Em edição pretérita, a manchete que edulcorava a capa da Folha de S.Paulo alertava os leitores: EUA e China, as duas maiores economias do mundo, mantêm trajetórias explosivas para o aumento de suas dívidas públicas. A norte-americana supera os 100% do PIB, e a chinesa deve alcançar a mesma marca até o fim do ano – hoje, ela está em 96,3%. Em ambos os casos, houve forte aceleração recente, com tendência de alta.
Diante do avanço das dívidas públicas nas maiores economias do planeta, a reportagem apontava ameaças ao resto do mundo. A pressão sobre os Bancos Centrais levaria à manutenção dos juros elevados, a fim de atrair financiadores de suas dívidas. Caso os periféricos não façam a lição de casa, os dois gigantes sugarão dinheiro do mundo para rolar débitos.
Comparar o sistema financeiro dos EUA com o da China ignora as peculiaridades de cada um. O sistema chinês é fechado e com forte controle cambial. Todas as variáveis monetárias são monitoradas pelo BC, bem diferente do norte-americano, no qual o fluxo de capitais é totalmente livre. O People’s Bank of China não segue um regime de metas de inflação e tem taxa de juros baixíssima, sobretudo quando comparada aos juros praticados nos EUA. A receita inclui moeda desvalorizada em relação ao dólar, taxa de redesconto de 2,65% ao ano e taxa básica variando entre 3,1% ao ano e 3,6%.
Com 3,2 trilhões de reserva, a China é, na verdade, credora líquida em dólares
Desde o segundo semestre do ano passado, o BC chinês tem reduzido a taxa de depósito compulsório e o redesconto para os bancos. Atualmente, 80% do setor bancário chinês é formado por instituições públicas, que financiam as províncias e têm autonomia para gastos e financiamentos.
A China tem deflação e, portanto, há espaço para diminuir a taxa básica de juros e financiar a dívida pública. Aos neoliberais de plantão, é bom lembrar que a dívida pública chinesa é denominada em moeda local, não estrangeira. Com seus 3,2 trilhões de reserva, a China é, na verdade, credora líquida em dólares.
No reino de Uncle Sam, visto como um porto seguro do dinheiro mundial até pouco tempo, a dívida pública está na casa dos trilhões de dólares. Vítima da incerteza e da desconfiança no trumpismo, os EUA perderam capacidade de financiamento de longo prazo nos treasuries de 30 anos, onde a taxa tem crescido e a demanda mundial caído.

Trump sabota o futuro de seu próprio país – Imagem: Molly Riley/Casa Branca Oficial
A matéria da Folha padece da doença crônica do pensamento único do mainstream. Liberdade de imprensa e de expressão são valores inegociáveis nas democracias, mas é preciso aprofundar os estudos a respeito da conformação dos mercados financeiros em todos os tempos do capitalismo.
A propósito da dívida pública, cabe aqui convocar as heterodoxias exaradas no Capítulo XXXIV de O Capital: “A dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como com um toque de varinha mágica, ela infunde força criadora ao dinheiro estéril e o transforma, assim, em capital, sem que, para isso, tenha necessidade de se expor aos esforços e riscos inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária. Na realidade, os credores do Estado não lhe dão nada, pois a soma emprestada se converte em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que, em suas mãos, continuam a funcionar como se fossem a mesma soma de dinheiro vivo (…) O grande papel que a dívida pública e o sistema fiscal desempenham na capitalização da riqueza e na expropriação das massas levou um bom número de escritores, como William Cobbett, Doubleday e outros, a procurar erroneamente na dívida a causa principal da miséria dos povos modernos”.
A citação ressalta a importância do ativo-passivo emitido pelos governos na transição entre os patrimônios imobilizados na terra e a riqueza móvel e líquida. Assim, o Banco da Inglaterra mediou as trepidações e expropriações da acumulação primitiva e criou o espaço monetário indispensável para o surgimento da propriedade moderna, da economia da indústria e da liberdade de empreender.
A dívida pública é o lastro de todas as operações de créditos no sistema bancário. Sem essa garantia, não há crédito bancário que se sustente, e seria muito problemático precificar a taxa de juros. Ainda mais em períodos de incerteza e desconfiança, a dívida pública é o porto seguro que assegura liquidez à riqueza privada. Vamos abusar de Karl Marx:
“O que o credor do Estado possui é: 1) um título de dívida pública, digamos de 100 libras; 2) o direito que esse título de dívida lhe confere de participar das receitas anuais do Estado, isto é, sobre o produto anual dos impostos, em determinada soma – digamos, de 5 libras ou 5%; 3) a possibilidade de vender a outros, quando quiser, esse título de dívida de 100 libras. Se a taxa de juros for de 5% e a garantia oferecida pelo Estado for boa, o proprietário A poderá, em regra, vender a B o título de dívida por 100 libras, pois para B tanto faz emprestar 100 libras a 5% ao ano ou, em troca do pagamento de 100 libras, garantir para si um tributo anual de 5 libras por parte do Estado. Porém, o capital, do qual o pagamento pelo Estado é considerado um fruto (juros), é, em todos esses casos, ilusório, fictício.
Os EUA perderam capacidade de financiamento de longo prazo
“A soma que foi emprestada ao Estado já não existe. Além disso, ela jamais se destinou a ser gasta, investida como capital, e apenas seu investimento como capital poderia tê-la convertido num valor que se conserva. Para o credor original A, a parte dos impostos anuais que lhe cabe representa os juros de seu capital, do mesmo modo que para o usurário a parte que lhe cabe do patrimônio do pródigo, embora em nenhum desses casos a soma de dinheiro emprestada tenha sido despendida como capital. A possibilidade de vender ao Estado o título da dívida pública representa para A a possível recuperação do montante principal. Quanto a B, de seu ponto de vista particular, seu capital foi investido como capital portador de juros. Na realidade, ele apenas apareceu no lugar de A, cujo título de dívida pública ele comprou. Não importa quantas vezes se possam repetir essas transações, o capital da dívida pública continua a ser puramente fictício, e a partir do momento em que os títulos da dívida deixam de ser vendáveis se desfaz a aparência ilusória desse capital. Apesar disso, esse capital fictício tem seu próprio movimento”.
Convém repetir a frase final, bastante esclarecedora: “Apesar disso, esse capital fictício tem seu próprio movimento”. Isso faz com que a remuneração do capital em geral “apareça” sob a forma de juros. Essa “aparência” é, ao mesmo tempo, uma forma ilusória, no sentido de que oculta as conexões fundamentais desse modo de produção, que são também formas necessárias enquanto expressões das relações de produção “transformadas” pelo processo de acumulação de riqueza monetária.
Os juros aparecem como forma de remuneração do capital sans phrase e sua formação nos mercados de riqueza mobiliária depende da demanda e oferta de capital dinheiro transfigurado na forma de capital a juros, capital-propriedade. Essa é a forma mais geral de existência do capital, a sua forma “verdadeira”, no sentido de que é a mais desenvolvida. “É evidente (diz Marx) que no capital a juros, o capital se completa como fonte misteriosa e autocriativa de seu próprio acrescentamento… é o capital par excellence.” •
Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pingos nos is’