“Parirás com dor” é a condenação lançada sobre Eva no Gênesis. Brasil, 2025, e a sentença segue em vigor — não por ordem divina, mas por decisão social. E pesa, sobretudo, sobre os corpos das mulheres negras, pobres, periféricas. A dor, nesses casos, deixou de ser castigo bíblico e passou a ser política de Estado.

Desde a Antiguidade, a humanidade conhece e aplica métodos para aliviar a dor do parto: massagens, banhos, ervas, posições, rituais, ópio. O alívio da dor nunca foi tabu para a ciência — mas quase sempre foi privilégio. E continua sendo uma questão de poder.

Com o avanço das tecnologias médicas, surgiram técnicas eficazes de analgesia, como os bloqueios — documentados já há quase um século. Ainda assim, o acesso continua a obedecer a filtros persistentes: classe, raça e gênero. Mesmo entre mulheres com acesso à saúde privada, a analgesia no parto normal é rara. O sistema favorece a cesárea agendada, ignora o parto vaginal e, muitas vezes, sequer apresenta a analgesia como opção.

Não à toa, o Brasil ostenta uma das maiores taxas de cesárea do mundo: no setor privado, 85% dos partos — mais de cinco vezes o limite recomendado pela OMS. Muitas dessas cirurgias são motivadas pelo medo, pelo cansaço, pelo sofrimento e pela ausência de alternativas reais. Já no SUS, o alívio da dor é negado sob uma lista de pretextos — e, por vezes, por puro desprezo. Aqui, a dor também é usada para ensinar: ensinar que quem não pode pagar deve se contentar com menos. Que pedir alívio é excesso. Que desejar conforto é ousadia. O sofrimento vira prova moral: se é gratuito, que seja com dor. Se é público, que não haja escolha. A ausência de analgesia torna-se castigo silencioso por não ter plano de saúde — e o parto, um lembrete cruel de que a dignidade ainda é um privilégio de classe.

A pesquisa Nascer no Brasil, coordenada pela Fiocruz, mostrou que apenas um terço das mulheres que têm parto vaginal recebe algum tipo de analgesia. No SUS, esse número não passa de 10%. E, como escancara o estudo A Cor da Dor, essa negação tem cor e endereço. Mulheres negras têm menos chance de receber anestesia do que mulheres brancas na mesma maternidade — uma desigualdade que atravessa o mesmo espaço e a mesma hora, mas não os mesmos corpos. A dor delas não é aliviada. É ignorada.

As mesmas mulheres que, no Brasil escravocrata, foram forçadas a parir para alimentar o sistema econômico, hoje seguem sendo as que mais morrem no parto. As que mais sofrem violência obstétrica. As que menos recebem cuidado. Esses números apenas confirmam aquilo que a experiência há muito denuncia: não se trata apenas de dor. É um sofrimento naturalizado, inscrito como destino. Os corpos das mulheres negras, pobres, periféricas são tratados como mais resistentes, mais preparados para aguentar — herança de um cuidado colonial que decide quem merece alívio e quem pode suportar. Como se, nesses corpos, a dor fosse norma. E o cuidado, exceção.

A própria Fiocruz reconhece que a ausência de anestesistas nas maternidades é um dos principais obstáculos ao acesso à analgesia. Em 2023, especialistas reunidos em fórum nacional apontaram a urgência de inserir esses profissionais no cenário do parto vaginal. É um dado técnico. Mas também é um dado político. Porque essa mesma ausência não se verifica em outros contextos.

Em Alphaville, São Paulo, está em construção um hospital privado com vinte salas de centro cirúrgico dedicadas exclusivamente a transplantes capilares. O couro cabeludo do homem de meia idade, ao que tudo indica, tornou-se prioridade sanitária. Não uma emergência clínica, mas uma prioridade de mercado. Assim como há uma indústria milionária em torno da disfunção erétil, enquanto doenças infecciosas reemergem nas periferias, também há uma mobilização de uma legião de anestesistas para a primeira linha da fronte dos calvos. Cada testa, uma trincheira. Para o parto com dignidade, não há convocação.

A lógica não é clínica. É econômica. A analgesia, como tantas outras técnicas desenvolvidas para aliviar o sofrimento e ampliar a liberdade humana, está disponível. Mas sua aplicação não é regida pela necessidade, e sim pelos interesses do mercado. A técnica, quando capturada pelo mercado, deixa de libertar e passa a excluir.

Esse contraste revela mais do que desigualdade. Revela um projeto — um sistema que transforma a dor em ferramenta de controle e legitima o sofrimento feminino como punição simbólica. A institucionalização da dor no parto não é um acidente ou falha do cuidado, mas parte de uma lógica que associa maternidade à expiação. Uma herança de misoginia, reforçada por práticas médicas e políticas públicas, que transforma o parto em rito disciplinador, onde a mulher deve provar, em dor, o preço de seu desejo e de seu corpo.

No Brasil neoliberal, onde o direito é constantemente transformado em serviço e o cuidado em mercadoria, o sofrimento só mobiliza recursos quando pode ser convertido em faturamento. O parto, nesse sistema, não é uma experiência — é uma operação. A lógica da saúde deixou de ser clínica para se tornar contábil — guiada por planilhas, não por parturientes. Onde há retorno, há técnica. Onde há só dor, resta espera.

Mas é preciso fazer uma distinção essencial: a dor faz parte do parto, o sofrimento não. A dor pode ser fisiológica, significativa, até desejada por algumas mulheres. O sofrimento começa quando essa dor é vivida sem escolha, sem acolhimento, sem alternativa. Quando a mulher quer analgesia e não encontra. Quando pede ajuda e escuta que “é assim mesmo”. Quando a dor é usada como ferramenta de controle — e, no lugar da anestesia, o que recebe é uma cesárea não desejada ou um julgamento moral: faltou preparo, faltou força, faltou querer de verdade. Humanizar o parto não é eliminar a dor. É garantir que a mulher tenha autonomia para decidir o que fazer com ela. E isso passa pelo acesso — efetivo e informado — a tudo o que a ciência já construiu para aliviar o sofrimento, não para impor o silêncio. Humanizar também é dar acesso, quando necessário, a tudo o que a humanidade produziu.

Antes de concluir, é preciso dizer que o sofrimento não tem sido enfrentada em silêncio. Há quem lute. Mulheres, doulas, obstetrizes, enfermeiras, médicas, usuárias do SUS, movimentos de humanização do parto e redes de apoio em territórios populares têm resistido ao projeto de sofrimento e abandono. Elas denunciam, constroem alternativas, reencantam o cuidado e reconstróem a autonomia. E seguem exigindo aquilo que não é luxo: um parto digno, informado, sem violência, com escolha.

Parir com dor pode ser uma escolha. Parir com sofrimento, não. O problema nunca foi a dor. O problema é não poder decidir. A analgesia de parto não é luxo. É dignidade. E o que está em jogo não é conforto, mas autonomia. O conhecimento existe. Os profissionais também. O que falta — ainda — é vontade política para tornar esse cuidado universal. A dor não é castigo. A escolha de ignorá-la, sim.

A dor no parto, no Brasil, não é um efeito colateral. É um instrumento de poder. Ela reforça o lugar social de quem deve servir, obedecer, calar.

Eva já foi perdoada há muito. Falta agora perdoar as Marias.

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Last Update: 22/04/2025