João Cândido e a Luta pela Liberdade

No atual contexto, em que se discute reparações do Estado à população negra, o nome de João Cândido não pode ser esquecido

Rio de Janeiro, noite de 22 de novembro de 1910. Quando o presidente do Brasil recém-empossado assistia tranquilamente a uma ópera de Wagner no suntuoso Clube da Tijuca, cerca de dois mil marujos amotinaram-se na Baía de Guanabara e se apoderaram de quatro belonaves.

Sob o comando do marinheiro negro João Cândido Felisberto, os amotinados apontaram os canhões dos navios para pontos estratégicos da então Capital Federal, bradando “viva a liberdade” e reivindicando a reforma do Código Disciplinar, a abolição da chibata, da palmatória e de outras punições corporais.

Sem força para dominar aquela que ficou conhecida como a Revolta da Chibata, o Marechal Hermes da Fonseca e o Parlamento brasileiro cederam às reivindicações no que diz respeito aos castigos físicos.

Rapidamente aprovaram um projeto decretando o fim dos açoites e concedendo anistia aos amotinados. Quatro dias depois, estes depuseram as armas. Fato raro na história do Brasil, uma revolta popular saiu vitoriosa. Não por muito tempo.

Como o Governo não engoliu a ousadia daqueles marujos – oriundos da arraia-miúda, em sua maioria pretos, pardos, pobres, nordestinos e nortistas –, provocou deliberadamente, em 9 de dezembro, um levante no Batalhão Naval, na Ilha das Cobras.

Mais uma vez, os gritos de “viva a liberdade” foram ouvidos, mas logo silenciados por uma repressão draconiana. Muitos foram mortos, outros tantos presos, perseguidos ou extraditados.

João Cândido – o “negro que violentou a História do Brasil”, como declarou na época o escritor sergipano Gilberto Amado – foi preso, com mais 17 marinheiros, numa masmorra na Ilha das Cobras.

Em condições degradantes, 15 morreram ali asfixiados, poucos dias depois. João Cândido, um dos sobreviventes, foi internado num manicômio, onde os médicos negaram que ele estivesse louco. Julgado por tribunal militar em novembro de 1912, foi absolvido, porém não escapou da expulsão da Marinha.

Para quem quer conhecer mais sobre esse importante episódio da jovem República brasileira, vale a pena ler o livro do jornalista Edmar Morel, A Luta pela Liberdade, de 1959.

Embora um tanto quanto esquemática, a obra dá nome à revolta (porque, até então, não era chamada assim) e apresenta um bom repertório informativo.

Já para quem quer conhecer interpretações atualizadas sobre o episódio e seus desdobramentos, recomendamos a leitura dos livros de Álvaro Pereira do Nascimento, Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910, publicado em 2008; e de Silvia Capanema, João Cândido e os navegantes negros: a revolta da chibata e a segunda abolição, publicado em 2022.

Mais do que desencadear o fim das chibatas, o movimento dos marinheiros teria catalisado, para Álvaro Nascimento, a sedimentação de uma nova cultura política ou, segundo Silvia Capanema, teria impulsionado a agenda de uma segunda Abolição.

Depois de banido da Marinha, João Cândido ficou no ostracismo. Morando em condições precárias em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, e ganhando a vida como modesto vendedor de peixes no mercado da Praça XV, foi “redescoberto” no final da década de 1950 por Edmar Morel, que procurou lhe conferir um “lugar na história”.

Na década seguinte, em pleno “anos de chumbo”, o “herói da ralé”, como Edmar Morel o definiu, prestou um depoimento ao Museu da Imagem e do Som.

Foi nesse depoimento – publicado em forma de livro, João Cândido: a Luta pela Liberdade, de 1999 – que ele revelou: a revolta da marujada “nasceu dos próprios marinheiros para combater os maus tratos e a má alimentação e acabar definitivamente com a chibata na Marinha. Nós que vínhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos admitir que na Marinha do Brasil ainda o homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem”.

Em 1969, um ano depois de ter dado esse depoimento, João Cândido faleceu, com 89 anos.

Do período da sua “redescoberta” até os dias atuais, ele de marinheiro foi alçado à posição de “Almirante Negro” e se tornou um símbolo de resistência e luta por democracia, justiça social e igualdade racial, tendo sido apropriado por partidos de esquerda, sindicatos, organizações estudantis, entidades negras e movimentos populares, bem como foi (re)significado em diversas produções artístico-culturais.

Em 1973, Aldir Blanc e João Bosco compuseram uma música em homenagem a João Cândido. O título original era “Almirante Negro”, mas, por conta da censura da ditadura, teve que ser modificada para “O mestre sala dos mares”.

Não adiantou. Gravada por Elis Regina em 1974, a música fez um grande sucesso e popularizou a alcunha do título original.

Em 2000, o escritor Moacir Costa Lopes publicou o romance O Almirante Negro: Revolta da Chibata, a vingança.

Dois anos depois, foi a vez de o grupo de Teatro Popular União e Olho Vivo levar para o palco do Centro Cultural São Paulo (CCSP) o espetáculo João Cândido do Brasil – a Revolta da Chibata.

Em 2004, a Fundação Roberto Marinho estreou o projeto “A Cor da Cultura”, que produziu a série audiovisual Heróis de Todo Mundo, retratando personalidades afro-brasileiras que se destacaram na história do Brasil. Um dos “heróis” homenageados foi João Cândido.

Em 2005, foi lançado o premiado curta–metragem Memórias da Chibata, dirigido pelo cineasta Marcos Manhães Marins e baseado na história e memória do “Almirante Negro”.

A um semestre de completar 114 anos, a sublevação dos marinheiros – que poderia ser lembrada como um capítulo do protagonismo dos subalternos no período pós-abolição, mas também como uma ação coletiva sui generis, que revelou um ícone negro e popular –, voltou ao noticiário, por conta da carta que o almirante Marcos Sampaio Olsen enviou à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, pedindo aos parlamentares brasileiros para não aprovarem o Projeto de Lei nº 4046/2021, que inscreve o nome de João Cândido no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.

O comandante da Marinha chama os marujos de “abjetos marinheiros”, que quebraram a hierarquia na Armada para exigir “vantagens corporativas e ilegítimas”.

A carta provocou reações de políticos, intelectuais, jornalistas e representantes dos movimentos sociais, sobretudo do movimento negro. Afinal, quando os marujos se insurgiram, apenas 22 anos haviam se passado da extinção do cativeiro.

O que o movimento denunciava em vários aspectos se relacionava com as opressões e violências impostas aos africanos e seus descendentes nos mais de três séculos de escravidão.

Os marujos – na maioria negros e pardos, muitos filhos e descendentes de escravizados, como João Cândido – evocavam a liberdade, acabar com os abusos e a chibata (símbolo do cativeiro) na Marinha. Em vez de serviçais de oficiais, reivindicavam ser tratados como marinheiros e cidadãos brasileiros e republicanos.

No limite, a insurgência dos marinheiros de 1910 foi uma mobilização pelos direitos humanos, por cidadania e de caráter antirracista.

Se o Brasil foi o último país do Ocidente a suprimir a escravidão, a Marinha brasileira foi a última Armada a abolir os castigos corporais do código disciplinar. E isso só ocorreu por causa da revolta dos marujos.

Portanto, não se tratava de exigir “vantagens corporativas e ilegítimas”. Consistia, isso sim, numa luta por direitos, igualdade e dignidade. Abjeta era a chibata, assim como nos parece que abjeta era a Marinha, ao incorrer numa prática do legado escravista.

João Cândido – que liderou a insurgência dos marujos, razão pela qual foi preso, torturado e perseguido por aquela corporação militar durante a vida e mesmo depois da morte – é um dos grandes injustiçados da República brasileira. No atual contexto, em que tanto se discute reparações do Estado à população negra, o nome de João Cândido não pode ser esquecido.

Mais do que se tornar reconhecido como herói da Pátria, ele precisa receber uma nova anistia política, ser reincorporado à Marinha (ainda que post-mortem) e sua família receber indenização financeira e simbólica, pelos danos e prejuízos – relacionados ao autoritarismo de classe, à herança escravista e à violação dos direitos humanos – que assolaram a vida do “Almirante Negro”.

*Petrônio Domingues é professor de história na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Autor, entre outros livros, de Protagonismo negro em São Paulo (Edições Sesc). [https://amzn.to/4biVT9T]

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Última Atualização: 01/07/2024