Pelé, um mito moderno e as sutilezas do racismo à brasileira, por Márcio Sampaio de Castro

Pelé, um mito moderno e as sutilezas do racismo à brasileira

Pelé passou. Não ganhou série na Netflix e dificilmente ganhará. Não virou nome de rodovia e nem foi chamado de herói nacional por praticar um esporte apreciado majoritariamente pelas classes médias altas urbanas espalhadas pelo Brasil afora.  Ainda assim, foi muito maior do que até mesmo seus admiradores imaginam

por Márcio Sampaio de Castro

Em um dia 29 de dezembro falecia Edson Arantes do Nascimento. Já se vão quase três anos. Mas, apesar da efeméride, não é objetivo deste texto tratar exatamente dela e sim explorar as nuances de um evento ocorrido quatro décadas e meia antes do falecimento do mineiro de Três Corações. O encontro de Pelé, seu alter ego futebolístico, com a estrela do boxe estadunidense Muhammad Ali. Uma reunião a princípio improvável ou no máximo fadada a um aperto de mão protocolar.

O encontro ocorreu em 1977, no Giants Stadium, em Nova Jersey. De um lado, um negro supostamente submisso e “bonzinho” vindo do Brasil e do outro, um ícone do Movimento dos Direitos Civis nos EUA, que até o seu nome de origem europeia (Cassius Clay) alterou como prova de insubmissão e rebeldia. Mas na foto do histórico evento ocorrido no outono daquele ano, uma coisa chama a atenção: É Ali que olha admirado para Pelé. Mais do que isso, foi Ali que se deslocou para ver Pelé praticar um esporte que certamente não era muito de seu interesse.

É claro que esse panorama todo suscita uma pergunta. Por que Ali, um símbolo de luta e resistência contra o racismo foi prestar uma homenagem embevecida ao aparentemente omisso Pelé?

Antes de respondermos a essa pergunta, voltemos aos obituários do Rei do Futebol produzidos por ocasião de seu passamento.

Nem na morte Pelé foi poupado das críticas que o perseguiram em vida. Na falta de escândalos com embriaguez, fraude fiscal, drogas, bancarrota, arrogância ou prepotência, sobrou aos analistas de plantão os reparos e comentários de sempre.

Pelé ganhou a Copa do Mundo e foi tirar foto com o ditador Médici. Pelé não casou com uma mulher negra. Pelé não reconheceu a filha fora do casamento. Pelé não se posicionou politicamente (aqui não podemos deixar de dizer: esta última crítica ou cobrança nunca foi endereçada com a mesma veemência a ídolos como Roberto Carlos, Ayrton Senna ou outras figuras de grande quilate na cultura popular-midiática brasileira).

Os admiradores de Edson e sua persona futebolística não se saem muito melhor. Para estes, Pelé foi o maior de todos. Levou o nome do Brasil para o mundo. Colocou o futebol brasileiro no mapa. Foi melhor no campo e mais comportado fora dele do que Maradona. Enfim, um gênio da bola.

O que há, então, em comum entre os analistas detratores e os admiradores? São na sua esmagadora maioria gente branca. Não há, a princípio, nada de errado com isso. Mas eu fui um menino negro nos anos 1970. Sei o que eles não sabem. Eu sei o segredo que se esconde por trás do olhar de Ali.

Em minha infância odiava qualquer associação que fizessem entre mim e o personagem Mussum. Aquela figura que aparecia na TV bêbada e falando errado.  O desditoso personagem fazia a alegria de meus coleguinhas brancos, enquanto eu me sentia humilhado por sua figura caricata e quase grotesca. Enfatizo, me refiro aqui à personagem e não ao homem Antonio Carlos.

Por outro lado, alguns, às vezes, principalmente em contextos recreativos, me chamavam de Pelé. Não gostava também, mas sabia que, de alguma forma, havia algo de elogioso nessa associação.

Mas retomando uma vez mais a efeméride, podemos dizer que passados quase três anos da morte do ídolo, sua figura é naturalmente obliterada pelas celebridades futebolísticas do mês. Numa época em que a sociedade da informação está irmanada pela lógica do consumo, qualquer peladinha de campeonato inglês é chamada de épica e qualquer gol mais bonitinho é classificado como histórico. Tudo é instantâneo e o que importa é o presente.

Pelé passou. Não ganhou série na Netflix e dificilmente ganhará. Não virou nome de rodovia e nem foi chamado de herói nacional por praticar um esporte apreciado majoritariamente pelas classes médias altas urbanas espalhadas pelo Brasil afora.  Não teve sua camisa 10 aposentada em algum hall da fama futebolístico e na seleção brasileira de hoje qualquer garoto com nome composto enverga sua camisa sem, provavelmente, ter a exata noção do que isso significa.

Diante desse cenário, por que retomar a visita que Ali lhe prestou num frio dia de outono em 1977? A resposta é, ao mesmo tempo, simples e complexa.

Na aurora das mídias com alcance global, especialmente a TV, a ideia de celebridade, antes associada a grandes feitos como os da aviadora norte-americana Amelia Earhart ou aos do explorador norueguês Roald Amundsen, foi transferida para figuras do campo do entretenimento de massas, como pessoas da classe artística ou esportistas. Ocorre que Pelé tornou-se a primeira e incontestável celebridade esportiva global ligada a uma modalidade de apelo igualmente global. Essa espécie de herói moderno capaz de grandes feitos narrados de forma mítica capturou o imaginário das massas ao redor do mundo, principalmente a partir do início da década de 1960. Afinal, para a grande maioria não era possível acompanhar todas as nuances de sua carreira que se desenrolava principalmente em um país pouco relevante do hemisfério sul.

Ainda assim, esse herói mítico, quase uma lenda digna das melhores tradições orais de qualquer grupo humano do mundo antigo, era um homem negro. O primeiro herói de alcance global era um homem negro!

Para os negros, massacrados nas Américas, na África que lutava pelo fim do colonialismo ou em qualquer outro quadrante do planeta, Pelé e sua figura diziam tudo. Sim, o herói de todos era um homem negro! Pelé não precisava militar, ele já era a militância. A força desta figura estava no empoderamento, para empregar uma palavra de nossos dias, que inspirava em homens, mulheres, jovens e crianças negras. O herói de todos era um homem negro!

As pessoas que olham para esse cenário distanciadas pela barreira do tempo ou da cor da pele têm dificuldade para apreender sua dimensão. É compreensível. E a prova disso é que muita gente nessas condições observa a foto do encontro entre dois gigantes naquele outubro de 1977 e vêem apenas dois ídolos importantes do esporte.

Eu e muitos outros vemos muito mais. Lá estão reunidos e eternizados num abraço dois monstros sagrados da emancipação negra. Um deles, concreto, verborrágico, inconteste. O outro, simbólico, mitológico.

Pelé foi e é muito maior do que o lugar que mesmo seus admiradores brancos mais respeitosos gostam de lhe reservar: as quatro linhas de um gramado de futebol. Não! O herói de todos foi e é um homem negro e o nome dele é Pelé. Muhammad Ali sabia disso.

Márcio Sampaio de CastroJornalista, autor do livro Bexiga, um Bairro Afro-Italiano

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