Vamos entender melhor o que ocorreu na semana passada no mercado, e o que o Banco Central poderia ter feito, quando se concretizou o estouro da boiada em torno do pacote fiscal. Muito pouco, apesar de contar com um diretor de política monetária competente. Isso porque a definição de um novo modelo de política monetária depende de uma coesão da diretoria e, especialmente, do apoio do presidente do banco. E tem que ser construído em prazos mais longos, em períodos mais tranquilos.

Nos últimos anos, o país deixou de ter política monetária, para caminhar a reboque do mercado. Tornou-se o paraíso da especulação financeira, garantindo as maiores taxas reais de juros nos títulos públicos dentre todos os países e o mercado livre para os especuladores, sem formas de regulação e com pouquíssima interferência do BC.

Na hora do terremoto, não havia sequer swaps disponíveis para contra-atacar. E ainda se corria o risco de interferências de Roberto Campos Neto, o presidente do banco, com suas declarações extemporâneas (mas calculadas), jogando a favor da especulação. Daí que se pode entender a inação do BC no dia. Mas é premente uma estratégia futura que elimine de vez essa apatia.

Muito analista teórico não entende o ponto central do jogo, o chamado overshooting dos mercados. Expliquei outro dia em um vídeo, mas muitas pessoas me procuraram por não ter entendido direito.

As circunstâncias políticas

Começa com as circunstâncias políticas e econômicas, indicando o futuro caminho dos mercados.

Desde o início do governo Lula, a postura do mercado – apoiado pela mídia – foi em torno do terrorismo fiscal. Já havia uma bomba relógio anterior, o teto de gastos, limitando drasticamente os gastos federais. A crítica à tal “gastança” tornou-se o bordão preferencial da mídia. Um coral terrorista despeja diariamente sobre a opinião pública os riscos da “gastança” – por tal entendam-se os gastos sociais, os direitos assegurados pela Constituição para saúde, educação e previdência social.

A saída do governo foi se mostrar mais realista que o rei e fixar para 2023 uma meta central de 3,25%, com um intervalo de tolerância de 1,5%. Para 2024 a meta foi reduzida para 3%. 

O único instrumento utilizado pelo governo para derrubar a inflação é a taxa de juros. Ou seja, há um problema de oferta, de crise ambiental, de quebra de safra, a inflação fica concentrada em alimentos ou produtos sazonais, pouco importa: tasca-se uma elevação da taxa Selic que afeta o consumo de TODOS os produtos. Na medicina, equivaleria à sangria para combater pressão alta: colocar sanguessugas nas costas do paciente para chupar seu sangue. Quanto menor a meta de inflação fixada, maior terá que ser a taxa de juros para encaixar a inflação no figurino apertado.

A lógica política do mercado é óbvia. O aumento das taxas de juros impacta diretamente a dívida pública, aumentando a relação dívida/PIB. Em cima desse aumento, provocado exclusivamente pela taxa de juros dos títulos públicos, exige-se que o governo equilibre o déficit primário – o que mede as despesas e receitas reais. Hoje se tem um governo à míngua, com ministérios e órgãos de apoio praticamente paralisados por falta de verbas.

Mais que isso: enfraquecido, o governo tem pouco campo político para investir contra a apropriação do orçamento tanto pelo Congresso quanto por inúmeros setores da economia, que bebem em benefícios fiscais. Uma das saídas é recorrer à privatização.

O terrorismo da gastança, então, consegue o duplo objetivo de reescrever a Constituição – investindo contra vinculações orçamentárias da saúde e educação – ou obrigando o governo a vender estatais para fazer caixa.

O jogo do overshooting

As explosões se dão no término de cada rodada, no chamado overshooting (ou seja, um movimento que radicaliza a tendência do mercado.

Passo 1 – com o mercado definindo a pauta impossível – um superávit primário que compense o aumento do déficit nominal, com os juros –, define-se um gatilho para a especulação: o pacote do governo para equilibrar o orçamento. O dia D é o do anúncio do pacote fiscal da Fazenda para 2025.

Passo 2 – 90% do mercado de títulos públicos é operado pela Faria Lima. Em torno desses títulos, fazem-se apostas recorrentes, através de derivativos – operações de apostas em torno de cotações futuras de determinados ativos, em suas diversas modalidades: contratos futuros, opções, trocas, contratos a termo. Em vários mercados organizados, há um conjunto de regras para reduzir a volatilidade, no mercado de títulos públicos, não.

Passo 3 – Definindo o gatilho, os grandes players tratam de adquirir ativos mais baratos e vão inflando, em movimentos sucessivos de alta. Cria-se o movimento de manada no qual embarcam os investidores menores. Para dar dimensão aos movimentos, recorrem-se às chamadas Operações Estruturadas, negociações mais complexas, como swaps de ativos ou estratégias combinadas para hedge, arbitragem ou especulação envolvendo o mercado de taxas de títulos públicos, títulos privados, câmbio etc. Cada movimento afeta todos os mercados.

Passo 4 – na véspera do gatilho (isto é, do anúncio do plano), os grandes players começam a vender suas posições em movimentos radicais, independentemente de qual seja o resultado do evento. Essa queda provoca uma fuga dos ativos, promovendo o chamado overshooting, o estouro da boiada. Quem demorar mais para vender sua posição, morre com o mico (lembrando o baralho do micro-preto).

Esse fenômeno foi estudado por Rudiger Dornbusch em 1976. 

Segundo o Modelo de Dornbusch, em resposta a uma mudança na política monetária, as taxas de câmbio podem ser ajustadas de forma abrupta e exagerada no curto prazo devido às diferenças na velocidade de ajuste entre os mercados financeiros e de bens. Passado o susto inicial, as cotações acabam se corrigindo, à medida em que se dilui o terrorismo inicial.

O papel do BC

Na semana passada, não havia o que o BC pudesse fazer. Para enfrentar esse tsunami, há a necessidade de medidas prévias de regulação, sem afrontar a lógica do mercado, mas buscando reduzir a volatilidade.

É trabalho de médio prazo, que exige coesão da diretoria do BC. Seria impossível qualquer medida abrupta agora, tendo um presidente do BC, Roberto Campos Neto, que atua claramente como elemento desestabilizador valendo-se exclusivamente do recurso a falas extemporâneas.

Com a entrada de Gabriel Galípolo e a nomeação dos demais diretores, espera-se uma estratégia cuidadosa, porém consistente, de redução da volatilidade, sem afrontar a lógica de mercado. Mesmo porque, esse jogo irresponsável deixou mortos e feridos no campo de batalha: fundos multimercados, que apostavam em ações de empresas, por exemplo.

Mas o ponto central é o fator tempo. A demora em trazer a Selic para um dígito e ajustar a cotação do dólar poderá inviabilizar definitivamente o governo Lula em 2025, abrindo espaço para a volta do bolsonarismo ao poder.

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Last Update: 02/12/2024