Ao receber o último Urso de Prata da fileira de estatuetas sobre uma bancada, Gabriel Mascaro segurou nas mãos a honra pelo Grande Prêmio do Júri de uma Berlinale caracterizada por jubileus, novos rumos e pela presença de 13 produções brasileiras espalhadas por quase todas as seções.
O diretor brasileiro teve razão ao afirmar, na noite da premiação, que “nunca é tarde para encontrar um novo significado na vida”. Enquanto no enredo de O Último Azul o idoso perde seus direitos ao completar 75 anos, o evento, em seu 75º ano de existência, se refez e, sob a direção de Tricia Tuttle, elevou seu padrão e garantiu uma edição sem escândalos políticos como os do ano passado.
Neste ano caiu neve sobre o tapete vermelho. O festival foi o mais frio em muito tempo e também o primeiro a ser realizado imediatamente antes de eleições parlamentares na Alemanha. A Berlinale recuperou seu caráter de “família global”, que havia quase perdido em 2024.
Relações familiares foram um tema dominante na tela, assim como a presença feminina à frente e atrás das câmeras. Mulheres idosas prontas para a próxima aventura sublinham os dois filmes que receberam as maiores premiações, O Último Azul e Dreams, do norueguês Dag Johan Haugeruds, vencedor do Urso de Ouro.
Mascaro imaginou uma sociedade que recolhe seus idosos em colônias e tematizou a luta pela autonomia de Tereza (Denise Weinberg), que, aos 77 anos, precisava da autorização da filha até para comprar um açaí na lanchonete. “Quis pensar o idoso capaz de desafiar”, diz. A avó de Dreams, se não chega a desafiar o sistema, mantém as fantasias nesse filme que narra o primeiro amor da neta adolescente.
O público juvenil pôde ver nada menos que cinco títulos brasileiros. “Já pelas inscrições era perceptível que há muito cinema brasileiro no momento”, disse Sebastian Markt, coordenador da mostra Generation, dedicada aos jovens.
O documentário Hora do Recreio, de Lucia Murat, exibido nessa seção encontrou sua contraparte em Timestamp, da ucraniana Kateryna Gornostai, que competiu na mostra principal. Enquanto Timestamp registra o dia a dia de jovens e crianças em escolas de uma Ucrânia em guerra, Lucia documenta adolescentes de escolas públicas do Rio de Janeiro falando, a partir das próprias vivências, de temas como discriminação racial, social, de gênero e violência familiar.
“A possibilidade de reversão da tragédia da desigualdade brasileira está nesses jovens”, diz a cineasta, que ganhou a Menção Honrosa do júri juvenil da Generation. O documentário será levado às salas de aula em Berlim, dentro do Projeto-Escola da Berlinale. “Mal posso esperar para ver como será recebido pelos alunos”, diz a coordenadora Melika Gothe.
A segunda menção honrosa para uma coprodução brasileira presente na Generation foi para o curta Atardecer en America, do chileno Matias Rojas Valencia, que trata da migração em massa de venezuelanos para o Chile sob o ponto de vista de uma jovem.
Coincidência ou não, os nossos cinco longas-metragens brasileiros selecionados foram feitos em cinco regiões e dirigidos por cineastas de cinco gerações. “O cinema brasileiro está saudável de maneira muito ampla”, disse Eduardo Valente, delegado da Berlinale para o Brasil.
“Prevemos um volume de negócios 30% maior do que em 2024”, diz Morris Kachani, diretor-executivo do programa Cinema do Brasil, que participou das rodadas de negócios da Berlinale. “Diante da crise mundial do fomento, o Brasil torna-se um forte parceiro em coproduções.”
“O cinema brasileiro está saudável de maneira muito ampla”, diz Eduardo Valente, que representa o evento no País
A imprensa alemã falou bem de A Melhor Mãe do Mundo, de Anna Muylaert. Numa edição em que o prêmio de melhor atriz foi dado à australiana Rose Byrne, por interpretar uma mãe que enlouquece sob extrema pressão, em If I Had Legs, I’d Kick You, a mãe criada por Anna, ao contrário, ganha autoestima ao longo do percurso dramático.
A personagem Gal (Shirley Cruz) foge do companheiro violento (Seu Jorge) puxando uma carroça de coleta de lixo pelas ruas de São Paulo, levando em cima seus dois filhos. “É um filme de construção de autorrespeito”, afirma a diretora.
A exibição da obra-prima Iracema, Uma Transa Amazônica (1975), de Jorge Bodanski e Orlando Senna, faz um arco de 50 anos com o filme de Mascaro, que também se passa na Amazônia. Ambos trazem, como pano de fundo, o discurso ufanista de um governo e acompanham uma viagem pela mata – um pelas estradas, outro pelos rios.
Mas, enquanto Iracema é uma jornada incisiva por uma realidade que ainda existe, de desmatamento, trabalho escravo e prostituição infantil, o filme de Mascaro opta pelo registro distópico – uma representação fictícia negativa de uma sociedade futura –, mantendo a suavidade narrativa.
“Quis fazer um filme como se fosse uma dança, em que o espectador ama a personagem, sente-se forte à medida que ela se fortalece”, afirmou Mascaro. O Último Azul, que traz Rodrigo Santoro e a atriz cubana Miriam Socarrás em papéis secundários e teve coprodução do México, Chile e Países Baixos, levou outras duas estatuetas: o prêmio Ecumênico e o dos leitores do jornal Berliner Morgenpost.
Sob o impacto do Globo de Ouro e das indicações ao Oscar de Ainda Estou Aqui, o cinema brasileiro sai do primeiro grande festival internacional do ano com conquistas que soam a bom presságio. •
Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Outro tapete vermelho ‘