Como o genocídio que testemunhamos em Gaza será visto pela história? Quais os paradoxos memoriais e políticos de uma situação em que os agressores se fazem passar por vítimas, em nome da opressão vivida por seus ancestrais? Essas são algumas das questões a servir de bússola para Enzo Traverso em Gaza Diante da história.
Italiano de origem radicado na França por várias décadas, e atualmente professor da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, Traverso é um dos mais importantes historiadores em atividade. Ele reconhece que a história do que se passa atualmente em Gaza só poderá ser escrita, de fato, no futuro. Por agora, o que se pode fazer é “observar os usos políticos do passado” mobilizados na guerra, de maneira que a história possa nos ajudar a compreender os dilemas do presente.
E é assim que ele procede, do presente ao passado, e vice-versa, sem jamais esconder sua verdadeira motivação, ligada ao “tempo-de-agora”: o sentimento de indignação não apenas diante do massacre promovido pelas forças armadas de Israel, mas em face do modo como a memória é instrumentalizada.
A catástrofe atual vem de longe, e é à luz dessa história que se jogam as disputas em torno do passado. O capítulo mais importante nesta saga é, sem dúvida, a criação do Estado de Israel, em 1948 – seguida das decisões políticas israelenses.
Como mostra Traverso, à diferença do que prega o “clichê terceiro-mundista” segundo o qual “Israel nasceu como ‘bastião do imperialismo’”, o sionismo padecia de uma “contradição original (que) o situava a meio caminho entre um movimento de liberação nacional e um movimento colonialista clássico”. E, no fim das contas, foi essa última perspectiva que acabou por prevalecer, impondo um Estado fundado em bases étnico-raciais.
Nesse cenário, o Holocausto, tornado uma “religião civil” da democracia e dos direitos humanos na União Europeia, é cada vez mais associado à defesa de Israel, não sem o protesto de muitos judeus israelenses ou da diáspora.
O resultado dessa reviravolta histórica, argumenta Traverso, é uma deturpação do papel pedagógico da memória do Holocausto, que passa a ser confundida com a defesa dos interesses políticos de Israel. “O risco de banalização é bastante real: se é possível travar uma guerra genocida em nome da luta contra o antissemitismo, muitas pessoas honestas começarão a pensar que seria melhor abandonar uma causa tão duvidosa”, escreve o autor.
É nesse contexto que, para Traverso, após o fracasso dos acordos de Oslo, o projeto de dois Estados convivendo lado a lado, sob tensão constante, não é mais uma solução. Embora hoje pareça improvável, a única saída, a largo prazo, é a construção de um Estado binacional laico, em que que todos – israelenses e palestinos, judeus, muçulmanos e cristãos – possam conviver em situação de igualdade.
Utopia? Sim. Mas qual projeto de transformação não era uma utopia antes de se tornar realidade? “Às vezes, as tragédias servem para abrir novos horizontes.”
O que mais impressiona em Gaza Diante da História é a capacidade de síntese do autor. Em pouco mais de cem páginas, ele nos joga no olho de um furacão diante do qual não podemos permanecer indiferentes. Sem abandonar o rigor conceitual, Traverso constrói uma narrativa cativante, mostrando-nos que a escrita é muito mais que mero instrumento: ela é também uma força de incitação e de estímulo à reflexão e à ação. •
*Fabio Mascaro Querido é professor
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
“Usei muitas peles nesta vida já longa”, escreveu Darcy Ribeiro, o antropólogo que ajudou a explicar o Brasil. Alguns desses Darcys são revisitados em Darcy Ribeiro, uma Utopia (176 págs., 59,90 reais), que sai pela coleção Debates, da editora Perspectiva, e reúne oito ensaios sobre ele.
Quase livro-objeto, a edição da Ubu de A Construção (88 págs., 89,90 reais), escrito por Kafka seis meses antes de sua morte, busca, por meio de um projeto gráfico intrigante, ampliar os sentidos da novela narrada por uma criatura que constrói uma toca subterrânea e teme que seja invadida.
Menos célebre que muitos de seus conterrâneos do século XIX, mas não menos sagaz e envolvente, Nikolai Leskov tem outra coletânea de contos lançada pela Coleção Leste, da Editora 34: Um Pequeno Engano e Outras Histórias (336 págs., 86 reais), organizada e traduzida por Noé Polli.
Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os usos políticos do passado’