O papel do judiciário em todos os países decorre de uma imposição do imperialismo para frear qualquer tipo de ameaça à sua hegemonia. Isso acontece sem que se importe com arbitrariedades e violações aos direitos mínimos que são, ironicamente, defendidos pelas autoridades. Trump rompeu com essa retórica e com as formalidades jurídicas ao declarar: “se houver manifestações, responderemos com a força”.

O caso mais recente de perseguição judicial na América Latina ocorreu na Argentina. A Suprema Corte do país, composta por apenas três ministros, confirmou em tempo recorde a condenação de seis anos de prisão e a inabilitação política permanente de Cristina Fernández de Kirchner. A celeridade na decisão se justifica porque a líder argentina, de grande popularidade, estava prestes a se registrar para disputar eleições regionais, um passo que a levaria a concorrer futuramente à presidência contra o bizarro e ultradireitista Javier Milei.

Cristina Kirchner não é a primeira figura política a ser alvo de processos fraudulentos na história argentina, nem a única personalidade a sofrer tentativas de assassinato. Longe disso, ela tampouco é a única a ser estigmatizada pela grande imprensa. Contudo, é difícil encontrar em outras nações uma liderança que, após ter sido duas vezes presidente e uma vice-presidente, e tendo sobrevivido a uma tentativa de assassinato, seja alvo de uma campanha de difamação tão virulenta – com termos como “égua”, “vagabunda”, “prostituta”, “montonera” – e denunciada pelo menos 654 vezes, para então ser condenada em um processo farsesco a uma sentença de prisão e impedimento vitalício de ocupar cargos públicos eletivos. Essa proibição política significa a impossibilidade de concorrer a pleitos eleitorais novamente por toda a vida. É, de fato, sua proscrição. O imperialismo interfere em países periféricos com ataques direcionados a personalidades políticas que representam uma ameaça em potencial. Primeiro, com intimidações, depois com ameaças e, por fim, com ações diretas para neutralizar essa periculosidade, sejam elas balas reais ou a chamada “guerra jurídica” política. Isso aconteceu com Pedro Castillo no Peru, com Lula e Dilma no Brasil, ou Ceaușescu na Romênia, sem esquecer Marine Le Pen na França.

Para que a ação seja fulminante, é necessária uma articulação prévia e planejada entre diversos políticos, empresários e veículos de comunicação, todos com um objetivo comum: eliminar o principal líder popular da cena política. Cabe aos integrantes do judiciário executar a sentença final, sendo os únicos capazes de fazê-lo por possuírem uma característica especial: uma identidade ideológica e política total com o imperialismo. Além disso, eles não são eleitos, o que os torna imunes a pressões políticas dos trabalhadores e lhes confere uma legitimidade inquestionável para tomar decisões “impopulares”. Essa é a principal característica do regime político burguês na atual fase de declínio do imperialismo. Qualquer ação é justificável, mesmo que ilegal e inconstitucional, se o propósito for proteger e manter o regime, ainda que isso transforme a maioria dos países ditos “democráticos” em verdadeiras ditaduras.

As irregularidades, violações de direitos e garantias constitucionais que permearam todo o processo judicial contra Cristina Fernández, finalizado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal argentino, são numerosas e diversas. Não se tratou de um processo judicial genuíno, mas sim de um processo político. A situação de Cristina Fernández tem como pano de fundo histórico as estratégias tradicionais de eliminação de inimigos pelas classes burguesas.

É disso que se trata a guerra jurídica: a promoção de ações que violam os direitos mais básicos através do uso inadequado de instrumentos legais por determinados operadores jurídicos com propósitos políticos. Protegidos por um manto de legitimidade e legalidade, graças aos discursos sistematicamente disseminados pelos grandes monopólios de comunicação, eles constroem uma percepção que não só tolera esse tipo de prática, mas a aplaude e a exige. É, em suma, uma ferramenta de perseguição, assédio, banimento, estigmatização, paralisia financeira e destruição da imagem pública: um meio para a eliminação não de qualquer figura política, mas de um adversário político.

Entre os diferentes significados da palavra “proscrever” há um menos conhecido: “Declarar publicamente alguém como malfeitor, concedendo poder a qualquer um para tirar sua vida e, por vezes, oferecendo uma recompensa a quem o entregar vivo ou morto”. Esse sentido nos permite compreender que a proscrição é também uma forma de aniquilação da identidade. Não é necessário que o banido seja um malfeitor em si; basta que ele seja declarado publicamente como tal para que se “dê o poder a qualquer um” de tirar sua vida. Portanto, falar em eliminação não é um eufemismo nem um exagero, e o caso de Cristina ilustra isso claramente.

Não se busca eliminar qualquer adversário, mas apenas aqueles que se configuram como inimigos. Estes são, em geral, sujeitos políticos que sintetizam características de classe e que, de alguma forma, representam o “popular”. Um inimigo não é um opositor ou um criminoso, mas um ser existencialmente distinto, no sentido de que põe sua própria existência em jogo – ou em xeque. Nesse sentido, teóricos como o jurista nazista alemão Carl Schmitt afirmaram que o inimigo possui “seu próprio status”: não segue as regras dos criminosos, muito menos as dos adversários, porque o confronto com ele implica negar seu modo de existir, permitindo-lhe lutar e se defender, pois o que está em jogo é a própria essência. Trata-se de um antagonismo radical e, portanto, o conflito é total, absoluto. Em última instância, se for decisivo, o inimigo deve ser eliminado.

Cristina é hoje considerada inimiga do imperialismo, assim como outros o foram em diferentes épocas, e por isso deve ser eliminada. A guerra jurídica é apenas o instrumento. As potências burguesas, os proprietários do capital financeiro internacional, que são verdadeiras aristocracias tecnológico-financeiras e monopólios globais absolutistas e totalitários com a voracidade ilimitada que os caracteriza, organizam-se sistematicamente contra tudo o que, mesmo moderadamente, represente uma ameaça de ruptura. É importante lembrar que os Kirchner entraram em conflito aberto com os fundos de investimentos abutres, e são eles, como BlackRock e Vanguard, a vanguarda do imperialismo.

A luta das classes trabalhadoras por sua emancipação, o desejo de uma vida com as condições mínimas de sobrevivência e desenvolvimento, e tudo o que representa mudança, sempre foi proibido, proscrito, estigmatizado, criminalizado e, no caso de seus líderes, presos e até assassinados. A história argentina, assim como a do Brasil, oferece inúmeros exemplos. Basta recordar, na Argentina, os julgamentos a que a Assembleia de 1813 submeteu vários membros da Primeira Junta do governo nacional, como Mariano Moreno e Juan José Castelli, ou a perseguição político-judicial sofrida por heróis inquestionáveis da história nacional como Manuel Belgrano e José de San Martín, entre muitos outros.

Já no século XX, após o golpe de Estado de 1930, o presidente deposto Hipólito Yrigoyen foi detido e enviado para a ilha Martín García, apesar de ter 78 anos e um delicado estado de saúde. Diversos processos judiciais foram instaurados contra ele, sob acusações de corrupção, mas nenhum resultou em condenação. Impulsionada pela imprensa da época e pelo ódio de uma burguesia aliada do imperialismo, uma multidão invadiu a residência do ex-presidente e a incendiou.

A perseguição a Perón após o golpe de Estado de 1955 resultou em um número infinito de falsas acusações por má conduta na esfera militar e por atos de corrupção e traição na esfera criminal. Perón teve todos os seus bens apreendidos e confiscados, e o peronismo foi banido por dezoito anos. Suas organizações foram proibidas, as manifestações de apoio ao movimento severamente punidas e o nome de seu líder censurado.

Nas décadas de 1960 e 1970, os líderes de organizações sindicais combativas enfrentaram uma enorme onda de repressão e perseguição antioperária. Durante a ditadura militar, além dos mais de 30.000 assassinados e das 250.000 a 350.000 pessoas que deixaram o país em busca de refúgio no exílio, estima-se que mais de 10.000 presos políticos foram mantidos.

Na década de 1990, a resistência ao modelo neoliberal gerou um grande número de prisões políticas pelo simples ato de exercer o direito de protestar e se mobilizar. Carlos Menem foi detido por mais de um ano, assim como os líderes do MAS Alcides Christiansen, Horacio Panario e Basilio Estrada Escobar, e também Raúl Castells, do Movimento de Aposentados e Desempregados.

O exemplo de Milagro Sala é recente: ela está presa há nove anos e cinco meses. Deseja-se eliminá-la, tanto subjetiva quanto fisicamente. Sua saúde se deteriora e ela não teve o direito de lamentar a morte de seus entes queridos. Não perdoam uma mulher negra, indígena, de origem humilde, que enfrenta os poderosos, donos do capital e seus fantoches políticos, de cabeça erguida, com organização, sem perder a consciência de classe, sem temê-los.

O Tribunal Criminal da província de Jujuy, na Argentina, condenou em 14 de janeiro de 2018 a deputada do Parlasul (Parlamento do Mercosul) e líder indígena Milagro Sala a 13 anos de prisão. A Justiça alega que a dirigente está envolvida em crimes de associação ilícita, fraude e extorsão. Sala é líder da organização Tupac Amaru e deputada do Parlasul desde 2015, quando foi candidata pela coligação socialista Frente para a Vitória. Além disso, é integrante da Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA). Esta não é a primeira vez que a líder indígena é incriminada. Ela já havia sido detida em um protesto contra cortes em programas sociais do governo em 16 de janeiro de 2016, pouco mais de um mês após a posse de Macri. Além de Milagro, outros dez militantes também foram detidos na ocasião.

Infelizmente, nossa história nos ensinou que, por vezes, as classes privilegiadas não hesitam em optar pela aniquilação física. A sangue frio, como os trabalhadores grevistas de La Forestal, os indígenas de Napalpí, os quase mil trabalhadores da trágica Patagônia, as vítimas do bombardeio na Plaza de Mayo, os fuzilados em José León Suárez, os companheiros e companheiras do massacre de Trelew, os trinta mil, os assassinados em 2001, Rafael Nahuel, Santiago Maldonado, e a lista pode prosseguir. O imperialismo orquestrou o atentado contra Cristina em 1º de setembro de 2022. Ao contrário do processo contra ela, o julgamento deste caso nunca foi realizado.

A farsa do julgamento e condenação de Cristina Kirchner faz parte dessa mesma trajetória. Os protagonistas são os mesmos: o imperialismo e a burguesia local de um lado, e as classes trabalhadoras e seus aliados, de outro. O roteiro não se altera, com o papel de destaque do judiciário e da mídia, mais ou menos grosseiros, brutais ou invasivos. O objetivo permanece: frear os processos históricos populares e impulsionar outros, favoráveis ao capital e ao imperialismo.

Durante a chamada “onda progressista” latino-americana – com destaque para os três mandatos kirchneristas (2003-2015) – não houve tentativa de dinamitar a ordem capitalista, mas sim de ampliar as margens de justiça social. As medidas centrais foram: reconstituir o poder de compra do salário, restabelecer a negociação coletiva, resgatar a memória, a verdade e a justiça diante da impunidade, expandir as obras públicas, a moradia e o consumo popular, tudo sustentado por um neodesenvolvimentismo que apostava no mercado interno e em um sistema tributário mais progressista. Essa onda recolocou sindicatos, movimentos sociais e organizações de direitos humanos como atores legítimos no espaço público.

Em suma, o kirchnerismo – assim como os demais progressismos latino-americanos – não representou uma ruptura sistêmica, mas um projeto de reforma moderada do Estado. No entanto, mesmo essa redistribuição modesta de poder e renda foi suficiente para desencadear o ódio de classe, o revanchismo e a ruptura de qualquer consenso democrático. A decisão da Suprema Corte Argentina não é mais do que a coroação dessa ordem neoliberal-autoritária. A proibição do peronismo como perigoso representante das aspirações populares ressurge ciclicamente na história nacional.

O judiciário desempenhou um papel crucial: transformado na instituição mais antidemocrática e oligárquica do sistema, hoje é, de fato, controlado por três homens reacionários que esvaziaram o Conselho da Magistratura de sua pluralidade e lhes permitiram gerir a agenda judicial à vontade. A Corte possibilitou o retorno a um antigo esquema que assegura uma maioria automática no órgão que seleciona e disciplina os juízes, o que facilita que casos delicados sejam direcionados a tribunais “amigos”. O judiciário funciona como o braço legal do Clarín, Techint e do grande capital, protegendo seus interesses com sentenças sob medida. Não é por acaso que este mesmo tribunal evitou manifestar-se sobre o DNU 70/2023, a chamada “Lei das Bases” de Javier Milei, apesar de sua flagrante inconstitucionalidade: mantê-la em vigor consolida a estratégia presidencial de governar por decreto, ou seja, implanta um estado ditatorial.

Ao mesmo tempo, o Judiciário garantiu a impunidade de Mauricio Macri em casos como o do Correo Argentino, espionagem ilegal e endividamento com o FMI, apesar das provas contundentes de sua responsabilidade. Essa degradação institucional inclui a chamada “doutrina Irurzun”, que permitia a prisão preventiva de ex-funcionários sem condenação definitiva, para fins claramente persecutórios. Assim, o Judiciário argentino completou sua transformação em um poderoso partido político a serviço da burguesia e que age sem limites sob o disfarce da legalidade.

Mas o problema não se restringe ao papel da Suprema Corte: a própria estrutura institucional do sistema político argentino é concebida para neutralizar o peso eleitoral e político dos grandes centros urbanos, especialmente os arredores de Buenos Aires. O sistema bicameral e a distribuição de cadeiras em ambas as câmaras geram uma forte distorção na representação. Essa super-representação das províncias menos populosas, muitas vezes dependentes de transferências do Estado nacional, tem um impacto direto na distribuição do poder político e do investimento público.

Acrescenta-se a isso a sub-representação da Província de Buenos Aires devido à não atualização de sua representação de acordo com o censo nacional. Se a Grande Buenos Aires tivesse a mesma proporção de deputados que a população total, teria 63 assentos. Os 18 deputados que faltam equivalem à representação total da província de Córdoba ou das de Tucumán e Entre Ríos juntas. O Decreto 70 de Milei, por exemplo, teria sido irremediavelmente derrubado. Em conjunto, esses mecanismos estruturais de sub-representação funcionam como dispositivos para conter a maioria popular, sustentando um regime que combina uma fachada democrática com fortes restrições oligárquicas.

A atuação do Judiciário no Brasil demonstra a mesma subordinação à burguesia e ao imperialismo, tendo servido como instrumento de transição do regime político brasileiro de uma democracia formal para uma ditadura com verniz democrático. Desde a Constituinte de 1988, a Constituição tem sido desrespeitada por uma série de propostas de emendas constitucionais que incorporam aberrações como as reformas trabalhista, da previdência e da questão fiscal, transformando a Constituição em um instrumento de aprofundamento da exploração e dominação capitalistas. O Supremo Tribunal Federal sempre se posicionou contra os interesses dos trabalhadores, ao não reconhecer vínculo empregatício entre a força de trabalho “uberizada” e as plataformas digitais, e mais recentemente está prestes a aprovar a “pejotização”, extinguindo de vez a CLT. O judiciário praticamente aniquilou o direito de greve, garantido pela Constituição, ao estabelecer de forma generalizada o princípio da “greve abusiva”, obrigando os sindicatos a manterem os serviços funcionando e impondo multas milionárias caso desobedeçam e promovam a paralisação.

Ao longo desse período, o STF tem contribuído para legitimar impedimentos à liberdade de expressão e patrocinou o golpe de 2016 que destituiu ilegalmente a presidente Dilma Rousseff. Junto com seu órgão irmão, o Tribunal Superior Eleitoral, tem tornado as eleições cada vez menos representativas, onde prevalece a restrição aos pleitos eleitorais, descredenciando candidatos, limitando o tempo e o espaço para a propaganda eleitoral e tornando-se o órgão que define os candidatos às eleições presidenciais, retirando da disputa o candidato Lula em 2018 e muito provavelmente Jair Bolsonaro em 2026. Além disso, o STF tem sido o promotor de limitações aos direitos democráticos, convertendo processos sobre questões raciais e sobre calúnia e difamação em instrumentos de perseguição política e cerceamento do direito à liberdade de expressão dos cidadãos. Recentemente, o STF declarou inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, permitindo que as grandes empresas de tecnologia possam exercer o poder de censura sobre os conteúdos divulgados nas redes sociais.

É por isso que o folclore político brasileiro consagrou a ironia em relação às instituições judiciárias com a frase: “Aos amigos tudo, aos inimigos Justiça!”.

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Last Update: 24/06/2025