O idílio liberal e a velha ordem zumbi
Por Pedro Amaral*, no Linha Vermelha
“E o meu medo maior é o espelho se quebrar” – João Nogueira, Espelho
Thomas L. Friedman, prestigiado jornalista norte-americano, vencedor de três Pulitzer, escreveu recentemente em sua coluna no The New York Times: “Trump é diferente de qualquer presidente americano dos últimos 80 anos. Ele não sente nenhuma solidariedade instintiva com a aliança transatlântica e seu compromisso compartilhado com a democracia, o livre mercado, os direitos humanos e o império da lei – uma aliança que produziu o maior período de prosperidade e estabilidade para a maioria das pessoas na história do mundo” (NYT International Edition, 21/08/2025, p.9).
É certo que o atual ocupante da Casa Branca não demonstra qualquer compromisso com os valores citados, e não faz segredo disto.
Mas o problema da narrativa de Friedman, que muita gente boa reproduz no todo ou em parte, é que ela se baseia largamente em falsidade, sendo fácil demonstrar que o cenário idílico de filme de Walt Disney que povoa a imaginação do articulista – e que estaria sendo demolido pela ascensão de Trump – jamais se produziu na realidade.
Ora, se voltarmos 80 anos no tempo, chegaremos a nada menos que os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki autorizados pelo presidente democrata Harry Truman, que vitimou de imediato mais de 200 mil pessoas – massacres que até hoje figuram como os únicos ataques a civis com bombas atômicas.
Direitos humanos? Império da lei?
Na sequência, uma rápida enumeração, longe de exaustiva, nos traz à memória a destruição da Coreia; a agressão ao Vietnã; a violenta repressão aos movimentos de direitos civis dos negros nos EUA; a sequência de desestabilização de governos e apoio a ditaduras na Ásia, na África e na América Latina (poderíamos ignorar a Operação Condor?); a devastação do Iraque e as incursões no Afeganistão; o ataque à Sérvia; os horrores de Guantánamo (prisão construída em território usurpado de Cuba) e Abu Ghraib; o apoio direto à colonização da Palestina pelo enclave sionista. E por aí vai.
Há que falar em prosperidade e estabilidade levadas pela aliança transatlântica para os povos de Iraque, Palestina e Iêmen?
O que dizer da presença espoliadora da velha França no continente africano, alvo de crescente rechaço?
Nessa nada honrosa missão civilizatória, EUA e seus aliados europeus também cuidaram da expansão da OTAN para o leste no pós-1991, visando a conter uma ameaça comunista já então inexistente – avanço cujas consequências estão aí para todos verem. E, como sabemos, o compromisso da pátria de Friedman com a democracia, os direitos humanos e o rule of law é de tal ordem que o país possui sua própria agência de terrorismo, desde 1947…
No que diz respeito ao chamado free market, EUA e seus aliados, no melhor estilo “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” (estratégia que o economista sul-coreano Ha-Joon Chang definiu como “chutar a escada”), lograram impor ao chamado mundo em desenvolvimento –América Latina, África e partes da Ásia –, por meio de instituições como FMI, Banco Mundial e OMC, programas de ajuste estrutural baseados em eliminação de subsídios e medidas protecionistas; desregulação e privatização; conversibilidade monetária e austeridade fiscal – diretrizes que tiveram o cuidado de raramente adotar, para manter ou tentar manter seus padrões de desenvolvimento e bem-estar social, além de preservar seus interesses geopolíticos.
Reflexo do êxito dessa política é que os EUA mantiveram investimento público massivo em ciência, tecnologia e inovação, auferindo os benefícios correspondentes, enquanto países como o Brasil abraçaram a estratégia autopenitente da restrição orçamentária neste e noutros setores estratégicos, para manter acesa a chama da esperança em relação à mítica “confiança dos mercados”.
Faço estas rápidas ponderações com o fito não de naturalizar o fenômeno Trump e o movimento global de ascensão neofascista em que ele se insere, que decerto têm características próprias (como a retórica racista e destruição das políticas compensatórias para grupos vulnerabilizados), mas para situá-los em perspectiva, em sua linha de continuidade, rechaçando mistificações que embalam os liberais e mesmo parte da esquerda.
Visto assim em perspectiva histórica, o magnata estadunidense que caminha para se tornar autocrata (sobre as ruínas daquilo que nos foi vendido como um modelo de democracia), é menos o monstro da lagoa que emerge de súbito, surpreendendo a todos, do que a máscara que de repente cai, ou o espelho que passa a refletir uma verdade incômoda.
Como um zumbi de filme de terror, Trump é a expressão grotesca de uma velha ordem que precisamos definitivamente sepultar.
Pedro Amaral é escritor, mestre em Relações Internacionais e doutor em Letras (PUC-Rio). É autor do livro ”Meninas más, mulheres nuas – As máquinas literárias de Adelaide Carraro e Cassandra Rios” (Papéis Selvagens)
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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