O ensino médio tem uma evasão absurda. Cerca de 480 mil alunos abandonam as escolas públicas por ano nessa fase. Desde 2024, o Ministério da Educação paga uma bolsa para tentar impedir a fuga, amparado em uma lei aprovada pelo Congresso. Os 3,9 milhões de estudantes que recebem o chamado Pé-de-Meia escaparam por pouco de ficar de mãos vazias em fevereiro, início dos repasses em 2025. Na quarta-feira 12, o Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar de deputados e senadores na vigilância do governo, voltou atrás em uma decisão de janeiro e autorizou o pagamento da bolsa, o que deve ocorrer do dia 20 em diante. O recuo não esgota, porém, um enredo que tem pedido de CPI e de impeachment de Lula e no qual desponta, no centro do picadeiro, um figurão reacionário e golpista.

Augusto Nardes, de 72 anos, é ministro do TCU. Em 19 de janeiro, tinha dado uma liminar para suspender o repasse de 6 bilhões de reais do Pé-de-Meia, em uma ação movida pelo Ministério Público Federal. Três dias depois, seus colegas de casa confirmaram a medida no plenário. A Advocacia-Geral da União, defensora do governo em tribunais, havia entrado então com um recurso para tentar desbloquear a verba, sob o argumento de que os estudantes seriam prejudicados. O recurso levou à revogação da liminar pelos ministros, inclusive com o voto de Nardes, relator do processo.

O ministro do TCU não encontrou respaldo político para transformar o caso em um escândalo

O gaúcho Nardes, há 20 anos no TCU por obra de Severino Cavalcanti, deputado que comandou a Câmara por sete meses em 2005 antes de renunciar ao cargo para não ser cassado por corrupção, tem saudade da ditadura instaurada em 1964. Foi peça-chave no impeachment de Dilma Rousseff. E era entusiasta do golpe tramado por Jair Bolsonaro para reverter a derrota nas urnas em 2022. “É o pior momento que a nação vai viver, mas talvez seja importante”, disse em um áudio de novembro de 2022, dias de intensa conspiração por Bolsonaro e seus comparsas militares. “Somos hoje uma sociedade conservadora que não aceita mais as mudanças que estão sendo impostas e que despertou, isso é muito importante”, prosseguiu.

Quando o ditador Ernesto Geisel, no poder de 1975 a 1979, promovia a “abertura lenta, gradual e segura”, Nardes era vereador em Santo Ângelo, cidade hoje com 77 mil habitantes no Rio Grande do Sul. Pertencia à Arena, o partido do regime. Ao terminar o mandato, foi fazer um curso na Europa. Tinha formação universitária em Administração de Empresas e, na Suíça, estudou Política de Desenvolvimento, entre 1978 e 1982. Na volta ao Brasil, criou um instituto ao lado de um professor de Direito, o conterrâneo Cezar Saldanha Souza Júnior, benevolente em relação à ação política dos quartéis e às intervenções militares na vida nacional. “Fazíamos aulas para defender a economia de mercado, o capital”, contava Nardes no áudio.

Prestação de contas. Santana promete para março um balanço do Pé-de-Meia – Imagem: Marcelo Camargo/ABR

Se dependesse dele, a ditadura teria terminado em parlamentarismo, sistema de governo que, por pressão fardada, vigorou no Brasil de 1961 a 1963, a fim de converter em rainha da Inglaterra o trabalhista João Goulart, alçado à Presidência após a renúncia de Jânio Quadros. Parlamentarismo é o sonho do direitismo brasileiro, sempre com medo das urnas. A propósito, o atual ministro da Defesa, José Múcio, outro político forjado na Arena, acaba de defender publicamente esse sistema de governo, rejeitado em dois plebiscitos pelos brasileiros, um deles em 1963. Jango assumiu em seguida plenos poderes presidenciais e seria golpeado pelas baionetas em 1964. Geisel e João Baptista Figueiredo, o último ditador, deveriam ter feito “uma transição com um parlamentarismo, escolher um primeiro-ministro e fortalecer a economia de mercado”, segundo o ministro do TCU. “Agora vem o Bolsonaro, que despertou a sociedade conservadora e hoje todo mundo está nas ruas aí fazendo a sua defesa desses princípios.”

Nardes foi deputado federal a partir de 1995, até abrir mão do mandato em 2005 para ingressar no TCU. Em 1999, início do segundo governo Fernando Henrique Cardoso, era líder da bancada ruralista. “Articulei a união em 17 estados para colocar 20 mil pessoas em Brasília em 99. Queimamos máquinas, tratores, fizemos um escarcéu”, relembra no áudio. “Então, conheço todos os passos que temos de fazer (em nome de certos princípios).” No governo Bolsonaro, seu irmão José Nardes estava à frente de um sindicato de produtores rurais em Mato Grosso, em Primavera do Leste, município de 85 mil almas. José idealizou e tirou do papel um projeto de exploração comercial de uma terra indígena xavante, Sangradouro. Tudo com a bênção do chefe da Funai na época, Marcelo Augusto Xavier da Silva. Em troca da exploração, a promessa de divisão de lucros com os indígenas.

A interrupção do programa do MEC atiçou os defensores no Congresso do impeachment de Lula

Nardes esteve à frente do TCU no governo Bolsonaro. Na gestão do capitão, sua família obteve aval federal para explorar diamantes no Piauí, por meio da NPC Mineradora. A sócia majoritária da firma é a esposa do ministro, Adriane ­Beatriz Freder. Outro sócio é Igor Alexandre Copetti, também associado a outro irmão de Nardes, João Augusto, numa empresa de administração de bens. O Ministério Público Federal denunciou Copetti, em 2018, por lavagem de dinheiro. A acusação decorreu da Operação Zelotes, investigação sobre a compra de decisões no Carf, tribunal no Ministério da Fazenda para litígios fiscais. O ministro do TCU não foi acusado, mas por pouco. Suspeita-se que a NPC Mineradora era usada por Nardes para receber dinheiro em troca de influência no Carf. O intermediário da cobrança de propina seria Copetti.

A mineradora foi criada em 2012, em Brasília. “Alertei a presidente em 2012, 2013 o que ia acontecer no País”, comenta no áudio de 2022. Referia-se a Dilma Rousseff. “Nós tomamos uma decisão importantíssima em 2015, quando tive a coragem, pela primeira vez em 130 anos, de tomar uma atitude de reprovar as contas (da presidente).” Nardes foi relator das contas da petista de 2014, ano da reeleição. Rejeitou-as por “pedaladas fiscais”. O TCU aprovou o relatório de Nardes em outubro de 2015. Dois meses depois, a Câmara botou para andar o impeachment. “É necessário acordar todo o Brasil, acordar, despertar, ter fé e crença como nós tivemos lá em (20)15”, dizia no áudio, uma demonstração nada sutil de alinhamento ao golpismo bolsonarista. “Imagine com mais quatro anos de governo (do PT) o que vai acontecer na nação.”

A liminar de Nardes sobre o Pé-de-Meia em janeiro namorou a ideia de “pedalada fiscal” e embalou o sonho bolsonarista de derrubar Lula. O número de assinaturas em um pedido de cassação do petista redigido em outubro aumentou de lá para cá. “Vimos o Tribunal de Contas da União apontar irregularidades na prestação de contas do ­Pé-de-Meia. Sim, Lula cometeu pedalada fiscal, crime fiscal. O presidente Lula, que já viu sua companheira Dilma pedalar e ser ­‘impichmada’ (sic), cometeu a mesma pedalada, o que configura crime de responsabilidade”, declarou da tribuna da Câmara, em 5 de fevereiro, o deputado Rodolfo Nogueira, do PL de Mato Grosso do Sul, autor do pedido de impeachment. Deu-se o mesmo com uma CPI proposta pelo colega Coronel Chrisóstomo, do PL de Rondônia: mais assinaturas de apoio desde janeiro. Planos políticos amparados em “excesso de preciosismo do TCU”, na avaliação do deputado Rafael Brito, do MDB de Alagoas, líder da Frente Parlamentar da Educação no ano passado.

Sanha. A partir do bloqueio do TCU, Nogueira e Coronel Chrisóstomo tiraram do bolso um pedido de CPI e outro de impeachment – Imagem: Vinicius Loures/Agência Câmara

A situação examinada pela Corte de contas foi a seguinte. A lei do Pé-de-Meia, a 14.818, de janeiro de 2024, autoriza o governo a pagar a bolsa por meio de um fundo operado pela Caixa Econômica Federal de até 20 bilhões de reais. A lei liberou a injeção no Fipem de recursos de outros dois fundos que servem de garantia a empréstimos: o Fgeduc, próprio para alunos do Fies, e o FGO, voltado a micro e pequenas empresas. Do Fgeduc saí­ram 6 bilhões para o Pé-de-Meia, a exata quantia bloqueada pelo TCU em janeiro. Tanto o Fipem quanto o Fgeduc e o FGO têm caráter privado, mas Nardes e os técnicos da Corte de contas que trabalharam com o ministro no processo usaram o pressuposto de que eram “públicos”. Por isso, entenderam que a verba da bolsa teria de sair do Fgeduc e do FGO, passar pelo Tesouro Nacional e ter a aprovação parlamentar na lei orçamentária, para só depois aportar no Fipem. “Erro grave na premissa”, afirmava o recurso da AGU contra a liminar.

“Se alguém é contra a lei, que vá ao Supremo (Tribunal Federal). O TCU não é lugar para discutir a ­constitucionalidade de leis”, disse na véspera do julgamento do recurso a deputada Tabata Amaral, do PSB paulista, autora do projeto que deu origem ao Pé-de-Meia. Tabata e parlamentares da bancada da educação tinham visitado Nardes, na terça-feira 11, para cobrar a revogação da liminar. A oposição bolsonarista fez o mesmo périplo, em busca do oposto. Os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e da Educação, Camilo Santana, também se reuniram com o relator. Santana, aliás, prepara para março o balanço de um ano do Pé-de-Meia, iniciativa sobre a qual não se conhecem, de fato, muitos detalhes sobre quem são os bolsistas e onde estão.

A via-crúcis governista e a disputa política levada para o campo do mérito do programa, não para um “excesso de preciosismo” técnico, deram certo e convenceram Nardes e os colegas do TCU a revogar o bloqueio dos 6 bilhões de reais. O relator tinha tido conversas com os novos presidentes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre. Comenta-se no Congresso que não recebeu apoio para esticar a corda na batalha com o governo. Este não conseguiu, no entanto, tudo que queria. O desejo de Haddad e Santana era fazer só em 2026 o dinheiro dos fundos do Pé-de-Meia passar pelo Tesouro Nacional antes de chegar aos bolsistas. Terão 120 dias para apresentar uma solução no orçamento de 2025, ainda pendente de votação por deputados e senadores. •

Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pequeno ensaio ‘

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Last Update: 13/02/2025