dólares no balanço financeiro do País. Essa situação faz com que o novo presidente do BC não tenha margem de manobra. Terá de dançar conforme a música.

Nem o robusto saldo comercial brasileiro do ano passado, de 74,5 bilhões de dólares, sublinha o economista, será suficiente para Galípolo cogitar nos primeiros meses políticas que destoem da lógica institucional à qual está amarrado. Qualquer palavra fora do lugar será pronta e severamente punida pelo mercado, que tem as rédeas dos dois preços mais importantes para uma economia como a brasileira, a taxa de juros e a taxa de câmbio. Apesar disso, passada a tormenta inicial, e a depender do cenário externo, caso ocorram maior calmaria na relação Estados Unidos–China, fim da guerra na Ucrânia, fim do massacre israelense em Gaza e as tensões que isso gera em torno da geopolítica do petróleo, o novo presidente do BC talvez tenha liberdade para propor uma política mais ousada de corte nos juros. “Duvido, no entanto, que será em sua gestão que as questões mais decisivas serão enfrentadas, tais como a discussão das formas necessárias de organização da moeda e do crédito em uma economia em desenvolvimento”, prevê Raimundo.

Houve alta nas vendas e na produção de automóveis. Haddad anunciou números positivos da economia, mas o mercado não dá o braço a torcer – Imagem: iStockphoto e Miguel Schincariol/AFP

“Galípolo tem de navegar dentro do possível, onde dá para ir. Alguns temas são impossíveis de enfrentar, sob pena de se criar uma elevada turbulência e aumento da pressão da Faria Lima. Mexer no Copom, por exemplo, não dá”, afirma o economista Saulo Abouchedid, professor da mesma faculdade. Isso implica não atuar de uma forma que aponte o Comitê de Política Monetária dividido, como ocorreu em maio, quando a taxa Selic caiu de 10,75% para 10,5%, em uma votação rachada, com cinco votos por um corte de 0,25 ponto e quatro votos por um corte de 0,5. A curva de juros reagiu com uma forte alta de quase 20 pontos-base. “É importante observar que não se trata de que a visão de Roberto Campos Neto é idêntica àquela predominante no mercado. É mais que isso. Ele reforçava, e acentuava, o diagnóstico na direção de uma crise fiscal que não existe. Não dá, portanto, para Galípolo ir contra, terá de dialogar e tentar, ao mesmo tempo, comer pelas beiradas, com reformas mais micro.”

Entre as situações a ser administradas pela nova direção do BC sobressaem, segundo Abouchedid, as contas em dólar. O Brasil, ressalta o economista, tem avançado na dolarização de maneira perigosa. As empresas estão se endividando mais na moeda norte-americana. Além disso, por meio de contas bancárias, cidadãos também conseguem especular. Há um processo de dolarização da economia que leva a um aumento dessa especulação. “Acredito que isso é algo que o novo presidente do BC consegue revisar, a lei cambial aprovada na gestão do Campos Neto, colocando certas travas. Seria uma vitória”, sugere o professor. É preciso ainda acompanhar as empresas endividadas em dólar e usar swap cambial. “Essa queima de reservas promovida por Campos Neto foi um absurdo. É falta de leitura de política cambial. Não estudou. A venda de dólares não baixou a cotação porque usou os instrumentos errados”, diz ­Abouchedid. Em dezembro, o BC vendeu 33,3 bilhões de dólares em reservas, 7,1% do total, na tentativa de aplacar a especulação com a moeda estadunidense.

É possível influenciar as posições no mercado cambial, desde que se utilizem os instrumentos certos, que são, segundo o economista, uma reforma regulatória, o uso de swaps cambiais e a contenção do carry-trade, mecanismo muito utilizado por investidores profissionais para lucrar com a diferença entre a taxa de juros de dois países, com forte impacto no câmbio, ao mexer no preço do dólar diante do real.

Passada a tormenta inicial, e a depender do cenário externo, Galípolo talvez tenha alguma margem de manobra

“Vejo que teremos um ganho qualitativo na gestão do BC. Galípolo tem uma formação eclética e sofisticada em economia, além de experiência prática no mercado financeiro. Isso lhe dá condições de conduzir, ao lado dos demais integrantes da diretoria e do corpo técnico, uma política monetária e cambial menos dogmática, mais funcional e adequada às necessidades do País, desvinculando-as da dependência do pensamento dominante no mercado financeiro e com repercussão na mídia”, destaca o economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor da PUC de São Paulo.

Por um lado, prossegue Lacerda, o curtíssimo prazo está limitado pelas circunstâncias econômicas e políticas. Não há “bala de prata” nem atalhos. O caminho para as mudanças deve ser pavimentado de forma gradual e segura. Sempre em consonância com a gestão da política fiscal por parte da equipe econômica do governo federal.

Há, entretanto, espaço para romper paradigmas limitadores, sem gerar rupturas bruscas ou traumáticas, sublinha o economista, que aposta na capacidade de comunicação da nova gestão do BC, para tornar mais claros os avanços e limites, assim como ampliar a interlocução com os agentes econômicos, lembrando que não se deve restringir ao mercado financeiro, mas também abranger os empresários, empreendedores, trabalhadores, mídia em geral e comunidade de economistas e especialistas econômicos. “Isso trará um ganho imenso para a economia, na medida em que abarque novas visões e entendimentos, não apenas na captura das expectativas dos agentes econômicos, mas do entendimento do diagnóstico e medidas do Banco Central”, estima Lacerda.

O dólar alto pressiona os preços internos, efeito refletido, entre outros, nos açougues – Imagem: Renato Luiz Ferreira

Além de pressionar o Banco Central, o dólar caro põe a economia na defensiva. Até setembro de 2024, o estoque de dívida em dólar das principais empresas brasileiras era de, aproximadamente, 353 bilhões, 69 bilhões de dívidas de curto prazo e 284 bilhões de longo prazo. Isso corresponde a, aproximadamente, 40% do endividamento total dessas empresas. “Em 2024, o dólar avançou 27% em relação ao real, o que significa um tremendo impacto no balanço para as empresas brasileiras”, ressalta Raimundo. É importante notar, acrescenta, que, mesmo sem um impacto financeiro imediato, pois a maior parte da dívida em dólar vence no longo prazo, há um efeito no balanço, pois é necessário apurar em reais o impacto do câmbio mais alto. Isso piora os índices de solvência das empresas brasileiras “em um momento extremamente delicado, dada a alta dos juros”.

O BC elevou a Selic em 1 ponto na última reunião do Copom e prometeu aumentá-la em mais 1 ponto porcentual em cada uma das duas próximas reuniões, de janeiro e março de 2025. “Essa combinação fragiliza financeiramente as empresas brasileiras de maneira bastante contundente. Mesmo para aquelas que buscaram proteção da elevação do dólar, o impacto da alta do endividamento em reais apurado em seus balanços é inevitável, e torna mais caro endividar-se. Um péssimo primeiro trimestre avizinha-se, com elevação do desemprego e cancelamento de investimentos, com efeitos negativos sobre a produtividade da economia e o crescimento.”

Esse deve ser o cenário, a menos que o dólar recue no primeiro bimestre, o que depende quase exclusivamente do humor dos investidores estrangeiros. Esse humor quase nada tem a ver com o lado fiscal da nossa economia, que se tornou, nas últimas décadas, uma economia cada vez mais reflexa, sublinha o economista. O processo de enfraquecimento das cadeias industriais no Brasil aprofundou a dependência da economia aos acontecimentos dos mercados externos. “Esse processo, somado à desindustrialização e à abertura financeira, levou à perda quase total da autonomia do País na capacidade de definir as variáveis-chave de toda economia, a taxa de juros e a taxa de câmbio”, enfatiza. A economia brasileira voltou a ser reflexa como foi até os anos 20 do século XX, cada vez mais dependente dos humores dos investidores internacionais para definir as possibilidades de crescimento, geração de emprego e renda. “Só nos livraremos de uma conjuntura extremamente adversa neste ano se o dólar recuar, algo possível se a administração Trump se mostrar mais branda do que ele prometeu e acalme os mercados externos. Penso que esse cenário de recuo do dólar não deve ser descartado”, ressalta o professor.

Mexer na composição do Copom é um dos temas intransponíveis, sob pena de se criar uma elevada turbulência

O fundamental é a dívida de curto prazo, que vence agora, neste ano, alerta o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp. Grandes empresas em geral têm um bom planejamento e fazem proteção cambial, que tem custo financeiro. Quanto àquelas que não fizeram proteção cambial, as situações são variadas e é preciso examinar o peso do dólar tanto na receita quanto nas despesas, em cada setor. As empresas mais afetadas são as de serviços, que não têm nenhum tipo de receita atrelado à moeda norte-americana, mas têm custos de equipamentos ou insumos dolarizados. Ou aquelas mais importadoras do que exportadoras, como parte da indústria. Se estiverem endividadas em dólar, mas não contarem com proteção cambial, sofrerão impacto mais significativo.

“A previsão no começo do ano passado era de sucessivas reduções dos juros. As expectativas do mercado, do governo, são de que chegaríamos neste momento com as taxas em queda. Os agentes econômicos projetaram, portanto, um endividamento no médio e no longo prazo com tendência de queda da taxa de juros e isso pode ter gerado alavancagem excessiva em algumas empresas e setores”, destaca Ruas. É a soma da nova condição de juros e câmbio que aponta para uma piora neste ano, com exceção de compromissos de longo prazo, de investimentos alicerçados em contratos de concessão, ou obras em curso. O indicador que deve piorar mais é o do investimento, que tende a afetar o crescimento em 2025, a conferir, dadas as incertezas neste primeiro semestre.

“A primeira questão a ser considerada é se o nível atual do dólar, acima de 6 ­reais, será mantido”, observa Lacerda. Houve um estresse de fim de ano com a combinação de vários fatores que tendem a não se repetir em 2025. Além da especulação quanto à questão fiscal, a valorização do dólar no mercado internacional e a demanda pela moeda no mercado doméstico, houve também o efeito das posições tomadas no mercado futuro cambial, ressalta o professor da PUC de São Paulo.

Um dos poucos efeitos positivos da elevação da moeda norte-americana é o incremento das exportações brasileiras – Imagem: Redes Sociais/Portos Rio/Nobrudrone

A Selic mais elevada encarece o custo do crédito para as empresas e isso terá impacto negativo tanto nos resultados dos balanços quanto na capacidade de investimentos. O risco de aumento da inadimplência é real, assim como o das recuperações judiciais. “Mais grave que a desvalorização do real é a volatilidade, a instabilidade e incerteza quanto ao nível da taxa de câmbio, o que dificulta o cálculo econômico e as decisões não só de comércio internacional, mas de produção local e investimentos”, acentua o economista.

Outro aspecto a ser considerado, diz Lacerda, é que muitas empresas possuem um “hedge natural”, por serem exportadoras, ou terem operações no exterior. Assim, se a desvalorização cambial de fato se consolidar em um patamar mais próximo de 6 do que de 5 reais, vigente no ano passado, isso também tem impactos positivos sobre as receitas externas, e será fundamental para incentivar a produção e exportação da manufatura de maior valor agregado. •

Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pisando em ovos’

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Last Update: 09/01/2025