Duas boas ideias ruins

O ‘planinho de saúde’ da Agência Nacional de Saúde Suplementar é uma farsa. Mas o que o ‘escambo sanitário’ significa para os rumos do SUS? A quem interessa o ‘planinho’ e o ‘escambo’?

Por Paulo Capel Narvai*, em A Terra é Redonda

Ao completar 37 anos em 17 de maio de 2025 o Sistema Único de Saúde (SUS) está posto, uma vez mais, frente ao dilema da Esfinge de Tebas.

“Decifra-me ou te devoro” encurralava os transeuntes das estradas de Tebas, a então poderosa cidade-estado grega, a criatura mitológica que tinha corpo de leão e cabeça de mulher. Para não ser devorado era preciso – como se sabe – decifrar um enigma. O resto é mitologia.

Desde que foi criado pelos constituintes de 1988, o SUS é frequentemente rondado pela Esfinge de Tebas, que coloca dilemas a seus dirigentes e defensores, a SUSistas e SUScidas, como eu costumo denominar quem defende nosso sistema universal de saúde e quem, por dentro ou por fora do SUS, o ataca e asfixia, buscando sua morte.

O primeiro desses muitos dilemas foi lançado, nos primeiros dois anos de vida do SUS, por Fernando Collor de Mello, que se recusava a aceitar a base municipal do sistema de saúde.

Não aceitava a transferência de recursos da União para estados e municípios e muito menos que houvesse participação popular no controle das ações e programas de saúde.

Fernando Collor de Mello chegou a vetar artigos inteiros do que viria a ser a lei 8.080, de setembro de 1990, que regulamenta a Constituição de 1988 (CF1988).

Mas, barrado nesse intento pelo Congresso Nacional, viu-se obrigado a sancionar, em 28 de dezembro daquele ano, a lei 8.142, dispondo sobre como deveria se dar no SUS a “participação da comunidade” inscrita na Constituição Federal de 1988 e como se fariam as transferências intergovernamentais de recursos financeiros do SUS.

Ao primeiro, seguiram-se, decerto, muitos dilemas que foram moldando o SUS, uma instituição do Estado brasileiro, até deixá-lo como o conhecemos hoje: um sistema estatal, cujos recursos públicos alocados para dar concretude ao direito universal à saúde são geridos predominantemente por particulares e no qual os profissionais não têm direito a uma carreira de Estado.

Não quero me alongar nos muitos dilemas do SUS, mas me ater a dois que se apresentam, neste contexto histórico, à consideração de SUSistas e SUScidas. São duas boas ideias ruins. A elas.

Primeira boa ideia ruim

A proposta de um plano de saúde popular. A “ideia genial” vem sendo acalentada há mais de uma década por setores mais vorazes que atuam no segmento de planos de saúde.

Alguns meses após o golpe que destituiu Dilma Rousseff, Ricardo Barros, o ministro da Saúde de Michel Temer, anunciou o apoio daquele governo à proposta, como um modo de “aliviar o SUS”.

Os planos populares de saúde, de custo muito abaixo da média dos planos regulares (“integrais”), driblam o rol de procedimentos obrigatórios (cobertura mínima) que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) fixa para as empresas privadas que fazem negócios no setor.

Para o ministro de Michel Temer, a nova modalidade de negócio com a mercadoria saúde poderia “contribuir com o financiamento do SUS”. Houve reação de vários segmentos sociais aos “planinhos” de Ricardo Barros e a proposta foi derrotada naquele momento.

Mas se a “boa ideia” de “planinhos” de “saúde” não prosperou no pós-golpe, ela volta agora, rondando o Lula3, como uma proposta da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

A notícia foi divulgada em 18 de abril de 2025 pela revista Veja, com o título “Lula avalia apoiar criação de plano de saúde popular de até 100 reais”, e logo repercutida em vários veículos da mídia corporativa.

Em vários setores da base, e mesmo entre dirigentes do governo, a iniciativa não foi descartada.

A proposta de um “planinho” de até 100 reais, para cobrir consultas e exames, com potencial de “atender 50 milhões de novos clientes”, segundo a matéria da Veja, foi recebida como uma boa ideia e algo que poderia contribuir sim para melhorar a popularidade de Lula, além de “desafogar o SUS”.

Parece mesmo ser essa uma boa ideia, fazer sentido e ter apelo popular. Afinal, quem não quer ser titular de um plano de saúde?

Como não houve um desmentido oficial da matéria da Veja, muitos apoiadores do Lula3 ficaram confusos e, estranhando o silêncio oficial, se manifestaram em mídias sociais, posicionando-se contrariamente aos “planinhos”.

Mais uma vez, a reação foi imediata e contundente, por parte de entidades e movimentos sociais de saúde que, em coisas assim, costumam ir além das aparências.

Logo vieram os argumentos demonstrando a fragilidade dos “planinhos”, pois no que importa do cuidado em saúde, não resolvem coisa alguma, apenas redirecionando a demanda para o SUS.

Essa prática de “enviar para o SUS” é, aliás, a tônica dos planos de saúde, mesmo os ditos “integrais”.

Quando as coisas ficam complexas, ou os custos muito elevados, ampliam-se as recusas de atendimento.

As pessoas são simplesmente abandonadas em suas necessidades, ainda que tenham pagado mensalidades por anos e anos. É que os contratos, que se costumam equivocadamente denominar de “planos de saúde”, não correspondem a nenhum “plano”, muito menos de “saúde” – pois procedimentos, operações, exames e mesmo medicamentos são destinados a recuperar doentes e não a lhes proteger a saúde.

Não são, portanto, “planos de saúde”, mas apenas seguros que se valem do SUS como um resseguro, financiado com recursos públicos, que lhes garantem lucros polpudos.

O lucro líquido do conjunto das empresas que operam no setor foi de R$ 11,1 bilhões em 2024, cerca de 10% do lucro líquido obtido no mesmo ano pelos quatro maiores bancos que operam no Brasil, da ordem de R$ 114 bilhões.

Nada mal, do ponto de vista empresarial. Nem Pollyana, a que busca sempre ver o lado bom de todas as coisas, acreditaria que lucrando tanto, as empresas que vendem “planos de saúde” estariam preocupadas em “desafogar o SUS” ou “contribuir para o seu financiamento”.

Em 24 de abril de 2025 o Ministério Público Federal (MPF) publicou uma “Nota Técnica”, elaborada por sua Comissão de Saúde da Câmara do Consumidor e da Ordem Econômica, destacando que os “planinhos” não estão previstos na lei 9.656/1998, que regulamenta os planos de saúde, e que a proposta da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) apresenta várias lacunas, tendo sido elaborada sem a participação de representantes do Ministério da Saúde e de gestores do SUS.

Isso é considerado indispensável, pois “a criação dos planos de saúde limitados pode onerar ainda mais o SUS em vez de desafogá-lo”.

O MPF pede para a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) “reformular a proposta e reabrir as discussões com o Ministério da Saúde” para buscar um modo de “conferir uma proteção mais adequada aos 52 milhões de brasileiros que atualmente possuem planos de saúde, bem como demonstrar como a interconexão com o SUS atenderá ao interesse público e à eficiência”.

“Planinhos” são, portanto, uma boa ideia ruim.

Aliás, para começar a melhorar as coisas, que seguem muito ruins nessa área, os planos “integrais” – e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que os regula – deveriam estar cada vez menos sob controle do setor securitário e cada vez mais sob controle de conselhos e conferências de saúde, além dos órgãos administrativos públicos de controle rotineiro das atividades que afetam a saúde da população.

Para a revista Veja, “a ideia é incluir a criação do plano [o “planinho”] na carona do pacote que envolve o projeto do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que prevê transferir atendimentos do SUS para hospitais privados”. E esta é a segunda boa ideia ruim.

Segunda boa ideia ruim

A boa ideia é criar uma espécie de “escambo sanitário” (sem conotação pejorativa) que se traduz na seguinte equação: se pessoas jurídicas devem ao SUS e o SUS é do governo, então elas poderiam pagar suas dívidas com o governo, produzindo serviços de saúde para o SUS.

Dentre essas pessoas jurídicas estão as empresas que vendem seguros denominados “planos de saúde”, pois sua clientela é atendida frequentemente em unidades do SUS, o qual deveria, por lei, ser ressarcido.

Os mecanismos para isso são ruins e a precariedade (deliberada, segundo alguns) contribui para calotes milionários, continuados, ao SUS.

A boa ideia ruim é fazer o escambo sanitário em que “todos ganhariam”, pois o governo não daria isenções nem perdoaria dívidas – o que, segundo se argumenta, faz aos montes em todos os setores econômicos –, e a população ganharia, tendo acesso a serviços privados, ao invés de esperar semanas, meses e mesmo anos por serviços do SUS. O escambo possibilitaria, segundo esse ponto de vista, “acabar com as filas para exames e cirurgias pelo SUS”.

Com essa equação posta na mesa, o Ministério da Saúde pretende dar grande impulso ao programa Mais Acesso a Especialistas. A “compra” de serviços de saúde junto ao setor privado seria “paga” com os créditos dessas dívidas. Parece mesmo uma boa ideia. Mas não é.

O núcleo do problema dessa ideia boa é que seu fundamento é o “pagamento por unidade de serviço”. Isso transforma a boa ideia numa ideia ruim.

No livro “SUS: uma reforma revolucionária”, conto, lá pelas tantas, a história que ouvi de Carlos Gentile de Mello, em palestra que fez em Curitiba, ainda nos anos 1970, em que uma vez mais ele mencionara o bordão que o marcaria para sempre: a afirmação de que “o pagamento por unidade de serviço é um fator incontrolável de corrupção”.

Contou, bem-humorado, que de tanto ouvi-lo dizer que “o pagamento por unidade de serviço é um fator incontrolável de corrupção”, quando alguém o procurava pelo telefone e ele não estava, todos em sua casa explicavam que ele não estava e completavam: “mas ele mandou dizer que o pagamento por unidade de serviço é um fator incontrolável de corrupção”.

Carlos Gentile de Mello foi um crítico contundente e reiterado do modelo que se consolidara na medicina previdenciária e que, como modelo, como se vê, segue bem vivo.

Articulista por vários anos da Folha de S. Paulo, o jornal publicou em 28/10/1982 uma nota quando ele faleceu, afirmando: “Crítico do modelo de medicina previdenciária adotado no Brasil, Gentile entendia que a forma de remuneração dos hospitais particulares conveniados do Inamps, baseada no pagamento por Unidade de Serviço, induz ao superfaturamento e à proliferação de atos médicos desnecessários provocando a exaustão dos recursos destinados à assistência médica”.

O reconhecimento de que o direito ao cuidado em saúde é também do interesse de toda a sociedade e, por essa razão, não pode ser mercantilizado, foi um dos valores muito caros aos que integraram o movimento da Reforma Sanitária que nos legou o SUS, inscrito na Constituição Federal de 1988. Um valor que segue sendo irrenunciável para os SUSistas contemporâneos.

Mas a proposta de escambo sanitário divide no momento os que se identificam com a defesa do SUS.

Para um segmento, que poderia ser identificado como “mais institucionalista”, quem deve aos governos deve pagar suas dívidas – em dinheiro. E o governo, em cada ente federativo, deve decidir o que fazer com os recursos provenientes do pagamento de dívidas.

A proposta de escambo sanitário é vista, nesse segmento, como indesejável e prejudicial ao SUS, pois induz, reforçando-o ainda mais, o modelo hegemônico de atenção à saúde, que é hospitalocêntrico, centrado na assistência médica, e que se desenvolve com base no que produtores privados de cuidados médicos querem oferecer à população, via SUS.

Defendem que, ao contrário, o modelo de atenção à saúde contra-hegemônico, que vem sendo defendido desde a criação do SUS, por conselhos e conferências de saúde, entidades de profissionais e movimentos sociais de saúde, é o oposto, buscando-se fortalecer a atenção básica à saúde, centrado na clínica ampliada, com prioridade para atividades de promoção da saúde e prevenção de doenças e, sobretudo, que tenham como base não o que produtores querem vender ao SUS, mas as necessidades em saúde das populações dos diferentes territórios.

Isso implica fazer e valorizar o planejamento local ascendente, com cogestão participativa das unidades do SUS, por representantes da administração pública, trabalhadores da saúde e usuários do sistema público de saúde.

Para o segmento “institucionalista”, ao agir hoje deve-se pensar nas consequências dessas ações para o SUS, a médio e longo prazos, pondo em prática soluções que tenham impacto epidemiológico, base em evidências científicas e que não coloquem em risco a sustentabilidade do sistema.

Em outro polo está o segmento que poderia ser denominado de “mais pragmático” e que sustenta que as necessidades da população são urgentes e “não podem esperar”.

Nessas situações é necessário implementar o quanto antes medidas que correspondam a respostas eficazes e eficientes para as demandas populares, como as que se referem a consultas com especialistas, exames e cirurgias buscados pelas populações, em todos os municípios.

Os pragmáticos consideram que houve nos últimos anos uma expressiva ampliação da oferta de recursos tecnológicos no setor privado e que não haveria motivos para o SUS não se beneficiar desses recursos, colocando-os à disposição de todos, mas sempre sob controle do SUS.

De acordo com matéria publicada por Edjalma Borges, do Ministério da Saúde, no site gov.br, o presidente Lula autorizou que o Ministério da Saúde, em conjunto com a Casa Civil e outros ministérios, avance na construção de propostas para viabilizar o plano.

Edjalma Borges informou ainda que o ministro Alexandre Padilha “tem urgência em fazer essas ações acontecerem logo”, como é o caso da “entrega de novos equipamentos de radioterapia em unidades do SUS por todo o país, o que vai permitir reduzir o tempo de espera para o início do tratamento”.

Não há, porém, informações que detalhem o plano, o que tem causado um grande mal-estar mesmo em setores pragmáticos que atuam politicamente nas bases de apoio do Lula3, pois tal como anunciado, o plano de troca de dívidas por unidades de serviços (consultas, exames, cirurgias) consolida e institucionaliza mecanismos de financiamento do SUS que voltam a centralizar no governo federal, como queria Fernando Collor de Mello nos dois primeiros anos de vida do SUS, o sistema público de saúde do país.

Nesse “novo modelo”, dizem, teria fim o SUS como um sistema federativo, descentralizado, constituído por redes de unidades de diferentes níveis de atenção, e gerido sob coordenação nacional do Ministério da Saúde e coordenação local municipal – pelo menos no que se refere à atenção secundária (ambulatórios de especialidades) e terciária (hospitais).

Essa opção, além de violar a Constituição de 1988 e a legislação vigente que regulamenta dispositivos constitucionais sobre o direito universal à saúde, daria nova formatação à governança do SUS, com o governo federal chamando para si decisões sobre consultas, exames, cirurgias e demais ações e operações da assistência à saúde em todo o país.

“Mas acontece” – ponderam especialistas em gestão pública –, “que o ministério da Saúde não tem a menor condição de administrar isso de modo centralizado”.

Exemplificam a impossibilidade, argumentando que “a Pasta não consegue sequer administrar diretamente o Programa Mais Médicos, demandando a participação de terceiros para gerenciar o programa”.

“Ninguém está entendendo o que a Casa Civil tem a ver com a gestão cotidiana do SUS”, ouvi de uma colega sanitarista. “É um absurdo; não faz o menor sentido”. Ponderei que “essa relação direta do governo federal com gestores hospitalares é o que vem sendo feito há décadas com o socorro financeiro às Santas Casas, para resolver as insolvências e a quebradeira que marca essas organizações”.

Em resposta, ouvi que “pois então, é isso que precisa ser enfrentado e resolvido. Se o governo federal quer tirar estados e municípios da gestão do SUS, então deveria criar uma empresa pública, ou algo similar, para cuidar disso. O ministério da saúde não dará conta e acabará desmontando o que foi construído em mais de 30 anos”. Agradeci o comentário e encerrei a conversa.

E você, caro leitor, cara leitora, o que pensa das posições de institucionalistas e pragmáticos? O escambo sanitário é mesmo uma boa ideia ruim? Ou seria mesmo uma boa ideia?

Para ajudá-lo(a) a se decidir, digo que no início desse artigo mencionei a personagem Pollyana. Volto, a propósito, a um artigo publicado no site A Terra é Redonda, por José Damião de Lima Trindade em que, em certo trecho, cita Hegel para quem “descobrimos o que uma coisa é, não pelo seu ‘lado’ bom – ou ruim, tanto faz – mas pelo rumo principal, pelo rumo determinante do seu movimento”.

Em nosso caso, tendo em vista suas consequências para o SUS, a que rumo principal, determinante do seu movimento, nos remete a boa ideia ruim da proposta dos “planinhos” da ANS? E a que rumo principal, determinante do seu movimento, nos remete a proposta de escambo sanitário?

Mas fique tranquilo, você não está frente à Esfinge de Tebas. Se não decifrar esses enigmas, não será devorado. Você, leitor(a), não. Mas pense no SUS.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica). [https://amzn.to/46jNCjR]

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 03/05/2025