Artigo publicado no Décimo-segundo Boletim do Observatório Internacional do Século XXI
Os recursos naturais, a disputa geopolítica e a luta pela soberania africana.
por José Luís Fiori
A África é o segundo maior continente do mundo, com cerca de 1 bilhão e meio de habitantes, ou seja,18,83% da população mundial. São nove territórios e 57 Estados independentes, divididos em cinco grandes regiões, e é comum separá-las em dois grandes blocos: a África do Norte, predominantemente arábica, e a África Negra ou Sub-Sahariana, ao sul do Sahel. Apesar de suas dimensões geográficas e demográficas, a África produz apenas 5,4% do PIB mundial (em termos de paridade do poder de compra), 2% das transações comerciais globais e captou menos de 2% do investimento direto estrangeiro dos últimos anos.
A independência africana, depois da II Guerra Mundial, despertou grandes expectativas com relação aos seus novos governos de “libertação nacional” e projetos de desenvolvimento, que foram bem-sucedidos – em alguns casos – durante os primeiros tempos de vida independente. Esse desempenho inicial, entretanto, foi atropelado por sucessivos golpes militares (envolvendo, quase sempre, suas ex-metrópoles coloniais) e pela crise mundial dos anos 1970, que atingiu todas as sociedades periféricas, provocando um prolongado declínio da economia africana até o início do século XXI. Na década de 90, depois do fim do mundo socialista e da Guerra Fria, e no auge da globalização financeira, o continente africano ficou praticamente à margem dos novos fluxos de comércio e investimentos globais. E só voltou a crescer nas primeiras décadas do século XXI, assim mesmo de forma extremamente desigual. Nigéria, Egito e África do Sul são os três países mais ricos da África.
A África conta com 25% das reservas mundiais de urânio, mais de 35% do potencial hidroelétrico do mundo e é responsável pelo fornecimento de 15% da produção mineral do planeta, dos quais 20% de diamantes e platina, 50% de cobalto, mais de 30% de ouro e de cromo, e cerca de 20% de manganês e fosfato.[1]
Além disso, a África é hoje uma grande produtora e fornecedora de petróleo para a Europa e a Ásia. E foi graças a essa sua produção energética, e de alguns outros minerais estratégicos, que a economia africana começou a se recuperar a partir de 2001, alavancada pelo crescimento econômico da China e da Índia. Hoje a China é o maior parceiro comercial da África e vem aumentando seus investimentos em infraestrutura, energia e mineração, assim como no caso da Índia, que compete com os chineses em muitos casos, rivalizando e superando em conjunto a Europa e os Estados Unidos, que foram os principais parceiros econômicos do continente africano logo após as independências nacionais.

Nesse novo contexto, adquire enorme importância a incorporação de Nigéria, Egito e Etiópia como países-membros do BRICS, na 15ª Cúpula do BRICS, realizada em Johanesburgo. Estes vieram se somar à África do Sul como “membros plenos”, e a Nigéria e Uganda, que foram convidados como “membros associados” na 16ª. Cúpula do BRICS, realizada na cidade de Kazan, Rússia.
Do lado norte-americano, depois da frustrada “intervenção humanitária” na Somália, em 1993, o presidente Bill Clinton visitou o continente e definiu uma estratégia de “baixo teor” para a África: democracia e crescimento econômico, através da globalização de seus mercados nacionais. Mas após 2001, os Estados Unidos mudaram sua política africana, em nome do combate ao terrorismo e da proteção de seus interesses estratégicos e energéticos, culminando com a criação, em outubro de 2007, do Comando dos Estados Unidos para a África, o AFRICOM, estabelecido em Camp Lamonier, a maior base militar dos EUA na África, na cidade de Djibouti, onde França e China também possuem bases ultramarinas.
Esse aumento da presença militar americana, entretanto, não foi um fenômeno isolado nas duas primeiras décadas do século XXI; pelo contrário, foi acompanhado de perto pela União Europeia e Grã-Bretanha, que mantém uma importante base militar conjunta com os EUA nas Ilhas Chagos, especificamente em Diego Garcia. Por outro lado, a Rússia vem expandindo sua presença africana, com a assinatura de vários acordos de colaboração militar com países da África Negra – em particular da região do Sahel, que se estende da Costa Atlântica até o Mar Vermelho –, envolvendo o projeto de instalação de uma base naval na costa do Mar Vermelho, no território do Sudão.

Mais recentemente, depois da reeleição de Donald Trump, os EUA recolocaram a economia e recursos minerais no topo da sua agenda africana. E Trump promoveu um primeiro acordo de paz entre Ruanda e a República Democrático do Congo, depois de décadas de conflito, que rendeu para os EUA um acesso privilegiado aos recursos minerais do Congo, como no caso dos seus acordos recentes com a Ucrania. Assim mesmo, este jogo de xadrez e econômico e militar tende a se complicar complicou-se com o avanço da competição e do enfrentamento entre as “potencias ocidentais” e o s países do BICS, liderados exatamente, pela China, Rússia e Índia. Uma disputa que relembra a todo momento a mesa a ameaça de uma volta à história trágica da dominação colonial da África.
Cabe relembrar que tudo começou exatamente com a conquista portuguesa da cidade de Ceuta, no norte da África, em 1415, seguindo depois pela costa africana, transformando a população negra na principal commodity da economia mundial a partir do século XVI. Depois, de novo, na “era dos impérios”, no final do século XIX, as potências europeias conquistaram e submeteram – em poucos anos – todo o continente africano, com exceção da Etiópia. E agora, já na terceira década do século XXI, há sinais de que a África possa se transformar – uma vez mais – no palco de um novo grande enfrentamento entre as velhas e novas grandes potências do sistema internacional.
É nesse contexto que se deve ler e interpretar a chamada “primavera árabe”, uma revolta social que se alastrou de 2010 a 2015, no chamado “Grande Médio Oriente” (expressão cunhada pela política externa dos EUA), começando pela Tunísia, seguida por Líbia, Egito, Marrocos e Argélia. Foi um movimento que combinou, em todos os casos, a efervescência e a revolta social interna de cada um destes países com o patrocínio e a intervenção externa, direta ou indireta, dos Estados Unidos, visando a derrubada de governos ou a mudança de regimes que haviam sido apoiados ou financiados até então pelas próprias potências ocidentais. A revolta foi reprimida no Marrocos e na Argélia, e foi revertida no Egito, mas se transformou numa guerra aberta no caso da Líbia, com participação direta das forças da OTAN.
Após 2020, um novo “tufão político” sacudiu a África, com uma sucessão de golpes e revoltas militares concentrados na região do Sahel, incluindo países como Mali, Guiné, Chade, Burkina Faso, Níger e Gabão. Foram sete golpes de Estado em apenas dois anos, quase todos com uma linguagem e proposta de ruptura definitiva dos laços neocoloniais que mantiveram esses países ligados e dependentes de seus colonizadores europeus, mesmo após suas independências. E quase todos se propuseram a aumentar seus graus de soberania interna através de um realinhamento internacional, com uma aproximação militar e econômica da Rússia e da China.

Não há dúvida, entretanto, de que o grande momento de ruptura e afirmação da autonomia africana, em particular a África Negra frente aos seus colonizadores brancos e europeus, aconteceu quando o governo da África do Sul, à frente de vários outros países africanos, entrou com ação judicial junto à Corte Internacional de Justiça sediada em Haia, acusando Israel de genocídio da população palestina da Faixa de Gaza. Uma petição judicial de 84 páginas que acusa Israel de haver violado a Convenção de Genebra de 1948, apoiada posteriormente pelos 57 países da Organização dos Países Islâmicos, e pelos 22 membros da Liga Árabe, além dos governos de Turquia, Colômbia, Brasil e Bolívia.
Pela primeira vez na História, um país africano e negro, ex-colônia europeia, se levanta sobre seus próprios pés e toma a iniciativa soberana de acusar Israel, um “país branco e escolhido por Deus”, por crimes contra a humanidade, frente a um tribunal criado e controlado pelas grandes potências colonialistas europeias, as mesmas que criaram e mantêm o Estado de Israel. Um verdadeiro momento revolucionário nas relações entre a África e seus ex-colonizadores, e mais do que isto, uma momento revolucionário na história moral do Sistema Internacional e da Humanidade.
27 de junho de 2025
[1] Penha, E.A. Relações Brasil-África e geopolítica do Atlântico sul. Salvador, EDUFBA, 2011, p. 201.
José Luís Fiori – Professor emérito dos Programas de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ.
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