Não é só na Amazônia que a perversa associação entre interesses privados, sistema cartorial corrompido e justiça ligeira (no mau sentido) resulta em uma magia que faz com que terras devolutas, muitas delas pertencentes à União ou integrantes de áreas de proteção ambiental, sejam de uma hora para outra declaradas como propriedade dos personagens mais inusitados. O esquema é manjado e tem até nome – indústria da grilagem –, mas não cessa de se repetir em todos os cantos do Brasil. No mais recente episódio, o surgimento do espólio de um empresário português que teria comprado terras em Paraty nos anos 1960 e 1970 ameaça a existência de comunidades de caiçaras, quilombolas e pescadores que habitam há 200 anos aquela região do litoral do Rio de Janeiro.

Falecido nos anos 1980, o português José Maria Rollas, segundo o processo de inventário tramitado na Justiça, era dono de terras em diversos pontos do estado. O empresário, no entanto, nunca teria exercido a posse de suas propriedades e, após acumular dívidas com a União, foi perdendo gradativamente sua titularidade. Em Paraty, ocupadas historicamente pelas populações tradicionais, as terras que pertenceriam a Rollas espalham-se por pontos como a Ilha do Cedro e o Saco do Mamanguá, mas é na paradisíaca Ilha do Araújo, onde vivem cerca de 120 famílias de caiçaras, em sua maioria pescadores e artesãos, que o caso sobre o espólio do português passou a ser denunciado como grilagem de terras públicas.

O que despertou a atenção dos representantes das comunidades, além de parlamentares e ambientalistas, foi o início, em maio, de um processo de leilões de 32 lotes localizados na Ilha do Araújo, todos ocupados por habitantes tradicionais que só foram informados do que acontecia à medida que pipocavam os pedidos de imissão de posse – entrega imediata da área ao comprador – realizados pelos arrematantes. Dois lotes estão localizados no Parque Nacional da Serra da Bocaina, mas a maioria das terras (24 lotes) faz parte da Área de Proteção Ambiental (APA) do Cairuçu, zona rica em biodiversidade da Mata Atlântica.

A aparição repentina de “herdeiros” causou estranheza. Pescadores e quilombolas habitam a região há 200 anos

A reação veio a partir de duas ­reuniões, realizadas em 6 e 12 de junho, nas quais mais de uma centena de moradores da ilha definiram uma campanha de denúncia e mobilização junto à imprensa e ao Poder Público: “Os caiçaras estão mobilizados para resistir”, avisa o advogado Onir Araújo, integrante da Equipe Jurídica da Comunidade da Ilha do Araújo.

No âmbito jurídico, a estratégia de utilizar embargos com o objetivo de sustar as imissões de posse na ilha pelos arrematantes dos leilões mostrou-se vitoriosa durante a audiência pública que discutiu o caso em 16 de junho na Câmara Municipal de Paraty. Na reunião, o juiz Fernando de Souza e Silva, responsável pelo caso, anunciou que não autorizará a expedição de cartas de arrematação enquanto não ocorrer o pagamento integral do leilão e não houver a verificação de que não existem nulidades no procedimento.

“A petição apresentada pela comunidade apontou essas nulidades e solicitou que diversos órgãos municipais, estaduais e federais se manifestem oficialmente no processo”, diz o advogado. Ao atender o pedido, o juiz determinou que sejam ouvidos o inventariante, os herdeiros, o leiloeiro e terceiros interessados, além de Ministério Público Federal (MPF), Advocacia-Geral da União (AGU), Defensoria Pública, prefeitura de Paraty e Procuradoria-Geral do Estado (PGE): “É necessário que os caiçaras aproveitem essa vitória parcial importante para se articular contra a ameaça de esbulho possessório iminente trazida por esse processo de inventário. Eu digo vitória parcial porque, objetivamente, não se adentrou no mérito, mas se ganha um tempo importante”, afirma Araújo.

Panorama. O turismo de luxo avança sobre as comunidades tradicionais de Paraty – Imagem: Srta.BBG/Paraty

O advogado diz esperar que o MPF, o ICMBio, a AGU e a Secretaria de Patrimônio da União “saiam do discurso e se manifestem”, porque a questão mexe com interesses nacionais. “Tem a APA do Cairuçu e o reconhecimento de que são essas comunidades tradicionais que sustentam esse ecossistema e sua biodiversidade. A própria existência dos povos também é protegida pela Constituição”. Nas próximas semanas, diz Araújo, será estreitada a articulação com entidades como o Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) e o Observatório das Comunidades Tradicionais, para que assumam a defesa das comunidades, “não só no aspecto jurídico, mas também na articulação política, de mobilização e divulgação do que é essa violência”.

Advogada do FCT, Thatiana Duarte afirma que a entidade dialoga com as comunidades sobre a melhor estratégia jurídica para a defesa dos territórios. “Acionamos o MPF e a Defensoria Pública, que peticionaram conjuntamente nos autos do inventário que originou os leilões, informando o Juízo sobre a ocupação das áreas por comunidades tradicionais caiçaras há várias gerações. Também oficiamos a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e o ICMBio, requerendo a intervenção da AGU em defesa das comunidades. Existe interesse federal e, portanto, a União precisa ser ouvida.”

Coordenadora do FCT e integrante da Coordenação Nacional de Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC), Marcela Cananéa diz que as comunidades precisam estar preparadas. “Com as terras já arrematadas, não sabemos o que mais poderá vir pela frente, que tipo de projeto e limitações podem sobrepor as moradias e os lugares de uso dos caiçaras”, diz. Para a ativista, os leilões em Paraty não são atos isolados. “Vivemos, desde os anos 1970, uma forte pressão dos grileiros de terras e da especulação imobiliária. Caiçaras, indígenas e quilombolas que compõem o nosso território vêm enfrentando diariamente as investidas do capital e seus projetos de desenvolvimento que invisibilizam os povos tradicionais para fomentar o turismo de luxo em Paraty”, revela.

A paradisíaca Ilha do Araújo tem sido alvo da cobiça imobiliária

Presidente da Câmara Municipal de Paraty, o vereador Vaguinho de São Gonçalo, do PT, afirma que o que acontece na cidade é sintoma de um modelo de Estado que insiste em ignorar a existência dos povos tradicionais e seus territórios. “Quando imóveis habitados há gerações por comunidades caiçaras vão a leilão sem consulta prévia, sem reconhecimento da posse tradicional e sem diálogo com os órgãos responsáveis pela regularização fundiária, temos um ataque claro ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e do direito à terra.”

Vaguinho avalia que, se levado adiante, esse processo abre o “precedente gravíssimo” de permitir que o mercado regulado por heranças e dívidas privadas se sobreponha aos direitos coletivos de povos tradicionais. “Isso empurrará famílias inteiras para a insegurança jurídica e o risco de expulsão de seus próprios territórios”, prevê. A solução, diz, é também política: “Precisamos de ações urgentes do Incra, da SPU, da União e dos governos ­estadual e municipal para regularizar de fato os territórios tradicionais. É preciso avançar na titulação coletiva, garantir segurança jurídica para as comunidades e impedir que novos leilões sejam autorizados sem que o Estado tenha se manifestado sobre a situação fundiária das áreas”.

Ex-ministro e ex-secretário estadual do Meio Ambiente, o deputado ­estadual Carlos Minc, do PSB, também afirma a importância das políticas de regularização fundiária e de apoio aos caiçaras e pescadores. “É importante ter as colônias registradas oficialmente. O Poder Público deixa esse pessoal muito largado, e aí vem um sujeitinho com um papel de 1960, de um português que comprou não sei quantas glebas, e causa tudo isso.” O que mais tem no Brasil, diz Minc, é gente comprando terra devoluta. “Na Amazônia, quando eu era ministro, havia pilhas de casos nos cartórios com três ou quatro proprietários da mesma terra. É a indústria da grilagem”, informa.

Autor de uma lei que estabelece que comunidades que estão há mais de 50 anos em uma localidade não podem ser desalojadas e não têm permissão para vender as terras, mas podem ficar lá para sempre, Minc afirma que é preciso fazer um pente-fino quando se trata de grandes terras em áreas sensíveis no Brasil. “Seguramente, uma parte razoável, eu diria até majoritária, dessas grandes compras são de áreas que não podiam ser compradas nem vendidas, são terras devolutas, terras da União.” •

Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Paraíso grilado’

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Last Update: 18/06/2025