Pato Donald e a exploração imperialista
por Francisco Fernandes Ladeira
Recentemente, tive contato com o clássico “Para Ler O Pato Donald: Comunicação de Massa e Colonialismo”, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart. O livro em questão denuncia como os quadrinhos da Disney (propagandista do american dream of life) representam tacitamente os antagonismos de classes e as relações potências imperialistas/países dependentes.
Neste mundo idealizado do entretenimento, a partir dos interesses das classes dominantes estadunidenses e internacionais, só existem dois setores da economia: primário (atividades ligadas à natureza) e terciário (comércio e serviços). O setor secundário é estrategicamente omitido, pois a produção industrial dá origem à sociedade contemporânea e é a base do poder da burguesia e do imperialismo.

Consequentemente, todo o processo produtivo por trás de uma determinada mercadoria é ocultado nas obras da Disney. “Se os burgueses têm o capital e são os donos dos meios de produção agora, não é porque alguma vez exploraram alguém ou acumularam sem validade”, escreveram Dorfman e Mattelart. Não existe extração de mais-valia; tampouco proletariado enquanto classe. Nos quadrinhos, a única figura que lembra minimamente um trabalhador, em suas vestimentas, é o Lobo Mau. Não por acaso, o vilão.
Na ausência do proletariado, os únicos “inimigos” dos donos dos meios de produção são os Irmãos Metralha. Porém, como bandidos, eles desejam o dinheiro para serem burgueses, se converterem nos exploradores, e não para abolir a propriedade (papel do proletariado, enquanto classe potencialmente revolucionária). Portanto, no mundo de Disney, dos polos do processo capitalista, produção e consumo, só há espaço para o segundo.
Já as relações entre potências imperialistas e países dependentes estão presentes nos quadrinhos quando Pato Donald e companhia se aventuraram em lugares (imaginários, mas nem tanto) como Frigi-Frigi, Lejanostán, Franistán, Lejana Congolia, Inestablestán, Azteclano, Azatlán e Ixtikl do Sul. Apesar de distantes geograficamente, todos esses pontos citados têm algo em comum, os “selvagens” são vistos como crianças: afáveis, despreocupadas, ingênuas, alegres, confiantes, felizes. Têm ataques de raiva quando são contrariados. Assim, é muito fácil enganá-los. O turista cauteloso levará algumas quinquilharias e seguramente poderá trazer mais de uma joia nativa, ou até mesmo prata e ouro.
Como os “selvagens” são supersticiosos e imaginativos, sem preocupações, para eles, riquezas e tesouros nada servem. Logo, podem ser explorados e entregues de bandeja para Donald e sua turma. São saqueados, sem qualquer tipo de sentimento de culpa por parte do “civilizado”.
Com esse mundo idealizado, ressaltam Dorfman e Mattelart, Disney “traduz nos quadrinhos as relações de truques que os primeiros conquistadores e colonizadores (na África, Ásia, América e Oceania) tiveram com os indígenas: troca-se um inútil produto da superioridade (europeia ou norte-americana) e leva-se o ouro (as espécies, o marfim, o chá etc)”.
Assim, essas organizações sociais “selvagens” são caricaturadas como atrasadas, mas sem revelar a causa de seu atraso. Nenhuma menção aos países dependentes serem mantidos nesta condição pela divisão internacional do trabalho, que os condena a limitar todo desenvolvimento que pudesse dar-lhes independência econômica. “Disney expulsa o produtivo e o histórico de seu mundo, como o imperialismo proibiu o produtivo e o histórico no mundo do subdesenvolvimento, […] constrói sua fantasia imitando subconscientemente o modo por que o sistema capitalista mundial construiu a realidade, e tal como a deseja continuar armando”, concluem Ariel Dorfman e Armand Mattelart.
Décadas após os quadrinhos da Disney rodarem o mundo, as relações desiguais entre países centrais e periféricos continuam; mas com outras roupagens, mais sofisticadas. No caso de uma sociedade como a brasileira, amplamente impactada pelo american dream of life, não faz mais sentido falar que os “selvagens” não querem aderir ao consumismo capitalista (logo, suas riquezas nada servem).
Diante dessa realidade, o que o Pato Donald – ou seja, os países imperialistas – faz para que entreguemos nossas riquezas ou não tenhamos acesso a elas? Decerto, não pode fazer como os portugueses do período colonial, que trocavam o trabalho dos indígenas por bugigangas e quinquilharias.
No Brasil contemporâneo, para a entrega de nossos recursos, Donald se transformou em outro pato, o da Fiep, em torno do qual dançou a classe média, vestindo verde e amarelo, pedindo impeachment de Dilma Rousseff, que, entre outras trágicas consequências, permitiu aos grandes capitalistas o acesso privilegiado ao nosso pré-sal. Lembrando Paulo Freire, por aqui, o oprimido nem sonha em ser o opressor; já se satisfaz entregando seus recursos naturais mais valiosos.
Em relação ao não usufruto de nossas riquezas, Pato Donald se veste de ambientalista.
Como bem denunciou Ha-Joon Chang, os países desenvolvidos alcançaram tal patamar a partir de práticas protecionistas e da exploração de recursos naturais (seus e de outros territórios mundo afora). Porém, estes países sugerem aos seus congêneres, considerados subdesenvolvidos, exatamente o oposto: abram seus mercados e não explorem seus recursos naturais. Buscam “chutar a escada” pela qual subiram ao topo, ao impedir que os países em desenvolvimento adotem as políticas que eles próprios usaram.
Nessa lógica, discursos como “desenvolvimento zero” não se tratam de qualquer preocupação com a natureza. São formas de impedir que os países pobres cresçam economicamente e possam competir com as potências imperialistas, mantendo assim suas condições de subalternidade.
Isso permite, por exemplo, ao Pato Donald (isto é, o imperialismo) dizer para o Brasil não explorar petróleo na chamada “Margem Equatorial”, alegando risco ambiental, mas, ao mesmo tempo, fazer procedimento similar na vizinha Guiana, a partir da gigante Exxon Mobil.
Desse modo, enquanto Donald (e a indústria cultural de maneira geral) continuar com poder e representação coletiva, imperialismo e burguesia poderão dormir tranquilos. E, o que é pior: com a conivência das classes dominantes entreguistas dos Azteclano, Azatlán, Ixtikl do Sul etc.
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Francisco Fernandes Ladeira é professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)
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