Apoiado pela Europa, o documento também condena os ataques de Israel e propõe reconstrução, desmilitarização e soberania palestina com supervisão internacional
Em um movimento sem precedentes na diplomacia regional, países da Liga Árabe e a Turquia exigiram, em uma reunião na sede da ONU em Nova York nesta terça-feira (29), que o grupo Hamas se desarme e renuncie ao controle da Faixa de Gaza. A declaração, apoiada também pela União Europeia, foi apresentada como parte de um esforço para revitalizar a solução de dois Estados e pôr fim à guerra em Gaza.
A reunião, iniciada na segunda-feira, foi coorganizada por França e Arábia Saudita e reuniu representantes de 17 países. O documento final, chamado de Declaração de Nova York, marca uma mudança significativa na postura de alguns países árabes em relação ao Hamas, condenando os ataques contra civis israelenses em 7 de outubro de 2023.
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“In the context of ending the war in Gaza, Hamas must end its rule in Gaza and hand over its weapons to the Palestinian Authority, with international engagement and support, in line with the objective of a sovereign and independent Palestinian State”, diz trecho da declaração conjunta.
A resolução também condenou os ataques de Israel contra civis e infraestrutura em Gaza, além do cerco e da fome que, segundo o texto, provocaram uma “catastrofe humanitária devastadora”. O documento defendeu o retorno às fronteiras de 1967, o direito de retorno dos palestinos expulsos na Nakba de 1948 e a reabilitação da economia palestina. Também foi incluído um pedido para a retirada de conteúdo “odioso” do sistema educacional da Autoridade Palestina.
Pressão internacional crescente
O ministro francês das Relações Exteriores, Jean-Noel Barrot, chamou a declaração de “histórica e sem precedentes”, destacando que, pela primeira vez, países árabes e do Oriente Médio condenaram publicamente o Hamas e defenderam seu desarmamento. “Eles também expressaram claramente sua intenção de normalizar relações com Israel no futuro”, acrescentou.
O chanceler saudita, Faisal bin Farhan, também fez um apelo aos Estados membros da ONU para que apoiassem o texto. A declaração, no entanto, foi boicotada por Israel e pelos Estados Unidos. Washington classificou o encontro como “produtivo, mas mal cronometrado”, enquanto Tel Aviv acusou a comunidade internacional de “fazer vista grossa” ao “terrorismo” do Hamas.
Diante da pressão internacional, França anunciou recentemente que reconhecerá um Estado palestino durante a 79ª Assembleia-Geral da ONU, em setembro. O Reino Unido também sinalizou nesse sentido: o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, afirmou que Londres reconhecerá a Palestina em setembro, a menos que Israel tome medidas concretas para acabar com a guerra em Gaza e retomar o processo de paz.
Israel ameaça anexação
O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, reagiu com dureza às ameaças de reconhecimento palestino, chamando o gesto de “recompensa pelo terrorismo monstruoso do Hamas”. Israel já vinha adiantando planos para acelerar a anexação da Cisjordânia ocupada caso o reconhecimento ocorra.
Segundo informações da emissora israelense Channel 12, o governo de Tel Aviv deve tomar uma decisão crucial nas próximas 48 horas. Se o Hamas não libertar os reféns, Israel poderá seguir com a anexação formal de partes da Faixa de Gaza. Pela legislação israelense, desfazer uma anexação exigiria o apoio de 80 membros do Knesset ou a aprovação por meio de um referendo nacional.
Enquanto isso, os bombardeios e a expansão dos assentamentos continuam na Cisjordânia. Em Gaza, as forças israelenses estão avançando para assumir o controle total da faixa e forçar a relocação de sua população. O bloqueio imposto por Israel à região resultou em uma fome generalizada, com dezenas de pessoas, incluindo crianças, morrendo de inanição nas últimas semanas.
Com o cenário cada vez mais tenso, a Declaração de Nova York surge como um novo capítulo nas tentativas internacionais de mediar o conflito. No entanto, a efetividade da resolução ainda depende da disposição das partes envolvidas em dialogar — e da pressão da comunidade internacional para que o façam.
Sessão franco-saudita da ONU sobre “solução de dois Estados” começa em meio ao boicote dos EUA e de Israel
Enquanto França e Arábia Saudita promovem uma conferência na sede da ONU em Nova York para reativar as negociações em torno da “solução de dois Estados” entre israelenses e palestinos, Israel e Estados Unidos decidiram boicotar o encontro. A iniciativa, que acontece entre os dias 28 e 30 de julho, havia sido adiada no mês anterior devido aos tensos momentos do conflito entre Israel e o Irã.
A reunião conta com a participação de dezenas de ministros das Relações Exteriores e busca retomar um diálogo que há anos parece estagnado. O presidente francês, Emmanuel Macron, aproveitou o momento para reafirmar seu compromisso com a causa palestina, prometendo que a França reconhecerá oficialmente um Estado da Palestina durante a Assembleia Geral da ONU em setembro.
“Fiel ao seu compromisso histórico com uma paz justa e duradoura no Oriente Médio, decidi que a França reconhecerá o Estado da Palestina… A paz é possível”, declarou Macron.
A declaração foi recebida com dureza por autoridades israelenses. O ministro da Justiça de Israel, Yariv Levin, classificou o gesto como “uma mancha negra na história da França e assistência direta ao terrorismo”. Em resposta, Levin afirmou que chegou “a hora de estabelecer a soberania sobre a Cisjordânia como uma resposta histórica e justa à decisão francesa”.
Aceleração da anexação
O tom das declarações israelenses reflete o crescente movimento do governo de Benjamin Netanyahu em direção à anexação da Cisjordânia. Em 24 de julho, o Knesset aprovou uma resolução para “aplicar a soberania israelense à Judeia, Samaria e ao Vale do Jordão” — nomes bíblicos usados para se referir à Cisjordânia ocupada.
O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, revelou que Israel preparou um “plano de escalada”, que inclui o deslocamento forçado de moradores da localidade de Khan al-Ahmar e a interrupção de serviços bancários em toda a região ocupada.
A iniciativa reforça uma série de medidas tomadas pelo governo israelense nos últimos meses. Em fevereiro, o Knesset já havia aprovado uma lei que proíbe formalmente o reconhecimento de um Estado palestino. O primeiro-ministro Netanyahu elogiou a medida, chamando-a de “uma mensagem clara à comunidade internacional”.
Na mesma sessão legislativa, o deputado de extrema direita Hanoch Milevetsky fez declarações ainda mais contundentes: “Não haverá um estado palestino vivo, vocês morrerão, seus filhos morrerão, seus netos morrerão, não haverá um estado palestino.”
Plano de confinamento em Gaza
Enquanto isso, Israel avança com um ambicioso plano para confinar à força os palestinos da Faixa de Gaza em uma área reduzida no sul da região. O ministro da Defesa, Israel Katz, propôs a construção de uma chamada “cidade humanitária” em Rafah — uma proposta que impediria o retorno dos deslocados às áreas do norte de Gaza e seria mantida sob proteção militar israelense.
A proposta tem sido amplamente criticada por especialistas em direitos humanos. Michael Sfard, um renomado advogado israelense, chamou o projeto de “um plano operacional para um crime contra a humanidade”. O historiador do Holocausto Amos Goldberg foi ainda mais direto: descreveu a iniciativa como “um campo de concentração ou um campo de trânsito para palestinos antes de serem expulsos”.
Apesar da resistência do próprio exército israelense, que teria se posicionado contra o plano por considerá-lo operacionalmente arriscado e custoso, Smotrich já teria aprovado as primeiras alocações orçamentárias para sua implementação.
Apoio popular e agenda internacional
Uma pesquisa divulgada em maio pelo jornal Haaretz revelou que 82% dos israelenses apoiam a expulsão forçada da população de Gaza. O primeiro-ministro Netanyahu tem vinculado explicitamente o fim da guerra à implementação de uma iniciativa apoiada pelos Estados Unidos para realocar permanentemente os palestinos em países terceiros.
Segundo informações da NBC News, o ex-presidente americano Donald Trump estaria trabalhando para deportar até um milhão de palestinos para a Líbia. Para supervisionar um novo sistema de ajuda humanitária atrelado a essa agenda de relocação, contratados de segurança dos EUA já teriam entrado em Gaza.
Com o debate internacional ganhando força, a conferência franco-saudita na ONU surge como um novo capítulo em uma crise que, a cada dia, parece se aprofundar ainda mais. Enquanto as tensões aumentam, a comunidade internacional acompanha de perto os desdobramentos — e as possíveis consequências de decisões que podem redefinir o futuro do Oriente Médio.