JUROS DO TRILHÃO
Por Paulo Kliass*
Enquanto Gabriel Galípolo segue na condução do Banco Central (BC) exatamente dando continuidade ao programa desenhado por seu antecessor Roberto Campos Neto (RCN), o País continua sofrendo todas as agruras de uma política monetária que se apresenta como assassina e suicida.
Longe de aparentar uma contradição, esta imagem evidencia a tragédia de um patamar de SELIC em 15%, provocando a morte de empresas, pessoas e projetos de mudança. E, por outro lado, ela também nos apresenta um projeto de política econômica em que o governo segue cavando lentamente a sua própria cova.
Já Fernando Haddad, no Ministério da Fazenda, mantém a ferro e fogo o garrote da austeridade fiscal a qualquer custo. Em sua verdadeira obsessão por limitar severamente a capacidade de gasto e investimento do Estado, o Professor do INSPER traça uma estratégia de imposição de limites, tetos, bloqueios e contingenciamentos que fazem corar os mais ortodoxos e monetaristas dos velhos (e nem tão velhos assim) tempos.
Suas adesões – tão inflexíveis quanto incompreensíveis – aos cânones do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) têm impedido Lula de cumprir com suas promessas de campanha. Já estamos entrando em seu 33° mês do terceiro mandato, de modo que faltam menos de 14 meses para que ele consiga realizar “mais e melhor do que fez entre 2003 e 2010” e também tomar providências para fazer “40 anos em 4”.
Ocorre que todo o esforço por ele desenvolvido para limitar as despesas orçamentárias se restringe à esfera das chamadas “contas primárias”. Pela metodologia do financês, isso significa que as contenções se limitam às contas não-financeiras.
Ou seja, as despesas financeiras, aquelas que se relacionam ao pagamento de juros da dívida pública, estas seguem livres e soltas para cresceram o que for do desejo dos responsáveis pela condução da política econômica do governo. Uma loucura!
É mais uma prova cabal de que os responsáveis pela administração pública seguem operando, de forma explícita e descarada, a favor dos interesses do topo de nossa pirâmide da desigualdade. As rubricas com políticas sociais vão sendo cada vez mais contidas e esmagadas pela lógica da chamada “responsabilidade fiscal”, ao passo que os dispêndios com o serviço dos títulos do endividamento público crescem a olhos vistos e sem nenhum instrumento de controle.
Juros seguem no comando
O BC divulgou há poucos dias seu Relatório da Política Fiscal relativo ao mês de julho. De acordo com a publicação, durante o sétimo mês do atual exercício foram dispendidos R$ 109 bilhões a título do pagamento de juros da dívida pública. Trata-se do segundo maior valor mensal desde que a série foi iniciada.
Esse montante só é um pouco mais reduzido do que os R$ 112 bi que foram gastos a este mesmo título em outubro do ano passado. Para se ter uma ideia da dimensão comparativa deste valor, basta relacioná-lo ao total que será executado com as emendas parlamentares o longo de todo o ano de 2025. De acordo com o estabelecido pelo Decreto 12.566, o total inicial previsto para os gastos a serem realizados pelo legislativo foram reduzidos de R$ 81 bi pra R$ 46 bi.
Assim, o que se depreende dos números é que, em apenas um único mês, o Estado brasileiro gastou com juros da dívida pública mais do que o dobro do que vai ser aplicado nas emendas parlamentares durante os 12 meses do presente ano. Aquilo que se considera como uma alocação equivocada e escandalosa de recursos públicos se revela como muito menos relevante do que os gastos realizados com os valores que são religiosamente pagos aos detentores dos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional.
Considerando-se que julho contou com 23 dias úteis em seu calendário, o que se pode calcular é que foram pagos R$ 4,7 bi de juros em cada um deles. Ou seja, em apenas 10 dias de julho foram gastos valores que se equivalem ao total das emendas atribuídas aos 513 deputados e 81 senadores ao longo de todo o ano de 2025.
Ao mesmo tempo em que o governo corre feito maluco e se desgasta politicamente cortando recursos da saúde, da educação, da previdência social, da segurança pública, do reajuste do salário-mínimo, da assistência social e outros, o orçamento sem controle das despesas financeiras bate recorde atrás de recorde.
Ora, já se falou que governar é estabelecer prioridades. Neste caso, o mais relevante para o governo parece ser o atendimento dos interesses da Faria Lima, da Febraban e das elites de forma generalizada.
A rota vergonhosa em direção ao trilhão
Computados os valores de julho, o total acumulado com o pagamento de juros em 12 meses segue se aproximando perigosamente da marca trágica de R$ 1 trilhão.
Entre agosto de 2024 e julho de 2025 esse valor somou R$ 941 bi. Se considerarmos apenas o período ao longo dos primeiros sete meses deste ano, o total com juros alcançou R$ 526 bi.
Esse valor é um pouco mais baixo do que o que foi gasto com essa rubrica em igual período do ano passado – R$535 bi. Ocorre que a tendência é que as despesas nos próximos meses sejam mais elevadas do que o ocorrido nos últimos 5 meses de 2024. Afinal, naquele período a taxa oficial de juros esteve entre 10,75% e 12,25%, enquanto atualmente está em 15% ao ano. Como a SELIC é a principal remuneração de base para os títulos da dívida púbica, o mais provável é que o montante de juros seja ainda maior até o final do presente ano. Esta é a principal razão para que analistas considerem a possibilidade de que o total atinja marca trilionária em breve.
Ao longo deste terceiro mandato, o governo Lula já destinou ao pagamento de juros da dívida pública o equivalente a R$ 2,1 tri em 31 meses (janeiro de 2023 a julho 2025).
De acordo com dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), o total destinado a esta mesma rubrica durante os 96 meses de seus dois primeiros mandatos (2003 a 2010) a valores presentes foi de R$ 2,6 tri.
É bem verdade que os números podem esconder a realidade de um estoque de dívida pública que cresceu entre os dois períodos comparados e também podem ocultar as variações distintas na taxa SELIC ocorridas ao longo dos anos.
Assim podemos utilizar o conceito do impacto do fluxo de juros pagos em relação ao PIB de cada ano. Neste caso, veremos que essa proporção alcançou uma média de 4,5% durante os oito anos dos mandatos iniciais. E que essa média anual sobe para 6,4% para o biênio 2023/24.
Ou seja, não apenas o volume de juros pagos cresceu em termos reais (descontada a inflação) na comparação tão proclamada por Lula durante a campanha eleitoral, mas também esse índice se elevou em mais de 42% em termos do impacto de juros sobre o Produto Interno.

Fonte: STN
A insistência em operar a política econômica mirando apenas no resultado primário tem provocado há mais de 3 décadas um enorme prejuízo na capacidade de o Estado brasileiro cumprir com suas obrigações constitucionais e oferecer serviços públicos de qualidade à maioria da população.
Além disso, ao priorizar o foco na busca de superávit nas rubricas não-financeiras, o setor público termina por promover uma auto redução na capacidade de investimento governamental, contribuindo para tornar impossível a promessa de Lula de realizar quatro décadas em apenas um mandato.
Esta impressionante distorção fica mais bem compreendida com a informação oferecida pela STN de que foram transferidos do Orçamento da União exatamente R$ 11,3 trilhões a título de pagamento de juros da dívida pública desde o início da série estatística em janeiro de 1997 até julho de 2025. Uma total insanidade!
Lula: assuma o comando da política econômica
Apesar do pouco tempo que ainda resta para as eleições e para a necessária reeleição, é essencial que Lula promova uma mudança de orientação em termos da essência e dos rumos de sua política econômica. Isso passa por definir uma meta de inflação mais realista (por exemplo 4,5% ao ano), com a retirada de argumentos do COPOM para manter a SELIC na estratosfera.
Além disso, é necessário romper com o dogmatismo ortodoxo e monetarista do NAF, liberando recursos do Estado para recompor as políticas públicas e para retomar a capacidade de investimento governamental em um Plano Nacional de Desenvolvimento (PND).
Isso significa redefinir o volume e a orientação das despesas financeiras, de modo a impedir que tal carga de juros de natureza parasitária e improdutiva impeça a realização das necessárias e urgentes despesas no setor real da economia e da sociedade.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.