Por Eleutério F. S. Prado
Os partidários norte-americanos da democracia liberal, com boa dose de angústia, têm se defrontado com essa pergunta. Se Donald Trump se afigura para eles como populista, autoritário, mentiroso e até mesmo como neofascista, como pode ele ter ganho a eleição presidencial nos Estados Unidos, um suposto bastião da democracia liberal num mundo propenso a acolher ditaduras?
Veja-se o que dizem dois economistas famosos, ganhadores do Prêmio Risk Bank (usualmente chamado de Prêmio Nobel de Economia), dado anualmente para os profissionais dessa área que propugnam pela continuidade do capitalismo.
A conclusão que se segue dessas declarações é bem clara: para ambos, a vitória de Trump ocorreu porque as condições necessárias para a existência e continuidade da democracia liberal foram minadas nos Estados Unidos à medida que passaram a prevalecer aí as instituições e as políticas econômicas do neoliberalismo.
As duas explicações, situadas ainda – e com méritos – no campo da economia política não estão erradas, mas falham, em primeiro lugar, por não apresentarem a razão estrutural do advento do neoliberalismo. E essa descoberta apenas pode ser feita mediante um avanço no campo da crítica da economia política.
Como se sabe, o neoliberalismo foi bem-sucedido em conter a elevação do salário real da classe trabalhadora nos EUA e nos outros países em geral, ou seja, em mantê-lo abaixo dos ganhos de produtividade, tal como mostra a figura em sequência. Contudo, essa estatística descritiva é insuficiente para avaliar as perdas dessa classe.
Pois, como se sabe, a partir de 1980, ela perdeu proteção sindical e governamental, acesso a empregos de longa duração, qualidade de vida e até mesmo, para boa parte dela, aquele orgulho identitário de ser bem-sucedido na sociedade nucleada na relação de capital.
Se essa economia política apreende os atores econômico como sujeitos, a crítica da economia política mostra que eles são sujeitos assujeitados à lógica compulsiva e infinita da acumulação de capital. A psicanálise desde Freud, por sua vez, mostra esse “sujeito”, assim construído desde o berço e na família, como um ser contraditório, em cuja psique lutam entre si e se combinam as pulsões amorosas/solidárias e as pulsões agressivas/individualistas.
Ora, essas últimas ganham proeminência na vida econômica desses “sujeitos” porque eles aí labutam num “sistema” – como diz Tone Tomšič – “que pode ser descrito como uma socialidade anti-social organizada”.
Ora, esse sistema, fundado que está na acumulação sem limite de capital, apesar de requerer cooperação na esfera da produção, promove de maneira intensa e extensa a competição, acentuadamente na esfera da circulação mercantil. Ora, como esse “sujeito” se defronta com forças que não controla e até mesmo desconhece, ele está permanentemente numa posição de pouca potência ou até mesmo numa condição precária.
Em consequência, a psique de muitos, aqueles assalariados ou por conta própria que não ousam lutar contra o sistema, encontra-se muitas vezes embargada pelo ressentimento. Eis que “covardemente” submetem o seu desejo à lógica do sistema, mas querem cobrar algo por essa submissão; mantêm, por isso, sentimentos de rancor, hostilidade, vingança, ciúme, inveja em relação a outros escolhidos como culpados.
Se Friedrich Nietzsche bem notou que esse afeto predomina na sociedade moderna, ele não o associou ao capitalismo. Ao contrário, considerou que se tratava de uma reação psicológica doentia, patológica, às condições sociais inexoráveis de uma sociedade que produz derrotas, desigualdade, insucesso etc., ou seja, que tende a produzir muitos perdedores.
Tone Tomšič mostra bem que essa crítica erra porque não desafia o individualismo e a lógica da competição: “Ao contrário da perspectiva de Nietzsche, o afeto em questão não é simplesmente uma reação “patológica” (…) à desigualdade, à injúria e à injustiça. De um ponto de vista mais estrutural, o ressentimento é uma manifestação (…) das relações econômicas de competição; eis que expressam o funcionamento compulsivo dessas relações em indivíduos e grupos sociais. Como o ressentimento impõe um envenenamento da diferença, ele marca o ser social com hostilidade mútua.
Se o ser social carrega a significação de “ser-com” e eventualmente de “ser em comum”, então o ressentimento sinaliza a subversão antissocial do ser social em “ser-contra”, um modo de ser que corresponde ao esforço capitalista pela “privatização” total do social e do comum, ou mais genericamente, um esforço para expropriar os sujeitos políticos de seus corpos, suas vidas e, finalmente, de toda estrutura que lhes forneceria condições (materiais e imateriais) para a reprodução da vida”.
Ora, toda essa volta de argumentos, foi necessária para encontrar a origem da segunda lacuna antes apontada nas explicações de Joseph Stiglitz e Daron Acemoglu para o advento e a vitória do extremismo de direita na última eleição nos EUA – assim como, em parte, para a falta de votos na direita tradicional. Dizer que Donald Trump ganhou porque Joe Biden e os próceres do partido democrata norte-americano abandonaram as causas que interessam aos trabalhadores é insuficiente e, na verdade, superficial.
A razão verdadeira dessa deriva é que o neoliberalismo, ao extremar o individualismo, ao impor competição sem tréguas aos “sujeitos” trabalhadores, exacerba e multiplica o ressentimento. Não tanto porque não tem cumprido o que antes prometera em termos de expansão econômica e bem-estar. Não tanto também porque subtraiu as vozes dos trabalhadores na competição política. Mas principalmente porque o empreendedorismo neoliberal e o ressentimento individualista estão, assim, bem conjugados entre si. E esse último requer uma cobertura da falta que “sujeito” sente por meio de “boas” mentiras e de violência irracional. É daí que surge a possibilidade de ascensão da extrema direita.
Os eleitores populares de Donald Trump são pessoas recriminadoras que “esqueceram” que submeteram os seus desejos ao sistema da relação de capital e que passaram a compensar a insatisfação com o próprio desempenho medíocre nesse sistema, dirigindo um ódio seletivo a outros tomados como culpados (imigrantes, pessoas que lutam por direitos, gente de esquerda, certos povos estrangeiros etc.). Ao votarem num político vingador, eles obtêm gozo, ou seja, satisfação perversa.
Donald Trump é um pequeno grande homem, “pequeno” porque se apresenta como um homem comum tal como os seus seguidores e “grande” porque, para além deles, parece poderoso e é capaz de esmagar de fato aqueles que foram escolhidos para serem falsamente responsabilizados e, assim, odiados. Nessa toada, ao invés de progresso, o capitalismo espalha agora destrutividade brutal tal como ocorreu na Alemanha nazista e está já acontecendo de modo proeminente no Oriente Médio, sob a agência de Israel/EUA. Foi para aprofundar essa tendência que Donald Trump venceu.