No acervo que deu origem à Pinacoteca de São Paulo, Almeida Júnior (1850–1899), nascido em Itu, no interior do Estado, e formado no Rio e em Paris, tinha lugar cativo.
Acabam, portanto, por contar muito da história da instituição os quadros Caipira Picando Fumo (1893) e Amolação Interrompida (1894), presentes na inauguração do museu, 120 anos atrás, e postos em um novo contexto na exposição Caipiras: das Derrubadas à Saudade, em cartaz até abril de 2025.
Almeida Júnior, por seu olhar alinhado ao imaginário das elites da época, mas também por seu talento como pintor, é, provavelmente, o grande nome da mostra. Mas o que faz a mostra grande vai muito além dele.
O curador Yuri Quevedo, imbuído da missão de ter, na Pinacoteca, todas as raças representadas “para que o público se reconheça”, insere a nova exposição em um necessário movimento de análise histórica dos acervos museológicos brasileiros.
“A elite paulistana escolheu um tipo específico de mestiço para ser retratado em quadros e levado para dentro dos museus. Em textos da época, os caipiras são definidos como uma mistura de indígenas, que conhecem a terra, com o industrialismo paulista”, explica ele.
E se Quevedo conseguiu descobrir tantos caipiras na Pinacoteca – a exposição reúne 70 obras, a maioria da própria instituição – é porque, ao olhar para o acervo com atenção às lacunas, como a da representação dos negros, ele foi sendo defrontado com outras ausências.
“No banco de dados, aparecem uns poucos caipiras. Mas, indo à reserva técnica para ver as imagens, fui encontrando obras como o Cabeça de Negro ou o retrato de um tropeiro negro. Os negros são caipiras também”, descreve. “Mas tivemos um apagamento total desse nome, dessas figuras.”
O percurso expositivo permite que os visitantes insiram o caipira num todo social mais complexo, que inclui os Bandeirantes – vistos, até o fim do século XIX, como heróis, mas posteriormente retratados como bandidos, ou seres humilhados – e a destruição da terra.
Mas, se há a violência, existe também a beleza de imagens clássicas desse universo, como os famosos quadros Saudade (1889), que traz a figura de uma mulher numa casa de pau a pique e uma fotografia na mão, e O Violeiro (1899), ambos de Almeida Júnior.
“Uma obra de arte carrega seu tempo, mas, a cada vez que uma pessoa está na frente dela e se emociona, ela ganha outra interpretação”, diz Quevedo. “Se esses caipiras eram monumentos para ser dizimados, hoje eles são imagem de uma resistência.” •
Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital, em 11 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os mestiços que a elite queria ver’