Para início de conversa, gostaria de começar este texto lembrando algo fundamental, fruto de décadas de acúmulo de pesquisadores, militantes e movimentos antirracistas no mundo todo: não existem raças humanas do ponto de vista biológico. Toda a humanidade compartilha 99,9% do mesmo material genético. A ideia de “raça” não tem base científica na genética. É uma invenção social, política e histórica. E, mais do que isso, é uma invenção colonial.

As raças humanas, tal como entendemos hoje, foram construídas pelos colonizadores europeus como uma ferramenta de dominação. Eles olharam para as diferenças visíveis: a cor da pele, o tipo de cabelo, os traços do rosto, e usaram essas marcas fenotípicas para estabelecer quem teria direito à liberdade e quem seria tratado como mercadoria, quem seria considerado humano e quem seria transformado em coisa. É nesse contexto que surgem mitos como o da maldição de Cam, e também o chamado racismo científico, teorias criadas para justificar séculos de escravidão, genocídio e exploração de povos não-europeus.

Por isso, é fundamental afirmar: quem luta por uma sociedade sem exploração e sem opressões, ou seja, quem luta pelo fim do capitalismo e pela construção do socialismo, deve ter como horizonte também o fim das “raças” enquanto categorias sociais e, junto com isso, o fim do racismo. O racismo é filho direto do colonialismo e do capitalismo. Combater o racismo não é uma pauta separada da luta de classes, é parte central dela.

É completamente falso e racista imaginar que os povos africanos formavam um bloco homogêneo, todos iguais ou “igualmente negros”. Antes da colonização, não existiam “negros” ou “africanos” na África. Existiam povos, nações, reinos, comunidades com línguas, culturas, crenças e até características físicas muito distintas. O continente africano sempre foi, e ainda é, um dos lugares mais diversos do mundo, basta dizer que mais de 500 idiomas são falados ali até hoje.

O mesmo vale para as Américas. As diferenças, semelhanças e disputas na construção das identidades negras variam de país para país, conforme a quantidade de africanos escravizados, o tipo de colonização, a política de imigração e a própria resistência dos povos negros. O modelo dos Estados Unidos não é igual ao do Brasil, nem ao de Cuba ou da Colômbia.

Mas falemos do Brasil. Aqui, o racismo foi estruturado de forma a permitir a convivência com a miscigenação, sem nunca abrir mão da hierarquia racial. Dados mostram que, no Brasil, pretos e pardos têm indicadores sociais praticamente idênticos. Desigualdade de renda, acesso à educação, violência policial e todas as formas de exclusão atingem pretos e pardos de maneira muito semelhante. Foi por isso que, numa época em que mais de 100 classificações raciais circulavam no país, o movimento negro fez uma escolha histórica: unir pretos e pardos na categoria política de “negros”. Foi uma decisão política, fruto da necessidade de organização e enfrentamento do racismo.

Parditude: velho projeto com cara de novo

A chamada parditude surge como uma reação a essa construção histórica, vestindo-se de novidade, mas carregando velhos fantasmas. Sua defesa da “identidade parda” como uma identidade separada da negritude não é um debate neutro. Ela se ancora, consciente ou não, em um velho projeto do Brasil mestiço, conservador e racista.

Não há nada de novo. Desde o início do século XX, a elite brasileira já tentava criar uma narrativa para resolver um problema que ela mesma enxergava: o país tinha gente demais com ascendência africana. João Batista de Lacerda, delegado do governo brasileiro no Congresso Universal das Raças, em 1911, em Londres, afirmava com todas as letras que, graças à imigração europeia e ao estímulo à miscigenação, “em 100 anos não haveria mais negros no Brasil.” Era o projeto do branqueamento.

A profecia de Lacerda não se realizou. O Brasil não se tornou um país branco. E, diante desse “fracasso”, a elite precisou de uma nova narrativa: o mito da democracia racial. O mito que diz que já “somos todos mestiços” e, portanto, o racismo não existe aqui. Essa foi a chave ideológica que sustentou a recusa histórica do Brasil em adotar qualquer política de reparação, de cotas ou de enfrentamento do racismo.

Aqui entra a figura de Gilberto Freyre, autor de Casa-Grande & Senzala (1933), que consolidou uma outra armadilha ideológica. Freyre exaltava a mestiçagem como algo positivo, como traço fundador da identidade brasileira, mas fazia isso apagando as relações de violência, estupro e exploração que geraram essa mestiçagem. Seu discurso serviu, durante todo o século XX, como sustentação do mito da democracia racial, ao lado de figuras como Ali Kamel (ex-diretor geral de Jornalismo da Globo) e Antonio Risério, que até hoje atacam as políticas de cotas e afirmam que uma “nação bicolor” seria uma pauta importada dos Estados Unidos, ignorando completamente o racismo brasileiro.

O que vemos hoje com a parditude não é a negação do racismo, mas a atuação sobre o ressentimento e a divisão. Alimenta sentimentos legítimos, fruto do não-lugar histórico dos pardos e da institucionalização de parte do movimento negro, mas ao invés de enfrentar o racismo e o capitalismo, fragiliza a unidade da luta e abre espaço para projetos que, no fim, reforçam o apagamento racial.

As redes sociais, o novo freyrianismo e o avanço da extrema direita

Não é coincidência que esse discurso tenha crescido nas redes sociais, em meio a um cenário de enfraquecimento da organização política do movimento negro, de ataques às políticas de cotas e de ofensiva da extrema direita.

Como bem mostrou o jornalista e sociólogo Matheus de Moura na Revista Cult (texto removido judicialmente a pedido de ativistas do movimento mestiço.) , os grupos que hoje reivindicam a identidade parda, como o perfil Parditude de Beatriz Bueno, ou o grupo Movimento Pardo Mestiço, dialogam direta ou indiretamente com setores conservadores e até com a extrema direita.

O Movimento Pardo Mestiço Brasileiro (MPMB), por exemplo, não escondeu seu apoio ao governo Bolsonaro e participou, pela primeira vez, de uma reunião do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial durante a gestão de Damares Alves, no antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Sua presença ali não era por acaso. O movimento se posicionou publicamente contra as cotas raciais, defendendo que os pardos fossem retirados da categoria de população negra. A mesma posição foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde representantes desse grupo se manifestaram contra as cotas raciais em ações que tramitavam na Corte.

O problema das bancas de heteroidentificação, que geram constrangimento e erros, é real. Mas esses erros não podem ser usados como justificativa para desmontar uma política que é resultado de séculos de luta. E mais: esse debate precisa incluir também as populações indígenas, muitas vezes atravessadas pela mesma lógica de apagamento, o que discutiremos em outro texto.

A falsa harmonia da mestiçagem

Outro ponto central desse debate é rebater a visão romantizada da mestiçagem que aparece nos discursos da parditude. Beatriz Bueno, por exemplo, afirma que é ofensivo dizer que a mestiçagem brasileira foi marcada por estupros, porque isso “fere os pardos”, como se estivéssemos falando das relações de hoje, e não da história.

O problema é que essa afirmação revela certo desconhecimento histórico. O maior estudo genético já feito sobre a população brasileira, liderado por pesquisadores da USP, confirma que a base da formação genética do Brasil está no estupro sistemático de mulheres negras e indígenas por homens brancos durante os séculos XVIII e XIX. Isso não é opinião, é dado científico da realidade.

Dizer isso não é ofensa. É, ao contrário, enfrentar a verdade histórica que o mito da democracia racial tenta esconder há mais de um século. E mais: isso não quer dizer que as relações inter-raciais hoje não possam ser livres, amorosas e consensuais. O problema não é o amor entre pessoas de diferentes origens. O problema é transformar uma história de violência colonial em símbolo de harmonia racial.

O projeto de parditude se inscreve em uma disputa profunda sobre o sentido da luta antirracista no Brasil. Ao negar a unidade política entre pretos e pardos, no mesmo grupo de negros, ela desmonta um dos principais pilares que sustentaram o avanço das poucas políticas públicas no Brasil nas últimas décadas.

O fato de sermos hoje o país com a maior população negra fora da África é resultado direto da luta do movimento negro, que enfrentou as mais de 100 classificações raciais criadas para nos dividir, nos afastar da nossa história comum de opressão, exploração, mas também de resistência, revoltas e quilombos. É essa construção coletiva que está em disputa.

Enquanto isso, a elite branca e setores conservadores, agora com o apoio de discursos que romantizam a mestiçagem, seguem tentando nos convencer de que “não existe racismo no Brasil, porque somos todos mestiços”. A mesma mentira de sempre, reembalada para os tempos atuais. O nosso compromisso precisa ser com a verdade histórica, com a luta coletiva e com a construção de uma sociedade onde não haja nem racismo, nem opressão, nem exploração.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 28/05/2025