Os Mecanismos da Desigualdade: Tributação Regressiva e Juros Elevados

por Luiz Henrique Lima Faria

A desigualdade econômica no Brasil não é apenas um fenômeno estrutural, mas o resultado de escolhas políticas e econômicas que consolidam a concentração de riqueza no topo da pirâmide social e perpetuam a exploração dos trabalhadores. No centro desse modelo excludente, dois mecanismos operam em conjunto para transferir recursos das camadas populares para os detentores do grande capital: a tributação regressiva e a manutenção de uma das mais altas taxas de juros do mundo. Esses instrumentos não apenas inviabilizam a ascensão social da população de baixa renda, como também comprometem o desenvolvimento econômico do país ao desestimular a produção e aprofundar o endividamento das famílias.

A regressividade do sistema tributário brasileiro é um dos traços mais perversos da economia nacional. Enquanto economias mais equilibradas baseiam sua arrecadação na taxação progressiva da renda e do patrimônio, no Brasil a maior parte dos tributos incide sobre o consumo. Essa escolha faz com que os trabalhadores e os mais pobres destinem uma parcela desproporcionalmente maior de sua renda ao pagamento de impostos, enquanto os mais ricos, cujos gastos com consumo são proporcionalmente menores em relação ao patrimônio acumulado, veem sua carga tributária diluída. Trata-se de um mecanismo que amplia desigualdades e impede qualquer tentativa de justiça fiscal.

Os impostos indiretos são a principal expressão dessa regressividade. Tributos como ICMS, IPI e PIS/Cofins são incorporados aos preços de bens e serviços, fazendo com que um trabalhador de baixa renda pague, proporcionalmente, o mesmo imposto sobre um produto essencial que um bilionário. Isso significa que a carga fiscal recai mais pesadamente sobre quem compromete quase toda a sua renda com bens de primeira necessidade, enquanto aqueles que concentram sua riqueza em aplicações financeiras e propriedades pagam menos proporcionalmente. O efeito desse modelo é uma tributação que, longe de ser neutra, reforça o abismo econômico entre as classes sociais brasileiras.

Embora a reforma tributária recentemente sancionada tenha sido apresentada como um avanço para a modernização do sistema fiscal brasileiro, suas mudanças são tímidas e insuficientes no enfrentamento da regressividade tributária. A unificação de tributos sobre o consumo no Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual pode trazer algum grau de simplificação e transparência, mas não altera substancialmente a lógica regressiva da tributação. O principal problema permanece intocado: a arrecadação ainda continuará fortemente dependente de impostos sobre bens e serviços, enquanto a tributação sobre renda e patrimônio segue sendo relativamente baixa e repleta de brechas que beneficiam os mais ricos.

Não por acaso, temas cruciais como a taxação de grandes fortunas, heranças e dividendos, que poderiam reequilibrar o sistema, foram tratados de maneira superficial, avançando muito pouco na reforma. Assim, apesar de representar uma reorganização da estrutura tributária, a reforma não alcançou seu papel distributivo e manteve a estrutura fiscal como um dos principais fatores de perpetuação da desigualdade econômica no país.

Somando-se à injustiça tributária, a política monetária conduzida pelo Banco Central do Brasil impõe uma segunda barreira ao progresso dos trabalhadores: a manutenção de uma das taxas de juros mais altas do mundo. Embora frequentemente apresentada como instrumento de controle inflacionário, a elevação da taxa Selic funciona, na prática, como um sofisticado mecanismo de transferência de renda dos setores produtivos e das famílias para os rentistas. Juros elevados encarecem o crédito, desestimulam investimentos e sufocam o crescimento econômico, beneficiando quase exclusivamente aqueles que enriquecem, de forma crescente, por meio da renda passiva gerada pelos títulos da dívida pública.

A engrenagem que sustenta esse modelo excludente atende pelo nome de rentismo, conceito-chave para compreender as dinâmicas da economia brasileira contemporânea. Trata-se de um esquema no qual a acumulação de riqueza se dá, majoritariamente, pela apropriação de rendas provenientes de ativos financeiros, imóveis e instrumentos especulativos, e não pela produção efetiva de bens ou pela geração de valor real. Nesse arranjo, os rentistas, isto é, aqueles cujos rendimentos derivam dos ganhos financeiros do capital, expandem seu patrimônio sem qualquer participação direta no setor produtivo. Apropriam-se, assim, de parte significativa da riqueza gerada pela economia real e do erário público, seja por meio dos juros da dívida estatal, seja pela intermediação financeira, sem contribuírem para a geração de emprego, inovação ou desenvolvimento. Essa dinâmica inibe a criação de oportunidades, esvazia a capacidade produtiva do país e restringe de forma estrutural as possibilidades de um crescimento econômico sustentável e inclusivo.

O economista brasileiro Luiz Gonzaga Belluzzo, em sua obra Financeirização: O Brasil e o Mundo, demonstra como o crescimento do setor financeiro sobre a economia real cria um sistema no qual o dinheiro gera mais dinheiro sem passar pelo processo produtivo. Em outras palavras, os fluxos financeiros passam a ser priorizados em detrimento da atividade industrial e comercial, de modo que os ganhos não decorrem do trabalho ou da inovação, mas da especulação e do acúmulo de capital improdutivo.

Belluzzo explica que esse modelo favorece a concentração de renda, aprofunda desigualdades e aprisiona a economia brasileira em um ciclo de baixa produtividade, no qual o crédito caro e a elevada carga tributária sobre o consumo penalizam a população, enquanto os rentistas lucram sem contribuir para o desenvolvimento do país.

Essa análise se alinha com os apontamentos do economista francês Thomas Piketty, que, em sua obra O Capital no Século XXI, demonstra como, ao longo da história, sociedades que permitem que a taxa de retorno do capital, ou seja, os rendimentos obtidos por meio de investimentos financeiros, heranças e propriedades, supere sistematicamente a taxa de crescimento econômico acabam consolidando desigualdades sociais extremas.

Piketty argumenta que, quando os lucros do capital crescem mais rapidamente do que a economia real, aqueles que já possuem grandes fortunas conseguem multiplicar seu patrimônio sem necessidade de trabalho produtivo, enquanto a maior parte da população, que depende dos salários, vê suas condições de vida se deteriorarem. Esse fenômeno gera um ciclo vicioso no qual a riqueza se concentra nas mãos de poucos, perpetuando uma elite financeira que se beneficia da especulação e da renda passiva, ao passo que os trabalhadores enfrentam dificuldades crescentes para acumular patrimônio e melhorar sua qualidade de vida.

No Brasil, a conjugação de juros altos e um sistema tributário regressivo, que impõe a maior parte da carga fiscal sobre o consumo e alivia a taxação sobre grandes fortunas e rendimentos do capital, fortalece ainda mais essa dinâmica perversa. A elite financeira acumula patrimônio sem necessidade de trabalho ou inovação, alimentando um sistema que extrai riqueza da base da pirâmide social e a transfere para o topo, enquanto os trabalhadores, submetidos a um mercado de crédito oneroso e a um sistema fiscal injusto, são cada vez mais explorados e impedidos de ascender economicamente.

O efeito mais visível da taxa de juros elevada é o endividamento massivo das famílias brasileiras. Sem acesso a crédito barato, os trabalhadores são forçados a recorrer a modalidades financeiras com juros abusivos, como cartões de crédito e empréstimos bancários, para custear desde o consumo básico até a aquisição de bens duráveis. Esse endividamento reduz o poder de compra e perpetua um ciclo de empobrecimento, no qual grande parte da renda é drenada pelo sistema financeiro, enquanto a economia real se mantém estagnada.

Os impactos sobre o setor produtivo são igualmente severos. Empresas que dependem de financiamento para expandir suas operações enfrentam custos proibitivos de crédito, o que desestimula novos investimentos e compromete a geração de empregos. Com a retração do consumo e a estagnação da produção, o país entra em um ciclo de baixo crescimento, enquanto os investidores financeiros, que não precisam arriscar seu capital no setor produtivo, acumulam lucros vultosos sem necessidade de inovação ou trabalho. Esse modelo agrava a concentração de riqueza e impõe barreiras intransponíveis ao desenvolvimento econômico sustentável.

O Banco Central independente, frequentemente apresentado como garantia de imparcialidade técnica, desempenha um papel central na perpetuação desse modelo. A separação formal entre o governo e a autoridade monetária, na prática, significa a submissão da política econômica aos interesses do mercado financeiro. Os sucessivos aumentos da taxa Selic, muitas vezes desproporcionais às reais necessidades do combate à inflação, indicam um alinhamento claro com os interesses dos credores da dívida pública, em detrimento do bem-estar da maioria da população.

Outro ponto que escancara a natureza política desse modelo é a resistência ao debate sobre a tributação progressiva. Enquanto a taxação de grandes heranças e dividendos enfrenta forte oposição de setores conservadores do parlamento e de entidades representativas do empresariado, projetos voltados à redução da carga tributária sobre o consumo ou à ampliação da isenção do Imposto de Renda para a população de baixa e média renda avançam lentamente. Esse cenário revela uma contradição fundamental: embora se reconheça que o sistema tributário brasileiro seja injusto, as forças políticas que controlam a agenda econômica não demonstram real interesse em alterar essa estrutura.

Sob esse contexto, o Estado brasileiro, em vez de atuar como agente de redistribuição e desenvolvimento econômico, torna-se refém da lógica do rentismo, privilegiando medidas que protegem os detentores de capital enquanto sobrecarregam os trabalhadores. A ausência de uma política tributária progressiva e a manutenção de uma política monetária contracionista demonstram que o país optou por um modelo econômico que penaliza o setor produtivo e os consumidores em benefício de uma minoria que vive da renda do capital.

Para reverter esse quadro, seria fundamental um redesenho estrutural das bases econômicas nacionais, orientado pela justiça fiscal e pelo fortalecimento da capacidade produtiva interna. A adoção de um sistema tributário genuinamente progressivo, com a efetiva taxação de grandes fortunas, lucros e dividendos, bem como a reformulação da tributação sobre heranças, não apenas corrigiria distorções históricas, mas também permitiria uma redistribuição de recursos mais equitativa, estimulando a circulação da riqueza e reduzindo a concentração excessiva de renda. Paralelamente, uma política monetária que priorize o fomento à produção e ao consumo interno, em detrimento da lógica rentista que atualmente prevalece, criaria as condições necessárias para um crescimento econômico mais sólido e inclusivo.

Sob esses entendimentos, enquanto a tributação regressiva e os juros elevados continuarem sendo os pilares da política econômica nacional, os brasileiros descapitalizados seguirão sustentando, com cada vez mais esforço e trabalho, um sistema que os aprisiona em um ciclo de exploração. Um “futuro cancelado” que se manifesta na precarização do trabalho, no endividamento crônico e na ausência de perspectivas concretas de melhoria de vida, uma vez que o Brasil permanecerá um país no qual a produção e o emprego são sufocados pelo peso do sustento do capital improdutivo.

Portanto, torna-se cada vez mais evidente que a desigualdade, longe de ser um efeito colateral indesejado, é o resultado de um projeto deliberado, cuidadosamente estruturado para preservar os privilégios do topo. O modelo econômico vigente não apenas concentra a riqueza nas mãos de poucos, como converte o trabalho da maioria em combustível de um ciclo perverso de expropriação e frustração. Nesse contexto, a mobilidade social, que deveria ser uma possibilidade concreta, transforma-se em rara exceção estatística, útil apenas para sustentar o mito da meritocracia num cenário de bloqueios estruturais.

Enfrentar esse quadro exige mais do que indignação: requer reformas profundas, como a taxação efetiva das grandes fortunas, das heranças e dos lucros oriundos da especulação financeira, a revisão do modelo de juros e a reconstrução do pacto fiscal em favor da maioria. Não se trata de utopia, mas de uma escolha política sensata e inclusiva, capaz de decidir se o Brasil continuará servindo aos interesses de poucos ou se finalmente optará por um caminho que coloque o trabalho, a produção e a justiça social no centro da vida econômica.

Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 25/03/2025