Para além do dólar: um caminho para uma nova moeda internacional de reserva
Por Paulo Nogueira Batista Júnior*
É possível e desejável criar uma nova moeda internacional como alternativa ao dólar dos Estados Unidos?
O tema é controvertido. Muitos acreditam que não é possível, outros tantos que não é desejável. Faço parte da minoria que acredita que ela é não só possível, como desejável e talvez indispensável.
Já escrevi algumas vezes sobre a criação de uma nova moeda de reserva, inclusive aqui mesmo nesta coluna, há pouco mais de dois anos, em agosto de 2023 sob o título “Uma moeda BRICS?”
Desde então, desenvolvi a proposta de forma mais completa e abrangente, em trabalho que estou concluindo agora, com apoio da Cepal e do IPEA.
Vou resumir hoje alguns do principais aspectos da ideia. O que pretendo com isso é colocar em discussão uma alternativa inovadora que deve ser submetida a críticas, pois certamente precisa de aperfeiçoamentos e revisão.
Na história monetária mundial dos séculos recentes, o papel de moeda internacional foi desempenhado principalmente por moedas nacionais. Uma (ou algumas poucas) moedas nacionais, emitidas e gerenciadas por bancos centrais nacionais, serviram e servem de moeda internacional.
Como os objetivos nacionais do país ou países emissores geralmente não coincidem com os dos demais países, só por acaso a moeda internacional servirá de forma adequada os interesses dessas outras nações.
Precisamos, na verdade, de algo que não tem precedentes práticos: uma moeda internacional que não desempenha funções nacionais, como tentarei explicar. Mas antes mostro rapidamente que não há alternativas disponíveis ou eficientes no mundo hoje.
Descartando alternativas
As alternativas que temos ou são inconvenientes ou são improváveis.
Um cenário possível, por exemplo, seria continuarmos convivendo com o sistema dominado pelo dólar (e secundariamente pelo euro). Mas isso não convém aos países emergentes do Sul Global.
O sistema dólar é ineficiente, pouco confiável e até perigoso. Virou um instrumento de chantagem e sanções. Além disso, vai ficando cada vez mais clara a precariedade dos fundamentos monetários, fiscais e financeiros da economia dos EUA, o emissor da moeda hegemônica.
Será que o dólar poderia ser substituído, pelo menos em parte, por outras moedas do Norte Global?
Esse outro cenário também não se mostra factível. O euro sofre dos mesmos problemas que o dólar, pois também foi desvirtuado como instrumento de sanções. E a situação econômica da Europa é ainda mais problemática do que a dos EUA.
O iene japonês tem problemas semelhantes. O iene nunca chegou a desempenhar grande papel internacional; além disso, a economia japonesa não vai bem e não inspira confiança.
As outras moedas do Norte Global ou são pequenas demais (franco suíço, dólar canadense ou dólar australiano, por exemplo) ou sofrem também com as fragilidades das economias dos países que as emitem (Reino Unido).
O ouro, por sua vez, dada a intensa volatilidade do seu preço, não tem condições de substituir o dólar, a não ser parcialmente, como ativo de reserva para os bancos centrais e outros agentes econômicos (algo que já vem acontecendo e resultou em explosão do preço do ouro).
O único cenário que talvez apresente alguma viabilidade seria a internacionalização em larga escala da moeda chinesa. O renminbi vem se tornando mais importante no cenário mundial, refletindo o peso crescente da economia chinesa. Mas falta muito para que ele possa substituir o dólar de forma expressiva. E os chineses relutam em tentar.
Por quê? O assunto é complexo. Tento resumir.
Para que a internacionalização da moeda chinesa fosse viável, haveria pelo menos duas pré-condições: a livre conversibilidade e a disposição de permitir uma grande apreciação cambial.
O governo chinês hesita quanto a esses dois pontos – e com razão.
No caso chinês, livre conversibilidade significaria essencialmente remover os controles de capital, elemento central da política econômica chinesa nas últimas décadas, que muito contribuiu para a sua estabilidade.
A valorização externa do renminbi, por seu turno, ameaçaria a competitividade das exportações, uma das fontes principais de dinamismo da economia chinesa. Como se diz em futebol, por que mexer em time que está ganhando?
Mesmo que os chineses quisessem ou pudessem seguir o caminho da ampla internacionalização da sua moeda, fica uma pergunta: do ponto de vista dos demais países do Sul Global, não estaríamos trocando seis por meia dúzia? Uma outra moeda nacional, o renminbi, ocuparia o espaço deixado pelo dólar.
Não ficaríamos mais ou mesmo na mesma? O Banco Popular da China, um outro banco central nacional, substituiria a Reserva Federal dos Estados Unidos, o renminbi substituiria o dólar, em parte ou totalmente, e a China passaria a emitir o ativo de reserva mundial. O resto do mundo continuaria a experimentar, ainda que de forma talvez mais branda, os problemas que já enfrentamos hoje com o banco central estado-unidense.
Ou seja: há espaço para criar uma nova moeda de reserva. Qualquer proposta (há mais do que um caminho possível) enfrentará problemas geopolíticos (fundamentalmente a resistência dos EUA) e técnicos (não é fácil construir a estrutura institucional e operacional capaz de gerar confiança na nova moedas).
Mas enfrentar o desafio parece necessário, inclusive porque não se pode descartar que ocorra, nos próximos anos ou até nos próximos meses, mais uma crise financeira de grandes proporções nos mercados ocidentais de capitais, como o estouro da bolha acionária associada à inteligência artificial e a empresas de tecnologia.
Caso isso venha a ocorrer, a economia dos EUA e o dólar, já fragilizados, enfrentarão uma aceleração do seu declínio. Haverá uma busca desenfreada e desorientada de alternativas. Melhor, portanto, discutir alternativas sem demora.
Um caminho possível
Qual seria o melhor caminho para uma nova moeda?
Um caminho, em tese, seria lastrear a nova moeda em ouro, como tem sido cogitado por economistas russos. Contudo, esses economistas não resolveram, até onde sei, os problemas que essa alternativa encerra – notadamente o seguinte: como dar estabilidade a uma nova moeda apoiando-a em um ativo eminentemente instável? Pode ser que haja solução para isso, mas se existe não chegou a meu conhecimento.
Melhor seria dar confiança e lastrear a nova moeda de outra maneira. Vejamos como. Apresento a seguir uma discussão resumida dos aspectos essenciais.
Quem criaria a nova moeda? Só há uma possibilidade nas atuais circunstâncias internacionais – um grupo de países do Sul Global, algo como 15 a 20 países, que incluiria a maioria dos Brics e outras nações emergentes de renda média.
Esse grupo de países poderia delegar a emissão da nova moeda a uma das instituições existentes? Não, nenhuma tem condições de assumir essa missão com eficiência e confiabilidade.
Teria que ser criada, portanto, uma nova instituição financeira internacional – um banco emissor, cuja única e exclusiva função seria emitir e colocar em circulação a nova moeda.
Esse banco emissor não substituiria os bancos centrais nacionais e a sua moeda circularia em paralelo às moedas nacionais dos países do grupo patrocinador e em paralelo às demais moedas nacionais e regionais existentes no mundo. Ficaria restrita a transações internacionais, sem papel doméstico.
Não seria, portanto, ao contrário do que muitas vezes se diz, uma moeda tipo euro, ou seja, uma moeda única, emitida por um banco central único, que tomou o lugar das moedas europeias pré-existentes (marco alemão, franco francês, lira italiana etc.).
Como se garante o sucesso de uma moeda? O que faria a nova moeda ser amplamente utilizada? O essencial é assegurar confiança, o que depende da maneira como o novo arranjo monetário for construído do ponto de vista institucional.
O caminho que me parece mais viável incluiria, entre outros elementos, as seguintes garantias legais: 1) estabilidade da nova moeda em termos de valor; 2) a sua não utilização como instrumento de sanção ou pressão sobre países; 3) autonomia operacional do banco emissor; 4) limite máximo para sua emissão; e 5) lastreamento da moeda numa cesta de títulos públicos dos países patrocinadores.
Abordo os cinco pontos, em apertadíssima síntese, como dizem os advogados. O primeiro e o quinto demandam um pouco mais de espaço.
A moeda, primeiro ponto, ficaria baseada numa cesta ponderada das moedas dos países participantes e flutuaria, portanto, com base nas variações dessas moedas. Como todas as moedas da cesta seriam flutuantes ou flexíveis, a nova moeda também seria uma moeda flutuante.
Os pesos na cesta seriam dados pela participação do PIB PPP de cada país no PIB total do grupo de patrocinadores. A China ficaria com pelo menos 40/45% do total, dependendo da exata composição do grupo.
A cesta teria certa estabilidade proporcionada endogenamente pela presença nela de moedas tanto de países exportadores como de moedas de importadores de commodities. Essa estabilidade poderia ser reforçada exogenamente, estabelecendo-se que a média ponderada seria geométrica e simetricamente aparada. As moedas com grande flutuação, para além de limites pré-estabelecido, seriam temporariamente excluídas da cesta.
Segundo ponto: o compromisso explícito de não recorrer a sanções faria o contraste com a insegurança resultante do uso abusivo do dólar e do euro como base para punições e chantagem. Essa garantia legal seria reforçada pelo autonomia operacional do banco.
A autonomia operacional, terceiro ponto, seria assegurada concedendo aos presidentes e vice-presidentes do banco mandatos relativamente longos (cinco anos, por exemplo).
Isso passaria a mensagem de que o banco não estaria facilmente sujeito a interferências políticas e manobras diplomáticas dos seus fundadores. Esse tipo de autonomia é garantido em todas ou quase todas as organizações financeiras internacionais. Não protege totalmente o banco contra interferências, mas tem o seu valor.
A administração do banco teria que ser supervisionada por e prestar contas a representantes designados dos países patrocinadores, no Conselho de Governadores e na Diretoria, mas isso seria feito pelos canais institucionais normais, e não por pressões individuais sobre o presidente e os vice-presidentes.
Quarto ponto: um teto para a emissão proporcionaria certa proteção contra excesso de emissões. A nova moeda teria assim um freio que as moedas ocidentais não têm.
Mas esse teto seria um instrumento secundário, pois o mais relevante é a forma de lastreamento da nova moeda.
Quinto ponto, portanto: definir como lastro uma cesta da títulos nacionais dos países fundadores e daqueles que venham a se juntar depois. O banco emissor emitiria a nova moeda reserva (NMR) e novos títulos de reserva (NRB), cuja taxas de juro seriam atraentes, pois refletiriam os juros dos títulos das nações participantes, todas eles superiores às taxas dos títulos em dólares e euros.
A NMR seria plenamente conversível em NRB e estes, por sua vez, na cesta de títulos dos países participantes. O elevado peso da moeda chinesa, emitida por um país de economia sólida, favoreceria a confiança no lastro e na NMR.
A reação do Ocidente
A proposta tem as suas vulnerabilidades, discutidas em detalhes no trabalho em fase de finalização. Para não me alongar, destaco a que me parece mais grave – o risco de que a inciativa suscite reações negativas do Ocidente, que recorreria a ameaças e sanções contra os países envolvidos na criação de uma alternativa ao dólar e ao euro.
Esse risco é real. O Ocidente, em franca decadência, se mostra ainda mais arbitrário e violento do que em outras épocas.
O que temos de nos perguntar, entretanto, é o seguinte: vamos conviver indefinidamente com o sistema monetário e financeiro que o Ocidente criou desde a Segundo Guerra Mundial, um sistema crescentemente disfuncional, que vem sendo usado e abusado como instrumento geopolítico? Ou reunir esforços econômicos, políticos e intelectuais para sair dessa armadilha?
Os próximos anos dirão se os países emergentes estão à altura desse desafio.
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Versão resumida deste artigo foi publicado na revista Carta Capital.
*Paulo Nogueira Batista Júnior é economista e escritor. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais 10 países em Washington, de 2007 a 2015. Publicou pela Editora LeYa Brasil o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, segunda edição 2021, e pela Editora Contracorrente o livro Estilhaços, em 2024.