José Alberto Mujica Cordano, ou simplesmente Pepe Mujica, adiantou-se em suas despedidas ainda em vida. Um vazio já se abre no peito de todos aqueles que dedicam suas existências a um sonho coletivo de transformação da sociedade.
Pepe nasceu em 20 de maio de 1934 em Montevidéu, capital do Uruguai, filho de uma família de pequenos agricultores, profissão que reivindica com orgulho até esses, que ele próprio afirma serem seus últimos momentos. Com pouco mais de 20 anos, iniciou sua militância na juventude do Partido Nacional. Fundou algumas correntes dentro do Partido Socialista do Uruguai, até, na segunda metade da década de 60, ingressar nos Tupamaros. Junto ao movimento guerrilheiro desempenhou papel dirigente em ações diretas, tendo sido ferido a tiros em determinada ocasião.
Mujica foi preso em 1972, logo antes do golpe de estado que instaurou a ditadura militar no Uruguai. Fugiu da prisão duas vezes, sendo preso novamente e torturado. Em 1985, com o fim do regime ditatorial, Pepe foi anistiado.
Junto a outros ex-guerrilheiros, criou o Movimiento de Participación Popular, dentro do Frente Amplio. Em 1994 se elegeu deputado por Montevidéu, e em 1999 senador. Foi ministro da Agricultura de Tabaré Vázquez entre 2005 e 2008. Finalmente, Mujica foi eleito Presidente do Uruguai pelo Frente Amplio em 2009, assumindo o governo em 2010.
Pepe logo no início de seu governo passou leis no sentido de atender reivindicações históricas da esquerda e dos movimentos sociais, como a descriminalização do aborto e a legalização do casamento igualitário e adoção de crianças por casais LGBTs. Também aprovou a legalização da maconha e aumentou o salário mínimo em 250%. Em seu governo, a pobreza diminuiu drasticamente no Uruguai. Mujica ainda se elegeu ao senado mais duas vezes, renunciando ao cargo em ambas legislaturas devido à idade avançada e condições de saúde.
Muito mais do que somente a imagem do presidente humilde do Uruguai, que abdicou das regalias presidenciais para continuar vivendo em seu pequeno sítio com sua esposa Lucía, Pepe representa uma trajetória heroica e incansável de luta pela classe trabalhadora. Os mais “puristas” (leia-se sectários) falarão que Mujica não era um marxista revolucionário, e, portanto, merece ser lembrado apenas como mais um administrador do estado burguês.
Discordo frontalmente dessa leitura.
De fato, Pepe era um reformista convicto, que não reivindicava um horizonte revolucionário e a ditadura do proletariado. Porém, o velho uruguaio dedicou toda sua vida consciente para as lutas da classe trabalhadora. Um camarada, por quem tenho imensa admiração, repetidamente me fala que “precisamos valorizar os nossos”. Considero Mujica um dos nossos. Para permanecer fiel às suas ideias depois de mais de uma década de cárcere, incontáveis sessões de tortura e mais de 6 anos de completo isolamento de outros seres humanos, se necessita de um amor profundo para com a nossa classe. Não sucumbir diante dessa realidade é algo praticamente inimaginável.
No último Congresso da UNE, dois anos atrás, presenciei, infelizmente, uma cena lamentável. Algumas correntes ultraesquerdistas, que acreditam fielmente ser herdeiras diretas do legado de Lenin, viraram as costas para Lula e Mujica enquanto estes falavam para uma nova geração inteira de ativistas do Movimento Estudantil. Com todo o respeito devido às tradições revolucionárias de décadas destas correntes, que lutaram contra a ditadura militar no Brasil, os companheiros das suas juventudes precisam ainda comer muito “arroz con frijoles” antes de rechaçar a trajetória de luta de Mujica dessa maneira.
Pepe voltou à vida pública depois de se aposentar da presidência para ajudar seu partido.
Pepe, aos 89 anos e lutando contra o câncer, afirmando que a eleição de 2024 seria a última que veria vivo, compareceu aos comícios do Frente Amplio para eleger Yamandú Orsi.
Em seu último discurso, anterior à entrevista em que comunicou seu total afastamento da vida pública, Mujica afirmou que “quando esses braços se forem, haverá milhões de braços na luta”. Não sei se somos milhões ainda hoje, mas eu somo meus braços na luta coletiva pela emancipação da classe trabalhadora reivindicando o seu legado.
Podemos discordar no campo estratégico, mas Mujica é exemplo para todos os revolucionários do Uruguai, do Brasil, da América Latina e do mundo.
Não escrevo esse texto como uma despedida, pois Mujica vive e espero que viva ainda por muito tempo. Porém, assim como afirmou Boulos na despedida de nosso grande Catatau, precisamos aprender a valorizar os nossos em vida.
Hoje tomarei um mate em homenagem ao camarada Pepe.
Como ele mesmo costuma falar: ¡Hasta siempre, Pepe!