
Os vistos como instrumentos de pressão: a crise entre o Brasil e os Estados Unidos e o destino das Nações Unidas
por Rasem Bisharat
Quando os vistos se transformam em muros políticos, as Nações Unidas tornam-se reféns de uma decisão estadunidense–israelense, e o Sul Global é alvo em suas vozes palestina e brasileira ao mesmo tempo.
Nas últimas semanas, vieram a público os contornos de uma crise diplomática em crescimento entre o Brasil e os Estados Unidos, uma crise que não pode ser dissociada da natureza do atual sistema internacional, baseado em uma hegemonia polar, nem das ferramentas de pressão que Washington aprendeu a manejar com habilidade, como os vistos e as sanções individuais. Por um lado, a administração do presidente norte-americano Donald Trump intensificou suas pressões sobre o poder judiciário brasileiro ao impor restrições de vistos e sanções a altos funcionários acusados de envolvimento no julgamento do ex-presidente de direita Jair Bolsonaro, que enfrenta acusações de tentar reverter os resultados eleitorais. Essa medida foi condenada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que classificou a retirada do visto do ministro da Justiça Ricardo Lewandowski como “inaceitável”, transformando o que começou como um caso judicial interno em um campo aberto de confronto político e diplomático.
A crise ganhou uma dimensão adicional com a aproximação das reuniões da Assembleia Geral das Nações Unidas. Relatórios vazados de Washington confirmaram a intenção de impor restrições a determinadas delegações, incluindo a brasileira. O dilema aqui está na dimensão protocolar: tradicionalmente, nas reuniões de setembro da Assembleia Geral, o presidente do Brasil fala primeiro, seguido imediatamente pelo presidente dos Estados Unidos, uma ordem simbólica que reflete o reconhecimento do papel histórico do Brasil na ONU. Ainda não está claro se essas restrições se aplicariam ao próprio presidente Lula ou apenas a funcionários de menor escalão, mas o simples fato de serem cogitadas já constitui um precedente grave que abala as normas onusianas e reabre a questão fundamental sobre o grau de comprometimento de Washington com o Acordo de Sede firmado com as Nações Unidas, que estipula garantir a chegada de todas as delegações sem obstáculos. Paradoxalmente, esse cenário remete às políticas recentes dos Estados Unidos que negaram a concessão de vistos a líderes palestinos, incluindo o próprio presidente Mahmoud Abbas, em um passo que representou uma violação explícita ao espírito do mesmo acordo e reacendeu a problemática da dupla moral no sistema internacional.
A escalada não se limitou ao campo judicial e diplomático, mas se estendeu também à esfera comercial, onde Washington elevou as tarifas sobre importações brasileiras para 50%, gerando profunda preocupação nos círculos empresariais e forçando o Brasil a ameaçar com medidas de retaliação equivalentes. Ao mesmo tempo, os bancos brasileiros enfrentaram um dilema complexo depois que as sanções norte-americanas atingiram o juiz da Suprema Corte Alexandre de Moraes, colocando as instituições financeiras em um impasse entre as obrigações da lei nacional e as pressões do sistema financeiro liderado pelos EUA. Essa divisão reflete com precisão como as ferramentas de hegemonia econômica se transformaram em uma extensão da decisão política na disputa entre Norte e Sul.
Entretanto, a dimensão mais sensível continua sendo a política. O presidente Trump, que não cessou de criticar Lula, enxerga o julgamento de Bolsonaro como uma ameaça direta ao seu projeto ideológico transnacional. Daí suas tentativas abertas de influenciar o judiciário brasileiro, tentativas rejeitadas de forma explícita pela Suprema Corte, que reafirmou não se submeter a nenhuma pressão externa.
Esse embate judicial–diplomático nos remete também a outra crise vivida atualmente pelo Brasil: a escalada de tensões com Israel. As posições de Lula em apoio à causa palestina e sua rejeição às políticas de ocupação provocaram uma crise sem precedentes com Tel Aviv, que chegou ao intercâmbio público de acusações e à retirada de embaixadores. Ao colocarmos essa crise ao lado da intenção de Washington de impedir a plena participação da delegação brasileira nas reuniões da ONU, torna-se evidente a conexão estrutural entre dois caminhos:
- O uso de ferramentas de punição diplomática para silenciar as vozes contrárias à hegemonia estadunidense–israelense.
- O esvaziamento da ONU de seu conteúdo como fórum internacional livre, transformando-a em um instrumento de controle subordinado ao centro imperial.
A reação do Brasil será de múltiplos níveis: diplomaticamente, insistirá em manter os protocolos internacionais e sua soberania judicial; economicamente, poderá recorrer a medidas de retaliação como tarifas ou restrições comerciais; e politicamente, é provável que adote um discurso de escalada calculada no cenário internacional, aproveitando alianças regionais e globais para defender seus interesses. Dessa forma, a crise se transforma em um ciclo de escalada mútua, no qual a pressão judicial e política dos Estados Unidos encontra a resistência diplomática e econômica do Brasil, tornando difícil o caminho para a restauração da confiança.
A leitura desses acontecimentos revela claramente que o que está em jogo não é apenas um desacordo bilateral entre Brasil e Estados Unidos, mas parte de uma transformação estrutural mais ampla nas relações internacionais.
Quando os vistos se transformam em muros políticos, as Nações Unidas tornam-se reféns de uma decisão estadunidense–israelense, e o Sul Global, em suas vozes palestina e brasileira, passa a ser alvo direto. Os vistos deixaram de ser meros documentos de entrada e se tornaram instrumentos de cerco político, enquanto as sanções já não estão ligadas apenas a violações do direito internacional, mas passaram a ser um meio de subjugar os sistemas nacionais e reinseri-los na estrutura capitalista global sob as condições do centro dominante. Negar o visto ao presidente palestino Mahmoud Abbas ou cogitar impedir o presidente brasileiro Lula da Silva de pronunciar seu discurso na ONU revela que a questão vai além das pessoas e reflete uma tentativa de reconfigurar todo o sistema das Nações Unidas. Trata-se de um sistema que não tolera a pluralidade e que não aceita as vozes do Sul Global quando estas se desviam do roteiro prescrito.
Dr. Rasem Bisharat – especialista em assuntos brasileiros
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