‘Parem de nos matar’: ato em SP reúne milhares de mulheres em grito de revolta contra feminicídios e falhas em políticas de proteção

A revolta contra a violência que, todos os dias, acaba com a vida de ao menos quatro mulheres no país e expõe a epidemia de feminicídios em curso estava presente nos cartazes, nas palavras de ordem, no choro e até mesmo no silêncio das manifestantes que ocuparam a avenida Paulista, em São Paulo (SP), neste domingo (7). Reunidas nas imediações do Museu de Arte de SP (Masp), cada uma delas carregava um apelo imperativo em comum: parem de nos matar!

A concentração para a mobilização nacional “Mulheres Vivas” começou ao meio-dia na capital paulista. Aos poucos, a avenida, que em outro ponto recebia manifestação bolsonarista, começou a ser ocupada por uma diversidade de corpos, de diferentes regiões do estado. Uma delas é a professora de educação infantil Natália Marinho. Mulher negra, ela ressalta a dimensão racial da violência, que atinge sobretudo corpos negros.

“É muito difícil falar, é muito difícil mesmo, porque assim, nossos corpos são alvos todos os dias, né? É forte, é difícil. Sou mulher, eu tenho que entender que eu sou uma mulher preta, né? E e é muito complicado, complicado mesmo. Fico até sem palavras para dizer, porque dói muito, dói”, relata, com a voz embargada.

Quando os atos contra o feminicídio foram convocados por coletivos e movimentos feministas, na semana passada, ainda não havia notícias sobre os assassinatos da cabo do Exército Maria de Lourdes Freire Matos, de 25 anos, em Brasília (DF), esfaqueada e carbonizada por um soldado, e nem de outra vítima, de 26 anos, em Montes Claros (MG), morta com golpes de picareta pelo companheiro, enquanto as filhas dormiam.

Esses casos, noticiados no sábado (6), se somam a uma sequência recente de crimes brutais contra mulheres, como o atropelamento de Tainara Souza Santos, na capital paulista, que teve as pernas amputadas após ser arrastada por um quilômetro pela Marginal Tietê.

Vítimas como Allane Pedrotti e Laysa Pinheiro, assassinadas a tiros por um colega de trabalho no Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (Cefet); Isabely Gomes, morta com os quatro filhos em incêndio provocado pelo marido em Recife (PE); e Catarina Kasten, estuprada e assassinada em uma trilha em Florianópolis (SC) quando ia para a aula de natação, foram citadas em discursos ao longo da manifestação. Sobreviventes e familiares de vítimas também compareceram ao ato. Entre elas estava Aletheia Santos, que perdeu a filha Micaelly dos Santos Lara, de 19 anos de idade, assassinada pelo ex-namorado, em Hortolândia (SP).

“Micaelly dos Santos Lara foi vítima de uma cultura que mata mulheres apenas por serem mulheres. Na semana em que esse ato surgiu, uma semana com ocorrência de vários casos, de todas as formas de violência contra as mulheres, eu vi na morte dessas mulheres, na tentativa de feminicídio, a minha filha morrendo em todas elas. Todas as vezes que uma mulher morre, eu revivo aquela dor”, desabafou.

Medidas insuficientes

Os indicadores de violência revelam que medidas que endurecem a punição para casos de feminicídios são importantes, mas insuficientes para evitar o assassinato de mulheres. Em 2024, o Brasil registrou o maior número de feminicídios da história desde que o crime foi tipificado, em 2015. Foram 1.492 assassinatos desse tipo, uma média de quatro por dia, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

O perfil das ocorrências mostra que 63,6% das vítimas eram negras; 70,5% tinham entre 18 e 44 anos; oito em cada dez foram mortas por companheiros ou ex-companheiros, e 64,3% dos crimes ocorreram dentro de casa.

Segundo o levantamento, quase a totalidade das vítimas (97%) foi assassinada por homens.

A realidade no mundo é igualmente alarmante. Em 2024, uma mulher foi morta a cada 10 minutos por parceiro íntimo ou membro da família, segundo o último relatório de feminicídios divulgado no último mês de novembro pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Diante desse cenário mundial e do agravamento da violência no país, os movimentos destacam que enfrentar o feminicídio exige ações permanentes e articuladas. Entre as reivindicações estão a necessidade de políticas contínuas, como delegacias da mulher 24 horas, campanhas permanentes de enfrentamento à misoginia, com criminalização da prática, responsabilização das plataformas digitais, fortalecimento da rede de abrigos, formação continuada de agentes públicos e orçamento garantido para programas de proteção.

A conselheira Monica Gaspar dos Santos atua na Marcha Mundial das Mulheres na periferia de Campinas e destaca que em regiões mais afastadas dos bairros centrais, a estrutura é ainda mais precária.

“Eu acho que precisa ter esses locais que atendem mulheres dentro da periferia, com advogado, assistente social, com pessoas que possam dar esse suporte, porque a mulher apanha, e você leva ela para onde? Com que dinheiro? Se eu não tenho para onde levar, ela vai ficar lá”, pontua.

Nas últimas semanas, o Ministério das Mulheres reforçou que a violência contra a mulher não pode ser naturalizada. A ministra Márcia Lopes garantiu que o governo federal intensificou a integração com estados e municípios, reforçando a rede de proteção e ampliando serviços como o Ligue 180, canal gratuito e sigiloso voltado a denúncias e acolhimento.

O governo federal também atua na expansão das Casas da Mulher Brasileira, unidades que prestam atendimento integrado, com apoio psicológico, assistência social, serviços de saúde e encaminhamentos jurídicos. Em recente encontro nacional de gestoras dessas Casas, na última quinta-feira (4), a ministra reforçou que soluções eficazes só se concretizam com articulação entre governo federal, estados e municípios.

“Eu não tenho dúvida de que as soluções para as realidades brasileiras não estão lá em Brasília. Nós temos um país federado, nós temos uma Constituição, a nossa Constituição brasileira de 1988, que trata do pacto federativo. E sem essa articulação de nível federal com os estados e com os municípios, nós não vamos cumprir o nosso dever, nós não vamos dar conta de responder a essas demandas das realidades”, afirmou.

Em SP, Tarcísio destina R$ 10 para acolhimento

Em São Paulo, o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) foi alvo de críticas durante a manifestação relacionadas principalmente à destinação de recursos para medidas de prevenção e acolhimento a vítimas de violência de gênero. A dotação orçamentária prevista pelo governo para a Secretaria de Políticas para Mulheres em 2026 é de R$ 16,5 milhões. O montante sugerido pelo Executivo no Projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) é semelhante ao executado até o momento em 2025, que está em cerca de R$ 15 milhões – menos da metade do total aprovado na Assembleia Legislativa de São Paulo para este ano, de R$ 36,2 milhões.

Chama a atenção na previsão orçamentária a destinação de apenas R$ 10 para acolhimento e apoio a mulheres em situação de vulnerabilidade, medida considerada essencial para evitar desfechos fatais para vítimas de violência.

“Ele não se importa com as nossas vidas. Não segue a lei da DDM [Delegacia de Defesa da Mulher] 24 horas em todas as cidades, enquanto o Estado continua a nos assassinar. Mulheres estão sujeitas à violência em todos os espaços nesse estado que acabou com o serviço do aborto legal”, lembrou a deputada estadual Monica Seixas (Psol), em referência à suspensão da realização dos procedimentos previstos em lei no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, na capital.

Em nota à imprensa, a Secretaria de Políticas para a Mulher informou que atua como articuladora de políticas públicas e que os recursos para a execução dessas políticas estão garantidos nos orçamentos das secretarias responsáveis.

Com relação ao combate à violência contra a mulher, o estado de São Paulo tem 142 Delegacias de Defesa da Mulher, ao todo. Apenas dezoito funcionam 24 horas.

Misoginia na internet

O papel das redes sociais na disseminação de discurso de ódio contra as mulheres também foi destacado na manifestação. O ato lembrou a prisão do influenciador Thiago Schutz, por agressão à namorada.

Conhecido pelo apelido de “calvo do Campari”, ele é dono de um perfil no Instagram com mais de 400 mil seguidores, no qual ele “comenta sobre a realidade dos relacionamentos atuais”. Em outras palavras, o canal mensura o valor das mulheres e reforça ideias de que elas possuem natureza interesseira, manipuladora e que estariam atuando ativamente para prejudicar os homens.

Em pronunciamento após a prisão, ele disse que as agressões foram mútuas e que estava bêbado. O influenciador afirmou ainda que nunca incentivou a violência, apesar de propagar discurso misógino em seus vídeos.

A atriz e comediante Lívia La Gatto, uma das organizadoras do ato, reforçou a reivindicação pela regulação das redes e pela criminalização da misoginia. Segundo a ativista, a disseminação impune do discurso de ódio na internet não pode mais ser tolerada, pois ela é a semente da agressão que, quando ignorada pelo Estado, culmina em tragédia.

“Hoje a nossa pauta principal é chega de feminicídio e a criminalização da misoginia. Não dá para a gente continuar com esse discurso de ódio livremente disseminado na internet, nas redes sociais, cursos, livros, e homens lucrando. Esse discurso, quando não é parado, vira uma agressão, e essa agressão, quando o governo não dá atenção a ela, ele vira um feminicídio”, ressalta.

Pacto social é necessário

Além de reivindicar políticas públicas efetivas, as manifestantes também exigem engajamento de toda a sociedade para enfrentar a violência estrutural que tem os corpos das mulheres como alvo. O chamado foi direcionado especialmente aos homens, protagonistas das histórias de horror que terminam em feminicídio.

Para a bióloga Camila Postal Adomaitis, os homens precisam tomar partido e se integrar ativamente na solução.

“Toda mulher já sofreu algum tipo de assédio, mas quando você pergunta para um homem, nenhum conhece o assediador, nenhum assedia, nenhum sabe. Parece que os homens estão à parte de um problema que eles mesmos causam. Então, a conta não bate. Se toda mulher já sofreu esse tipo de situação, como que nenhum homem consegue presenciar essa situação ou de fato é responsável por tal? Então, eu acho importante que o homem ele seja parte da solução”, diz.

O protesto na avenida Paulista se somou a outros realizados em capitais e cidades do interior nas cinco regiões do país neste fim de semana. Em Porto Alegre (RS), o ato ocupou a Praça da Matriz neste sábado (6). No mesmo dia, Belém (PA) e Cuiabá (MT) também realizaram manifestações.

Neste domingo, além de São Paulo, as mobilizações tomam as ruas no Rio de Janeiro (RJ), Vitória (ES), Belo Horizonte (MG), Maceió (AL), Fortaleza (CE), São Luís (MA), João Pessoa (PB), Recife (PE), Teresina (PI), Natal (RN), Rio Branco (AC), Manaus (AM), Boa Vista (RR), Palmas (TO), Florianópolis (SC), Curitiba (PR), Campo Grande (MS), Goiânia (GO) e Brasília (DF). Em Salvador (BA), o protesto está marcado para o próximo domingo (14), às 10h, na Barra.

Redação Brasil de Fato

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