Deslocados enfrentam escassez de comida e ajuda limitada em meio aos constantes bombardeios israelenses. À DW, habitantes do enclave relatam cotidiano de desespero.
Todos os dias são cheios de ansiedade e exaustão. Os constantes bombardeios israelenses, a falta de sono e a busca por comida são avassaladores para a população deslocada da Faixa de Gaza.
“O dia gira em torno de pensar onde encontrar comida para minha família”, disse Raed al-Athamna, pai palestino deslocado na Cidade de Gaza, que falou à reportagem da DW por telefone, já que jornalistas estrangeiros seguem proibidos de entrar em Gaza.
“Não há nada para comer. Não há pão, pois não tenho dinheiro para comprar farinha. É muito caro. Hoje, tínhamos algumas lentilhas para as crianças e minha mãe, mas amanhã, não sei.”
Al-Athamna, que antes trabalhava como motorista para jornalistas estrangeiros em Gaza, disse não ter mais palavras para descrever a situação. “Há ataques aéreos e bombardeios israelenses o tempo todo. Já vi pessoas desmaiando nas ruas por não terem comido. As redes sociais estão cheias de vídeos de pessoas simplesmente desmaiando.”
Mantimentos se deterioram em ponto de passagem: “O terrível é que todos sabem que a comida está só a 10 quilômetros de distância”, diz membro de ONG | Amir Cohen/REUTERS
A reportagem da DW tinha conversado com al-Athamna pela última vez em maio, logo após o governo israelense ter autorizado a entrada de alguns caminhões de ajuda humanitária em Gaza, após um bloqueio de quase três meses. Na época, ele acreditava que a situação não poderia piorar para os 2,1 milhões de habitantes de Gaza.
Dois meses depois, al-Athamna descreve a situação como muito ruim. “Não se consegue encontrar um pedaço de pão, é uma situação muito difícil. Estou aqui com meus netos, eles estão chorando, dizendo: ‘Queremos um pedaço de pão’. E se você não pode dar nada a eles, eles não entendem. Isso parte o coração.”
ONGs emitem alerta
Organizações internacionais de saúde e assistência humanitária têm repetidamente alertado sobre as condições e a falta de suprimentos vitais em Gaza durante o conflito, que já dura 21 meses.
De acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, em inglês), quase 88% de Gaza está sob ordens de evacuação ou designada como zona militar. Essas áreas incluem a maior parte das terras agrícolas de Gaza, concentrando a população deslocada em um espaço cada vez mais limitado e complicando o acesso humanitário.
O chefe da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse nesta quarta-feira que uma grande parte da população de Gaza está morrendo de fome. “Não sei como você chamaria isso além de fome em massa; é uma doença causada pelo homem e isso é muito claro”, afirmou.
Ross Smith, diretor de emergência do Programa Alimentar Mundial (WFP, em inglês), disse na segunda-feira que a crise de fome em Gaza “atingiu novos e surpreendentes níveis de desespero”. Ele afirmou que “um terço da população não come por vários dias seguidos, incluindo mulheres e crianças”.
Explosão entre ruínas na Faixa de Gaza: ataques seguem em meio à crise aguda de fome | Amir Cohen/REUTERS
Nesta quinta-feira (24/07), o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, informou que, até o momento, em julho, 48 palestinos morreram de desnutrição, com 59 mortos por desnutrição desde o início de 2025. Esse número é superior aos 50 registrados em 2024 e aos quatro registrados no ano anterior, quando Israel iniciou sua guerra contra o Hamas em Gaza após a ofensiva terrrorista do grupo ao sul de Israel em 7 de outubro de 2023. Autoridades israelenses contestaram tais alegações, caracterizando-as como propaganda.
Preços dos alimentos disparam
Eyad Amin, 43 anos, pai de três crianças pequenas que encontrou abrigo na Cidade de Gaza, está desesperado. “Não há comida disponível e, quando há, é muito cara”, disse à DW.
Amin, ex-dono de uma papelaria, conseguiu comprar alguns vegetais, mas a preços que a maioria das pessoas não pode pagar. “Hoje comprei duas batatas, dois tomates e alguns pimentões verdes. Esses itens simples me custaram 140 shekels [cerca de R$ 234]”, disse.
Como a maioria dos palestinos em Gaza, Amin não tem renda, mas recebe ajuda de parentes no exterior. Aqueles sem esse apoio enfrentam dificuldades ainda maiores.
Sherine Qamar, mãe de duas crianças no norte da Cidade de Gaza, depende do apoio dos pais. “Vivemos praticamente sem comida, e o que comemos é apenas para sobreviver. Todos nós perdemos muito peso; eu, pessoalmente, perdi 15 quilos nos últimos quatro meses”, disse ela.
Segundo ONG americana, desde o início de julho quase triplicaram os casos de crianças com desnutrição aguda | UNRWA/IMAGO
O atendimento médico apresenta desafios adicionais. “Quando meus filhos adoecem por desnutrição ou por problemas como gripe, não conseguimos encontrar remédios em hospitais ou farmácias, e temos que esperar longas horas em organizações internacionais e hospitais para obter analgésicos”, disse Qamar à DW.
Desnutrição aguda triplica entre crianças
Em março, as autoridades israelenses fecharam as passagens para Gaza, alegando preocupações com o desvio de ajuda humanitária pelo Hamas. Essas restrições foram parcialmente suspensas em maio, quando o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, alegou que Israel estava agindo para evitar uma “crise de fome”.
Só que os israelenses passaram o controle da distribuição de ajuda humanitária para a controversa e obscura Fundação Humanitária de Gaza, ligada aos EUA, que hoje distribui caixas de alimentos pré-embaladas de três locais em zonas militarizadas controladas por Israel. Já os tradicionais mecanismos estabelecidos pela ONU ficaram em segundo plano na nova estratégia de Israel.
Atualmente, uma média de 28 caminhões de ajuda humanitária entram em Gaza diariamente, de acordo com dados da ONU, o que, segundo organizações humanitárias, está muito aquém das necessidades da população.
A MedGlobal, uma ONG americana que opera centros de nutrição em Gaza, relatou que desde o início de julho “quase triplicaram os casos de crianças com desnutrição aguda”.
Parentes choram perto de cadáveres de palestinos mortos em ataques israelenses em hospital em Gaza | Mahmoud Issa/REUTERS
“Não há mais reservas”, disse à DW John Kahler, cofundador da MedGlobal e pediatra que trabalhou em Gaza no ano passado. “Quando você contrai um vírus de repente, tem diarreia, o que te deixa exausto porque não tem mais nenhuma reserva física.”
“O terrível em Gaza é que todos sabem que os suprimentos de comida estão a apenas 10 quilômetros de distância”, acrescentou.
Escassez faz aumentar saques e vítimas
O Coordenador de Atividades Governamentais nos Territórios (Cogat, em inglês), órgão militar israelense que supervisiona as passagens de fronteira, disse à DW que “950 caminhões de ajuda humanitária aguardam no lado palestino” dos pontos de passagem. O órgão afirmou que Israel não restringe a ajuda humanitária a Gaza, mas reconheceu “desafios significativos no acúmulo de caminhões no lado de Gaza”.
A ONU tem afirmado repetidamente que o acúmulo na travessia se deve a múltiplas dificuldades, entre elas a coordenação com os militares israelenses. Os caminhões não podem se mover sem a autorização deles, para garantir que possam viajar com relativa segurança da travessia até o armazém e os centros de distribuição sem serem atacados pelo Exército israelense.
Desespero entre mulheres e crianças em pontos de distribuição de comida em Gaza | Ali Jadallah/ Anadolu/picture alliance
Devido à escassez de suprimentos, os saques aumentaram. No domingo, um comboio do WFP foi alvejado por tiroteio, resultando em vítimas entre as pessoas que aguardavam ajuda. Nas últimas semanas, pelo menos 875 pessoas foram mortas por disparos israelenses enquanto buscavam ajuda em um dos pontos de distribuição da Fundação Humanitária de Gaza ou enquanto esperavam por caminhões da ONU com suprimentos, segundo a ONU.
“Só fui uma vez buscar ajuda. Mas não vou mais. Se você for atingido ou ferido, ninguém te ajuda. Você simplesmente morre ali. Também não há nada nos hospitais para te ajudar”, disse al-Athamna, da Cidade de Gaza.
Ele acrescentou que a situação geral se tornou insustentável. “Ou você morre sendo bombardeado, ou morre sem comida. Eles continuam falando com os políticos sobre um cessar-fogo, mas nada acontece, e as coisas só pioram. O que devemos fazer?”
Publicado originalmente pelo DW em 25/07/2025
Por Tania Krämer