Medida cria fundo bilionário de infraestrutura e isenta gastos com defesa do “freio da dívida”, permitindo endividamento ilimitado para armar a Alemanha. Votação era prova de fogo para futuro governo de Friedrich Merz.
O Parlamento da Alemanha (Bundestag) aprovou nesta terça-feira (18/03) uma proposta histórica para afrouxar o “freio da dívida” do país e criar um superpacote de gastos em defesa e infraestrutura. A votação era encarada como crucial para viabilizar uma futura coalizão de governo sob a liderança do conservador Friedrich Merz, líder da União Democrata Cristã (CDU) e principal promotor do afrouxamento da regra constitucional.
A mudança flexibiliza os limites de endividamento do governo, permitindo gastos ilimitados com defesa. Aumenta ainda a capacidade de endividamento dos estados e cria um fundo especial de 500 bilhões de euros para investimentos em infraestrutura para os próximos dez anos.
Foram 513 votos a favor da mudança e 207 contra. Eram necessários dois terços dos 733 deputados da Bundestag para aprovar a mudança constitucional.
As bancadas da CDU, do Partido Social-Democrata (SPD) e do Partido Verde votaram em peso a favor. Já os deputados do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) e do fiscalmente conservador Partido Liberal Democrático (FDP, na sigla em alemão) votaram contra.
Agora, a proposta ainda terá que passar pelo Bundesrat, instituição legislativa com 69 membros que representam os governos dos 16 estados federais da Alemanha. Neste caso, também serão necessários dois terços dos votos. A expectativa é que a votação ocorra na sexta-feira.
Proposta enfrentou resistência no Parlamento
A votação foi precedida por intensos debates. Nos últimos dias, vários partidos de oposição chegaram a tentar acionar o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha para tentar barrar a votação, argumentando que uma mudança constitucional de tal envergadura não poderia ocorrer na reta final da atual legislatura do Bundestag. A Corte, no entanto, rejeitou os pedidos.
Ainda assim, membros de partidos críticos da reforma constitucional deixaram clara sua insatisfação nos debates que precederam a votação desta terça-feira. Deputados da nanica sigla populista de esquerda BSW chegaram a protestar com cartazes no plenário. As mensagens diziam “1914-2025: Não aos créditos para a guerra”.
Merz e a CDU, junto com seu parceiro bávaro, a União Social Cristã (CSU), e o SPD, haviam anunciado o plano de afrouxamento no início do mês, com a intenção de que ele fosse aprovado ainda nesta legislatura – ou seja, antes da posse do novo Parlamento (Bundestag), em 25 de março.
A estratégia foi traçada diante do temor dos conservadores e social-democratas – que no momento negociam a formação de uma coalizão de governo – de que o plano fosse barrado na nova legislatura pela ultradireitista AfD e a legenda A Esquerda, que ampliaram seu espaço no Bundestag e terão cadeiras suficientes para bloquear reformas constitucionais de tal envergadura.
Ainda assim, as bancadas de CDU/CSU e SPD dependiam de alianças adicionais nesta legislatura, já que não contavam com a maioria de dois terços necessária para alterar a regra.
O impasse foi superado na última sexta-feira, quando Merz anunciou que o Partido Verde, que atualmente tem a terceira maior bancada, havia decidido apoiar a iniciativa, após uma resistência inicial. Com suas bancadas somadas, o quarteto de legendas conseguiu reunir deputados em número suficiente para alterar o “freio da dívida”, em vigor desde 2009 e que vinha limitando severamente a capacidade de endividamento do país.
Mudança de paradigma
A reforma do “freio da dívida” marca uma reversão das regras de empréstimo impostas após a crise financeira global de 2008, adotadas pela então chanceler federal Angela Merkel em 2009. De acordo com a proposta, qualquer gasto militar superior a 1% do PIB ficará de fora do freio.
Durante a campanha eleitoral, Merz foi ambíguo sobre sua intenção de reformar o freio da dívida, com alguns líderes de seu partido se pronunciando radicalmente contra a medida.
A falta de consenso sobre a flexibilização dos limites de endividamento do governo federal foi um dos principais pontos que levou ao colapso da coalizão de governo do atual chanceler federal, o social-democrata Olaf Scholz. Os liberais do FDP, que governavam com Scholz, rejeitavam a medida. Já os social-democratas e verdes diziam que ela era necessária para financiar investimentos em infraestrutura.
Passada a campanha, porém, Merz passou a enfatizar a urgência de aumentar os gastos com defesa, citando as crescentes hostilidades da Rússia e as incertezas sobre o apoio militar dos Estados Unidos à Europa.
Impacto no crescimento e endividamento
Economistas apontam que a mudança da regra deve ter um impacto profundo na economia. Somente o fundo de infraestrutura de 500 bilhões de euros planejado pela Alemanha pode aumentar a produção econômica em uma média de mais de dois pontos percentuais por ano na próxima década, estimou o instituto econômico alemão DIW.
A soma de gastos com defesa e infraestrutura pode garantir um crescimento de 2,1% já em 2026, em vez de 1,1%, disse o DIW.
Outro instituto, o IfW, também revisou para cima sua estimativa de crescimento para 2026 na Alemanha, prevendo uma expansão de 1,5% devido ao aumento esperado nos gastos públicos.
Já o instituto econômico IMK, que ainda não atualizou suas previsões, projeta que a economia alemã deve registrar apenas 0,1% de crescimento este ano, após dois anos consecutivos de contração em 2023 e 2024, mas disse que as novas propostas podem fazer uma grande diferença. “Se o pacote financeiro for implementado rapidamente, uma aceleração significativa do crescimento já pode ser esperada no segundo semestre do ano, e o crescimento do ano como um todo já poderá se afastar visivelmente da estagnação”, disse o diretor econômico do IMK, Sebastian Dullien.
Por outro lado, economistas também preevem que a relação dívida/PIB deve aumentar significativamente nos próximos anos por causa da reforma. No ano passado, o índice de endividamento da Alemanha ficou em torno de 64% do produto interno bruto (PIB), muito inferior ao de outros grandes países industrializados, como os Estados Unidos e a França.
Mas o economista-chefe do Commerzbank, Jörg Kraemer, espera que esse nível aumente consideravelmente nos próximos anos – em cerca de 10 pontos percentuais – devido ao novo fundo especial para infraestrutura.
O aumento dos gastos com defesa também deve elevar ainda mais o índice da dívida, em pelo menos 2,5 pontos percentuais por ano se, por exemplo, o aumento alcançar 3,5% do PIB.
“Em dez anos, o índice geral de endividamento do governo poderia subir para 90%, embora isso também dependa da inflação e, portanto, não seja fácil de prever”, disse Kraemer.
Publicado originalmente pelo DW em 18/03/2025