
Os Krenak e a resistência diante de séculos de apagamento, por Dora Nassif
Resistir: não ceder, não sucumbir; persistir diante de uma força contrária (Houaiss, 2009).
Se escutam as histórias dos povos indígenas e dos massacres que sofreram desde a colonização. Extermínios, deslocamentos, prisões, trabalhos forçados. Uma história marcada por violências e apagamentos sociais, culturais e políticos. No entanto, o objetivo desta reflexão é trazer outra perspectiva: a da resistência. Uma história que, apesar de tantas tentativas de extermínio, mostra a perseverança de quem já viveu o seu Fim do Mundo dezenas de vezes e segue persistindo, mantendo princípios, cultura e força, mesmo quando o próprio Estado se voltou contra sua existência.
O tema central desta reflexão é o povo Krenak, também conhecidos historicamente como Borun, autodenominação que antecede o nome “Krenak” e remete a uma identidade mais ampla, que abarcava diferentes subgrupos. Em determinados momentos, foram classificados oficialmente como “inimigos da humanidade”. O objetivo aqui não é apenas recordar os momentos em que suas terras foram tomadas e suas famílias violentadas, mas, sobretudo, destacar como resistiram, e ainda resistem, às múltiplas tentativas de apagamento.
A relação dos Borun com o rio Watu (Rio Doce), Minas Gerais, mostra a centralidade da terra e da água na sua identidade. O Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendajú (1981) registra a presença dos Krenak nessa região, mas esse território foi sistematicamente reduzido desde o período colonial. A Carta Régia de 1808 autorizava a chamada “guerra justa” contra os chamados “Botocudos”, denominação pejorativa usada pelos colonizadores para reduzir diferentes povos Borun, entre eles os Krenak, a uma categoria única e depreciativa. No século XX, projetos como a construção da Estrada de Ferro Vitória-Minas avançaram sobre o território, deslocando aldeias e fragmentando comunidades.
Mesmo diante dessas violências, os Krenak resistiram. Eram guerreiros engenhosos e inteligentes, capazes de adaptar-se a cada nova forma de repressão. Desenvolveram estratégias de dispersão: fragmentavam-se em pequenos grupos, assumindo nomes de seus líderes ou ligados a acidentes geográficos. Aos olhos dos colonizadores, pareciam dezenas de povos diferentes. Na prática, era uma forma de sobrevivência: confundir o inimigo e garantir que sempre restasse um núcleo capaz de reconstituir a coletividade Borun. Como observa Geralda Chaves Soares (1992), “ser Borun é uma saga longa, sofrida, e da qual aprendemos que é possível resistir às várias formas de dominação e exploração impostas às minorias étnicas nesse país pluriétnico que não se aceita como tal”.
Apesar disso, o discurso oficial insistia em apagá-los. Foram declarados “inimigos da humanidade” no século XIX e, mais tarde, já durante a ditadura militar, chegaram a ser considerados oficialmente extintos. Em 1970, Sérgio H. Médici, filho do presidente Médici, chegou a afirmar publicamente que os Krenak já não existiam. Mas a realidade era outra: estavam vivos, organizados e persistindo. Resistir foi também desafiar o apagamento simbólico, existir contra a expectativa da extinção.
A ditadura militar intensificou esse autoritarismo. O SPI, já marcado por escândalos de corrupção e violações revelados pelo Relatório Figueiredo (1967), foi substituído pela Funai, mas a lógica tutelar permaneceu. Sob a bandeira da “integração nacional”, povos indígenas foram removidos de seus territórios para abrir espaço a grandes obras e frentes econômicas. Nesse contexto, o episódio mais brutal foi a criação do Reformatório Agrícola Indígena Krenak, em Resplendor (MG), que funcionava como um verdadeiro campo de concentração. Ali, indígenas de várias etnias eram encarcerados, submetidos a trabalhos forçados e castigos. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) reconheceu o Reformatório como uma das mais graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas durante o regime.
Mesmo diante de tanta repressão, a resistência persistiu. Após a extinção do Reformatório, nos anos 1980, os Krenak foram deslocados novamente para a Fazenda Guarani, em Carmésia (MG). Relatos oficiais falavam em remoção “pacífica”, mas a realidade foi de fome e precariedade. Diante disso, famílias inteiras decidiram retornar a pé ao vale do Rio Doce, enfrentando a escassez, mas movidas pelo desejo de reencontrar o Watu. Como escreveu Soares: “No peito, porém, tomando conta de todo ser, a vontade de voltar e pescar no velho Watu, de pisar de novo o chão dos antepassados!” (Soares, 1992, pp. 147–148).
A redemocratização tampouco trouxe reparação imediata. Só em 2014 a CNV reconheceu oficialmente os povos indígenas como vítimas da ditadura, quase três décadas depois do fim do regime. Até então, as mortes, remoções e prisões não eram sequer lembradas como violência de Estado, impedindo qualquer tipo de tentativa de reparação. Pouco depois, em 2015, o rompimento da barragem da Samarco em Mariana levou lama tóxica ao rio Watu. Para empresas e autoridades, tratou-se de uma tragédia ambiental. Para os Krenak, foi a morte de um parente. Como disse Ailton Krenak, “essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô” (Krenak, 2019, p. 23).
O rio como avô, a terra como parente, a natureza como família: essa cosmovisão mostra que resistir não é apenas sobreviver, mas afirmar outra forma de estar no mundo. Resistir foi reorganizar-se diante da colonização, foi desafiar decretos que os declaravam extintos, foi caminhar de volta ao rio após remoções forçadas, foi manter viva a memória de que a terra e a água são ancestrais.
Resistir é existir, e existir, para os Krenak, é também insistir em adiar o fim do mundo.
Referências
Comissão Nacional da Verdade. (2014). Relatório da Comissão Nacional da Verdade: Violações de direitos humanos dos povos indígenas. Brasília: CNV.
Figueiredo, J. C. de. (1967). Relatório Figueiredo. Brasília: Ministério do Interior.
Houaiss, A. (2009). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.
Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.
Nimuendajú, C. (1981). Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes. Rio de Janeiro: IBGE.
Soares, G. C. (1992). Os Borun do Watu: História e resistência Krenak. Belo Horizonte: UFMG.