Em um único momento do ano, as ruas de quase todos os países da América Latina são tomadas por multidões. Sejam as maratonas de desfiles, grupos musicais, sátiras ou rituais de limpeza espiritual, os carnavais no subcontinente unem história e resistência popular. São diferentes em sua semelhança.
Segundo país com mais habitantes da América do Sul, a Colômbia tem um dos carnavais mais plurais, celebrados de maneiras diversas, de acordo com a porção do território. Dois deles tornaram-se patrimônio cultural da humanidade: o Brancos e Negros, em Pasto, referência ao período da escravidão e à independência, e os blocos de rua em Barranquilla. “São celebrações com grande participação de populações mestiças. Ao Sul, as tradições remetem a aspectos andinos, com destaque para o artesanato com grandes e detalhadas figuras, enquanto no Caribe confluem diferentes ritmos afro como a cumbia, o mapalé e a champeta, que envolvem uma complexa cadeia artística, econômica e social”, resume o produtor Gabriel Vargas.
Os festejos na costa caribenha distribuem-se em geral às margens do Rio Madalena. “Ocorrem atividades nos bairros e grandes encontros como a Batalha das Flores, no qual é celebrado o fim da guerra civil dos mil dias, além da coroação de rainhas, incluindo a principal, sempre provinda de uma família rica. Quanto mais próspero for o clã, mais exuberante será o carnaval, pela capacidade de atrair investimentos. Na quarta-feira de cinzas, todos vão à igreja para se arrepender dos pecados”, diz Vargas. O carnaval de Barranquilla atrai os vizinhos de fronteira. Orquestras tropicais venezuelanas de salsa, merengue e outros ritmos se apresentam no prestigiado festival Congo de Oro.
Na Venezuela, por sua vez, além de desfiles em cidades maiores e trios musicais, são comuns as brincadeiras e trotes com água, comuns também no Equador. “A política pode estar muito dura, mas não paramos por nada, é um raro momento de apaziguamento e descontração”, afirma o hoteleiro Leonardo Viegas. No Uruguai, a contestação e a sátira política são o quesito de destaque das aclamadas murgas, grupos de músicos que compõem e se apresentam em teatros, arenas abertas e competem em concursos. “É difícil dizer como uma murga se forma, como se agrupa uma roda de samba? É parecido”, compara o ator Seba Charo. Durante a ditadura nos anos 70 e 80, letras e grupos foram censurados. “Historicamente, essa arte adere a uma visão progressista e mais próxima à esquerda, mas nem sempre foi assim, pois muitos consideravam que a festa distraía o povo indevidamente. Outro ponto de sua essência é ser itinerante, oriundo de bairros, com repertórios que refletem a atualidade através de crítica e humor. O gênero combina elementos sonoros de imigrantes espanhóis, onde nasceu, ao candombe de raízes africanas”, descreve o músico Christian Font.
No México, a contestação ao poder, atual ou histórico, é uma marca, relata a jornalista Leslie Gómez. “Nossos carnavais têm peculiaridades frente aos demais da região. Apesar de compartilharem a essência da festividade com música, dança e fantasias, por aqui mesclamos costumes indígenas e elementos próprios. Em Tlaxcala, os colonizadores espanhóis são satirizados e em VeraCruz se termina com o mau augúrio por meio de um boneco que simboliza os problemas do ano que passou.”
Do México ao Uruguai, a folia trafega da crítica social à limpeza espiritual
Fenômeno semelhante acontece em Oruro, capital folclórica da Bolívia e cujo carnaval se origina de uma lenda andina relacionada à salvação do povoado. Os festejos, que chegaram a ser proibidos durante a época da colonização, adotaram o sincretismo. A Virgem de Socavón é a padroeira do carnaval, que atrai milhares de turistas em desfiles de até 20 horas de duração sob o comando de grupos folclóricos que se preparam meses antes e não sentem os efeitos da altitude de 3 mil metros. “Tenho um tio que dança há 35 anos e essa relação é um compromisso com o grupo, com a comunidade e com a fé. É algo realmente lindo”, diz a comunicadora Karla Burgoa, que viajou de São Paulo, onde reside, para participar da festa, iniciada com o chamado carnaval campesino, momento no qual os agricultores agradecem a colheita.
Na República Dominicana, as comemorações igualmente servem à limpeza espiritual. “Os foliões se vestem de demônios, cada um com seu nome e com pinturas e roupas feitas à mão. Eles saem às ruas para espantar o que há de ruim. Apanhar de um deles com suas bolas de plástico é considerado uma bênção”, conta o cirurgião Luis Herrera. Há ainda a tradição dos desfiles e personagens controversos. “Um desses é a representação estereotipada das mulheres do país, com peitos e bundas avantajadas, pintura preta retinta e um guarda-chuva. Uma forma de deboche fantasiada literalmente pelos homens em um país profundamente machista. Achava o carnaval brasileiro vulgar antes de vir morar aqui, devido às imagens que via por lá”, lembra o dominicano radicado no Brasil.
No vizinho Haiti, o carnaval nem começo terá. Por causa da violência e da profunda crise política, o governo proibiu os festejos neste ano. “O cancelamento se deve à situação de descontrole causada pelas gangues e foi uma decisão tomada por pressão dos cidadãos, que entendem haver problemas mais urgentes para resolver”, acredita o professor Edris Amand. A capital Porto Príncipe e as cidades de Jacmel, Les Cayes y Cabo Haitiano são os principais pontos de encontro e movimentam os hotéis e o comércio local. “Celebramos nossa identidade, patrimônio, expressão artística, criatividade nas fantasias e carros alegóricos, coloridos, extravagantes e inspirados em nossa mitologia e cultura, mas infelizmente dessa vez ficará para o ano que vem”, lamenta Amand. •
Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Outros carnavais’