Para Andrés Calamaro e Marco Antônio Astoni
por Bruno Mateus
Se não tivéssemos amigos e canções, o que seria de nossa existência?
Foi em alguma tarde de 2000 que vi aquele CD no meio de outros em cima do pequeno móvel do quarto de minhas irmãs Maíra e Daniela. O disco era de Daniela, a mais velha, e foi comprado durante a temporada que ela passou em Buenos Aires no segundo semestre de 1999. Um disco duplo, 37 canções. Na capa se lê “andrés calamaro” (assim, mesmo, em caixa baixa) e “HONESTIDAD BRUTAL” (assim, mesmo, em caixa alta). Na contracapa do encarte, Calamaro fuma algo – um cigarro ou um baseado – e uma nuvem de fumaça se forma e lhe encobre parte do rosto.
Na arte que dá tons rubro-negros à capa, vemos ele, Andrés Calamaro – não inteiramente de perfil, mas também evitando um olhar frontal – de óculos escuros. “Honestidad brutal”, obra-prima do cantor e compositor argentino, não fez minha cabeça ali, de imediato, mas tempos depois se transformou em um dos álbuns da minha vida. Lançado naquele mesmo 1999, o CD, sequestrado na cara dura e em minha posse há anos, repousa seguro na minha estante.
Há discos que são muito mais que um apanhado de canções; se impõem como monumentos imponentes tão fortes são suas presenças. Discos assim também criam laços e memórias e existem eternos e infinitos no tempo e espaço. “Honestidad brutal” se encaixa nessa categoria e motivou conversas, risadas, sonhos e ressacas compartilhadas entre mim e Marco Antônio Astoni, com quem divido a paixão pelo Cruzeiro e o ofício do jornalismo, além da admiração pela obra de Calamaro.
Se “Honestidad brutal”, esse diamante de 37 canções, é uma espécie de amuleto que Daniela trouxe da Argentina na mala ainda no século passado, também é parte da memória da minha Buenos Aires que ainda guarda meus passos nas pedras de San Telmo. Esse álbum “transversal que corta o rock, o tango, a realidade e o futebol”, como Calamaro disse certa vez, também faz com que Astoni e eu habitemos uma mesma Buenos Aires – boêmia, problemática e fascinante.
Nas privações da pandemia, nas noites borrachas de isolamento, nós dois trocávamos mensagens e áudios teatrais, cantávamos Calamaro e falávamos como se portenhos fôssemos, exagerando no sotaque, nas gírias e até nos gestos e trejeitos invisíveis ao outro. Era nossa maneira debochada de aliviar a tensão do dia a dia e o medo de perder alguém para a Covid.
Não foi para a Covid, mas Astoni perdeu o pai em meados de 2020. Nossas “Sessões Calamaro” ficaram mais frequentes depois disso – ou talvez tenham até surgido naquele momento de dor e saudade para que a música pudesse então revelar sua condição sobrenatural e milagrosa.
Já escrevi por aqui que escutamos música para nos sentirmos vivos, humanos. É ela que nos dá encanto e fascínio para enfrentar o assombro dos dias comuns. Aquelas “Sessões Calamaro”, cada uma na sua casa, tempos brabos sem vacina e Bolsonaro zombando das mortes em seu plano genocida, era também minha forma de dizer a ele “conta comigo, te quiero”.
Foram muitas mensagens, tantas noites de Calamaro e em uma delas alguém disse “esse hijo de puta não deve fazer um show no Brasil tão cedo, já era”. O outro, sem deixar o tom pessimista cair, emendou “para vermos Calamaro ao vivo teremos que ir a Buenos Aires”.
Mas a vida tem lá seus baratos. Neste sábado (19), Andrés Calamaro, após passar por Porto Alegre, se apresenta em São Paulo, no palco do Cine Joia. O show faz parte da turnê “Agenda 1999”, que celebra os 25 anos de “Honestidad brutal”. Estaremos lá na plateia, Astoni e eu. E agora isso me faz pensar: se não tivéssemos amigos e canções, o que seria de nossa existência?
Bruno Mateus é jornalista de Belo Horizonte, pai da Amora e interessado pelo extraordinário das coisas comuns.
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