Uma rápida pesquisa na internet é suficiente para confirmar uma tendência observada nos últimos anos: a expansão do uso de tecnologias de reconhecimento facial em festas de Carnaval pelo Brasil. Aliás, nem foi preciso chegar a data oficial dos festejos de Momo. Ainda nas prévias, a Polícia Militar de Santa Catarina e a Guarda Civil Metropolitana anunciaram prisões de pessoas suspeitas de crimes, a partir da identificação por esta tecnologia, em Florianópolis e São Paulo, respectivamente.
Em Belo Horizonte, 200 drones com câmeras de reconhecimento facial irão vigiar do alto quem estiver se divertindo. O Governo de Minas Gerais declarou que os dispositivos também poderão emitir comandos por som. No Carnaval…No Carnaval!
Na Bahia, a Secretaria de Segurança Pública daquele estado informou que serão utilizadas 1.500 câmeras de reconhecimento facial em 113 cidades. Vale lembrar que, conforme reportagem do The Intercept, a Bahia foi transformada num verdadeiro laboratório de vigilância.
O espetáculo com a adoção do reconhecimento facial é tão grande que, com aquele sorriso amarelo que lhe é característico, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), inaugurou, nesta terça-feira 25, o chamado “Prisômetro”, um painel digital que, de acordo com a Prefeitura, “vai mostrar, em tempo real, a contagem de presos em flagrante, foragidos da Justiça capturados e pessoas desaparecidas encontradas com o auxílio das câmeras com tecnologia de reconhecimento facial”.
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Ricardo Nunes inaugura o ‘Prisômetro’ no Centro de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr/SECOM SP
A escolha do nome “Prisômetro” é emblemática do uso punitivista – e populista – das tecnologias digitais na segurança pública, e coerente com expressões como “Muralha Digital” e “Cercamento eletrônico da cidade”, que têm batizado políticas de vigilância dos espaços públicos em diversas cidades.
A questão que deve ser discutida é: o espetáculo punitivista que prefeitos e governadores fazem com a adoção do reconhecimento facial tem como alvo corpos que sempre foram vigiados, segregados e criminalizados. Exemplos não faltam. Vamos rapidamente a dois.
Em 2021, Davi, um homem negro, foi vigiado por um trajeto de 22 quilômetros, por meio de câmeras instaladas em 15 estações de metrô, até ser abordado por policiais militares, em Salvador. Após recolherem os seus documentos de, os agentes policiais constataram que ele não era a pessoa que a tecnologia de reconhecimento facial havia apontado como procurada pela Justiça.
No ano passado, em Aracaju, outro homem negro foi importunado por policiais militares após ser identificado por câmeras de reconhecimento facial como suspeito de um crime. No intervalo da final do Campeonato Sergipano de Futebol, João Antônio foi algemado e conduzido por cinco policiais, para que todo o estádio Batistão testemunhasse. Pouco tempo depois, foi liberado. Mais uma vez, a tecnologia de reconhecimento facial “falhou”.
O fato de Davi e João Antônio serem negros não é coincidência. A banalização da tecnovigilância promovida por órgãos de segurança pública no Brasil tem os homens negros – sobretudo jovens – como alvos prioritários. É a mesma lógica que, em outros tempos, marcou a ferro corpos negros escravizados. É a mesma lógica que justifica o reconhecimento fotográfico nas delegacias, tecnologia não-digital que tem mandado homens negros inocentes para o cárcere. É a mesma lógica que, esta semana, fez Igor Melo de Carvalho, um homem negro, ser baleado enquanto voltava para casa. Em resumo, essa lógica é assim: se a tecnologia das câmeras ou a tecnologia do olhar externo identificarem um homem negro como criminoso, não importa, ele é criminoso.
Voltemos a São Paulo. Na primeira versão do edital que previa a aquisição de 20 mil câmeras para o programa Smart Sampa, o mesmo do “Prisômetro”, alguns trechos diziam que o monitoramento deveria apontar situações de “vadiagem e tempo de permanência”, que a pesquisa de pessoas procuradas deveria ser feita por “tipos de características como cor, face e outras” e que o “rastreio de uma pessoa suspeita” deveria ocorrer através do monitoramento de “todos os movimentos e atividades”. É preciso ainda dizer muito sobre quais corpos Ricardo Nunes quer vigiar, prender e ainda alardear para toda a cidade que prendeu?
Conforme monitoramento do O Panóptico, existem atualmente 351 projetos ativos de reconhecimento facial no Brasil, com mais de 81 milhões de pessoas potencialmente vigiadas. A definição do próprio O Panóptico indica que projetos ativos são “aqueles que estão em teste, em uso, em processo de implantação (…) ou que já possuam algum termo de referência. Isto significa que todas as fases de planejamento e preparação estão em andamento ou foram concluídas, e as tecnologias de reconhecimento facial estão sendo colocadas em prática enquanto uma política pública de segurança”.
Diferentes estudos têm demonstrado que essa banalização institucional do reconhecimento facial é sustentada em três características fundamentais: a opacidade no que diz respeito às lógicas de funcionamento, aos custos envolvidos e aos responsáveis pela operação dos sistemas; a inexistência de uma legislação específica regulamentando a sua utilização, o que permite a discricionariedade na adoção por parte de cada gestor; e a falta de estatísticas consolidadas tanto sobre a eficácia em relação ao enfrentamento à criminalidade quanto sobre a aceitação da população.
Em outras palavras, sem dados e sem transparência para justificar uma tecnologia injustificável, os prefeitos vestem a fantasia do punitivismo populista (como é esse negócio de inaugurar painel digital às vésperas do Carnaval) para vigiar os historicamente vigiados.
Para resistir a isso, recomendo o Manual da Pessoa Vigiada, elaborado pela Acess Now e traduzido para o português pela campanha “Tire Meu Rosto da Sua Mira”. Há um conjunto de dicas sobre como se defender e denunciar as violações cometidas a partir do uso de tecnologias como o reconhecimento facial.