Pejotização e anomalias no mercado de trabalho

por Ítalo de Aquino

O mercado de trabalho no Brasil sempre foi uma anomalia. Do início da colonização até 1888 predominou a escravidão. Com seu fim os desarranjos prosseguiram. No final do século XIX e começo do XX houve muita luta para limitar a jornada de trabalho, restringir a exploração de menores e garantir demais direitos. Organizações operárias surgiram, sindicatos se formaram. Na sequência da crise de 1929 com a quebra da Bolsa de Nova York e a respectiva “falência” da oligarquia cafeeira o governo Vargas, a partir de 1930, cedeu às pressões por direitos trabalhistas o que culminou na criação (1936) e regulamentação (1938) do salário-mínimo e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943.

Fernando Henrique Cardoso ao tomar posse em 1995 acenou com o fim da herança varguista. Foram meio século, 52 anos de 1943 a 1995, em que a CLT foi o marco jurídico das relações trabalhistas no Brasil. Desde então ela vem sofrendo golpes visando desmontá-la. Levianamente acusada de semifascista, corporativa e atrasada. Seus detratores alegam que há uma nova realidade imposta por novas tecnologias e mudanças nas relações sociais de trabalho. Em nosso entendimento subjaz, como no passado, conferir ao empregador (o contratante) o máximo de lucro e exploração e ao empregado (o contratado) o mínimo de remuneração e garantias.

A própria CLT ao ser sancionada nasceu com uma anomalia congênita – excluiu das garantias e direitos os trabalhadores rurais. Por 21 anos, de 1943 a 1964, os camponeses protagonizaram lutas heroicas como o objetivo de estender a eles as mesmas conquistas dos trabalhadores urbanos. Como golpe militar de 1964 foram violentamente calados.

Além disso, as próprias estatísticas do mercado de trabalho no Brasil são distorcidas. Em geral a imprensa e muitos analistas confundem taxa de emprego/desemprego com taxa de ocupação/desocupação. A primeira implica uma relação formal de trabalho enquanto a segunda incorpora todo tipo de atividade laboral, inclusive com pagamento in natura como o próprio IBGE explicita em nota metodológica da PNAD: “Sendo pessoas ocupadas aquelas que trabalharam pelo menos uma hora completa em trabalho remunerado em dinheiro, produtos, mercadorias ou benefícios (moradia, alimentação, roupas, treinamento etc.) ou em trabalho sem remuneração direta, em ajuda à atividade econômica de membro do domicílio ou, ainda, as pessoas que tinham trabalho remunerado do qual estavam temporariamente afastadas nessa semana.” Ou seja, o propalado aquecimento do mercado de trabalho decorre do fato de que se considera remuneração um conjunto variado de retribuições, quando deveria ser exclusivamente em dinheiro, em um pretenso mercado onde deveria vigorar o trabalho livre assalariado.

Outra dimensão de aspecto metodológico, da mesma pesquisa, está em adotar como corte de faixa etária adolescentes a partir de 14 anos. Em confronto com o artigo 208 da Constituição Federal: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade”. Adolescentes com 14 anos não poderiam ser computados como força de trabalho, pois por lei deveriam estar na escola.

Dentre as conquistas inscritas pelos trabalhadores está o direito de se aposentar, cumpridas as regras e com direito a receber uma remuneração, em função de anos consecutivos de depósito de parte do seu salário para os respectivos fundos. Com a pejotização teremos uma indução à falência dos regimes previdenciários.

A recente decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de questionar sentenças e acórdãos dos tribunais do trabalho de reconhecimento de vínculo empregatício na imposição do empregador de contratar o empregado como pessoa jurídica “PJ” autônoma (processo apelidado de pejotização) revivesce as recorrentes anomalias do mercado de trabalho brasileiro: “(…) determino a suspensão nacional da tramitação de todos os processos que tratem das questões mencionadas nos presentes autos (…)”.

Trata-se de uma ofensa à magistratura trabalhista à vista do artigo 114 da Constituição Federal que estabelece a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ações oriundas dos conflitos entre patrões e trabalhadores. Até que seja julgada em plenário do tribunal as ações ficarão paralisadas. O que pode significar ao trabalhador anos de espera. E uma vez concluído o julgamento pelo plenário do tribunal a decisão terá efeito vinculante a todas as instancias jurídicas.

Nessa modalidade de contrato, o empregado possui deveres como se registrado fosse, porém não tem reconhecidos os direitos de FGTS, férias, 13º salário, descanso remunerado e demais direitos, acidente de trabalho e seguro-desemprego. Toda essa situação piora no caso de mulheres que por ocasião de uma gravidez não terão direito a licença maternidade e estabilidade no emprego.  O impacto sobre elas será muito maior, à medida que deverá gerar um mecanismo de exclusão e rebaixamento de oportunidades no mercado de trabalho.

Aos poucos as garantias legais estão desaparecendo do mercado de trabalho. Inclusive com a utilização de uma nova denominação para o trabalhador que passou a ser colaborador e daqui a pouco – não se surpreenda – passar a ser chamado de sócio.  Diante das normas estabelecidas pela CLT essa situação configura ilicitude no contrato civil. Por esse motivo a justiça do trabalho tem reconhecido o direito do empregado, dada sua hipossuficiência (condição vulnerável à frente do patrão).

Causa preocupação a atitude do ministro Gilmar Mendes: frente a uma eventual decisão do STF por negar à justiça do trabalho seu dever constitucional de regular as relações entre empregador/empregado e uma segunda negativa em reconhecer que há ilicitude nas contratações, tanto trabalhadores “PJ” como os demais que trabalham em plataformas digitais/aplicativos terão subtraídos seus direitos trabalhistas. Um retrocesso.

Ítalo de Aquino – historiador

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Last Update: 28/04/2025