Os Institutos Federais sob o regime da austeridade: naturalização da precariedade
por Bruno Resck e José Costa Júnior
I
Diz a metáfora que, se colocarmos um sapo em uma panela de água fervente, ele saltará imediatamente para fora. Mas, se o colocarmos em água fria e aumentarmos gradualmente a temperatura, ele se adaptará até morrer fervido, sem perceber o perigo. Essa fábula, embora biologicamente imprecisa, serve como poderosa alegoria para fenômenos sociais e políticos em que a degradação institucional se instala aos poucos, mascarada por rotinas, discursos e adaptações sucessivas.
É essa lógica que parece reger, hoje, o cotidiano dos Institutos Federais de Ciência e Tecnologia (IFs). Não se trata de um colapso súbito ou um ataque frontal à sua existência. O que se vive é um processo progressivo de sucateamento institucional, camuflado sob discursos de eficiência, adaptabilidade e inovação. Fazer mais com menos. A cada corte, uma readequação; a cada perda, uma nova justificativa técnica; a cada retrocesso, uma promessa de modernização. E assim, gradativamente, a água vai esquentando — enquanto a comunidade se adapta, sobrevive e, muitas vezes, silencia. Quando o discurso da eficiência se impõe ao ponto de uma adaptação sem resistência, o que está em jogo é o que Dardot e Laval[1] chamam de “nova razão do mundo”, um regime que faz da adaptação à escassez uma virtude e da submissão ao corte um sinal de maturidade institucional.
A Lei nº 11.892, de 2008, criou os IFs e constituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Essa rede surge com a missão de integrar ensino, pesquisa e extensão, promovendo uma formação cidadã, crítica, inclusiva e socialmente referenciada. Ao contrário do modelo tecnicista que marcou parte da história da educação profissional brasileira, os IFs buscam articular o saber técnico ao saber científico, o trabalho ao direito, a escola ao território. A proposta envolve uma atuação multicampi e verticalizada ofertando cursos técnicos integrados ao ensino médio, graduação, pós-graduação, ações de extensão e pesquisa para o desenvolvimento local e regional.
A Rede Federal cresceu e hoje conta com cerca de 633 unidades espalhadas por todo território nacional e mais de 1,5 milhão de matrículas. Por alguns anos, a rede floresceu, ampliou o número de campi, democratizou o acesso por meio de políticas de cotas e investiu em infraestrutura e recursos humanos. Mas o ciclo de expansão encontrou seu limite. Desde 2015, com a adoção da chamada “nova matriz econômica” — implementada sob a condução de Joaquim Levy, então Ministro da Fazenda no governo Dilma Rousseff —, inicia-se um novo ciclo político-econômico, pautado pelo acelerado desmonte do Estado e pela revalorização dos paradigmas neoliberais. Esse processo se intensifica após o golpe de 2016, com a ascensão do programa “Ponte para o Futuro”, proposto por Michel Temer. A ponte para o futuro sustentava que o desenvolvimento econômico se daria através de políticas de austeridade fiscal dos gastos primários, privatizações, reformas estruturais – a costumeira ladainha do Consenso de Washington, FMI e Banco Mundial.
A aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 (Teto de Gastos), atingiu em cheio o projeto pedagógico dos IFs. Na prática, congelou os investimentos públicos por vinte anos. Sem orçamento para manutenção, pessoal ou expansão qualitativa, a rede passou a operar sob a lógica do gerenciamento da escassez. A cada ano, a fervura aumenta: contingenciamentos, redução de bolsas, corte de verbas de custeio, assistência estudantil e bloqueios orçamentários passaram a ser uma constante. Em 2023, o teto de gastos foi formalmente revogado, mas deu lugar ao chamado Novo Arcabouço Fiscal — uma estrutura que, apesar do nome, mantém a lógica de compressão dos gastos sociais em nome da “responsabilidade” e da confiança do mercado.
Percebemos que ao invés de reagir com enfrentamento político, a resposta institucional foi, em grande parte, marcada pela adequação silenciosa. A retórica da eficiência e da modernização que encobre o sucateamento dos IFs é parte do que David Harvey[2] identifica como o núcleo ideológico do neoliberalismo e um projeto político que se disfarça de racionalidade técnica, mas que visa, em última instância, a reorganização do Estado para servir aos interesses do capital privado. O discurso da eficiência entrou pelas frestas da crise.
II
Como já alertava Darcy Ribeiro, a crise da educação brasileira não é uma fatalidade: é um projeto deliberado. Desde 2015, o país mergulha num processo de desestruturação institucional e desmonte das capacidades do Estado, com implicações diretas na educação pública.
Quanto a isso, Elias Jabbour e Eduardo Costa Pinto[3] afirmam que o Brasil vive uma verdadeira “guerra de todos contra todos”, marcada pela decomposição do pacto social de 1988 e pela ascensão de um projeto político que transforma o Estado em plataforma de negócios, orientado por privatizações, concessões e parcerias público-privadas. Essa guerra é, antes de tudo, um processo de reconfiguração do capitalismo dependente com base na destruição de direitos sociais e na financeirização das políticas públicas. Nesse cenário, a precarização dos IFs não é um subproduto colateral, pontual, mas a expressão concreta da transformação do Estado.
Portanto, a restrição orçamentária para os serviços públicos não pode ser observada de forma isolada, de decreto em decreto. Como argumenta Alfredo Saad Filho[4], o neoliberalismo no Brasil opera por meio de uma razão fiscal que prioriza a austeridade como dogma, mesmo quando os dados demonstram estabilidade nos gastos públicos. O gasto primário no período de 2015 e 2025 oscilou entre 17,9% e 19,5% do PIB – com exceção do ano de 2020 com 25,6%[5]. Os dados mostram que os gastos mantiveram-se abaixo de 20% do PIB, contrariando a ideia de gastança desenfreada, difundido pela imprensa hegemônica e pela fração hegemônica do capital financeiro. Aliado ao cenário de restrição fiscal imposto pelo arcabouço fiscal, o crescimento dos valores destinados às emendas parlamentares coloca sérias restrições ao poder Executivo para a construção de projetos estratégicos, reforçando barganhas políticas de interesses paroquiais desconectados de um projeto nacional.
No âmbito dos IFs, de acordo com dados do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (CONIF), há 10 anos o orçamento dos IFs tem sofrido uma crônica regressão[6]. Em 2015, o orçamento de funcionamento era de R$ 3,6 bilhões, caindo em seu menor patamar no ano de 2021 com R$ 1,9 bilhão e, em 2024, atingiu R$ 2,5 bilhões. Nota-se, portanto, que após uma queda abrupta de 2015 para 2016, houve uma manutenção de um patamar em torno de R$ 2,3 bilhões para o orçamento destinado ao funcionamento dos IFs.
Não obstante, ainda de acordo com o CONIF, neste período, houve um aumento no número de unidades dos IFs, saltando de 528 em 2014 para 633 unidades em 2024, havendo a previsão de ampliação de 100 novas unidades até 2027. Em paralelo, aconteceu uma expansão do número de matrículas presenciais: em 2014, 512 mil matrículas, saltando para 867 mil em 2024 – um aumento de aproximadamente 69%. A manutenção de um patamar financeiro constante aliado ao aumento do número de matrículas, impõe, na prática, um corte relativo dos recursos financeiros, que impõe restrições para a oferta de um serviço público de qualidade. Este cenário traz profundas preocupações devido à similaridade com o processo enfrentado pelas redes estaduais de ensino nas últimas décadas.
Tem sido constante, nos últimos anos, a publicação de decretos que impõem cortes, bloqueios e contingenciamentos orçamentários. O mais recente deles — o Decreto nº 12.448, de 30 de abril de 2025 — estabelece um cronograma de execução que libera apenas 1/18 do orçamento discricionário, impondo sérias dificuldades para a continuidade de serviços básicos, como o fornecimento de energia elétrica, a manutenção da infraestrutura e a assistência estudantil.
Tais medidas, no entanto, não são exceção, nem se restringem a governos de uma única orientação política. Pelo contrário: foram sistematicamente adotadas por gestões de diferentes matizes ideológicas, evidenciando que não se trata de uma crise conjuntural, mas da consolidação de um novo padrão de gestão pública subordinado às imposições do neoliberalismo.
O que se impõe, na prática, é um teto informal e permanente de financiamento para os IFs, completamente alheio ao crescimento do número de matrículas e às demandas reais da instituição. A lógica do cobertor curto torna-se regra. Um processo lento, gradual e silencioso de sucateamento institucional.
É neste cenário que se intensifica a aposta dos IFs em cursos de Formação Inicial Continuada (FIC) e em programas Ensino à Distância (EAD) como forma de cumprir a missão institucional com custos reduzidos e manutenção de patamares mínimos de recursos para as unidades. Os cursos FIC, originalmente concebidos como instrumentos pontuais de inclusão e qualificação rápida, tornaram-se, em muitos campi, moeda de troca para garantir indicadores e visibilidade institucional. O EAD, por sua vez, embora traga promessas de inovação e democratização, tem sido utilizado, com frequência, como expediente para redução de custos com infraestrutura e pessoal, emulando as dinâmicas da educação privada.
A matriz CONIF é uma ferramenta que define como os recursos orçamentários da Rede Federal são distribuídos entre as instituições. Tal disposição leva em conta diferentes critérios, em especial, o número de matrículas convertendo-se, de forma acrítica, em instrumento de gestão, mesmo quando seu uso força decisões que contrariam os princípios pedagógicos da própria rede.
III
A pressão recai, sobretudo, sobre os corpos docentes. Com quadros incompletos, a carreira docente nos IFs enfrenta um processo de esgotamento. Professores assumem múltiplas disciplinas, em diferentes níveis de ensino, com carga horária dilatada e espaços inadequados. Em muitos campi, as salas de aula superlotadas dividem espaço com problemas estruturais básicos: ventilação precária, equipamentos quebrados e falta de laboratórios.
Além disso, as exigências administrativas e produtivistas crescem: relatórios, sistemas, reuniões, metas. A lógica verticalizada da atuação docente — com aulas no integrado, na graduação, na pós e na EAD — resulta em jornadas fragmentadas e dispersas, dificultando a pesquisa e a extensão. A precariedade não é mais um desvio: é a regra.
Os IFs estão sendo cozidos. Aos poucos. Mais do que resistir à precarização, é preciso reconectar os Institutos Federais a um projeto nacional de desenvolvimento. A origem da Rede Federal está vinculada a uma visão estratégica de educação como motor de transformação social, mas, também, como base para o fortalecimento da soberania tecnológica, da reindustrialização e da redução das desigualdades sociais e regionais. Esse papel estruturante, no entanto, não pode se realizar sob a espada da austeridade permanente. Não há política educacional emancipadora possível dentro dos limites estreitos do arcabouço fiscal neoliberal, que subordina o investimento público aos interesses do mercado financeiro. É necessário um outro horizonte: em que os IFs sejam uma ponte para um projeto de país, com recursos, autonomia e ousadia para formar não apenas mão de obra, mas sujeitos históricos capazes de reinventar o futuro.
Como nos alerta a metáfora inicial, há um ponto em que a água já não permite mais a fuga. O desafio que se impõe aos IFs é perceber a temperatura da panela. E, sobretudo, organizar o salto: antes que a fervura seja definitiva.
[1] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
[2] HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2005.
[3] JABOUR, Elias; PINTO, Eduardo Costa. A guerra de todos contra todos: capitalismo dependente e caos sistêmico no Brasil. Margem Esquerda, n. 40, p. 85-104, 2023.
[4] SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lécio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. São Paulo: Boitempo, 2018.
[5] BRASIL. Ministério do Planejamento e Orçamento. 2º Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias de 2025: coletiva de imprensa. Brasília: Ministério do Planejamento e Orçamento, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/planejamento/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/relatorios/relatorios-de-avaliacao-fiscal/2025/2o-rardp-2025-coletiva-de-imprensa.pdf. Acesso em: 26 maio 2025.
[6] SINDICATO DOS TRABALHADORES DO INSTITUTO FEDERAL DE ALAGOAS (SINTIETFAL). Orçamento da Rede Federal: IFs precisam de mais de R$ 2,9 bilhões para garantir seu pleno funcionamento em 2025. 10 jul. 2024. Disponível em: https://www.sintietfal.org.br/2024/07/orcamento-rede-federal/#:~:text=O%20Conselho%20Nacional%20das%20Institui%C3%A7%C3%B5es,garantir%20seu%20pleno%20funcionamento%202025. Acesso em: 26 maio 2025.
Bruno Resck – Professor de geografia no IFMG Campus Ponte Nova
José Costa Júnior – Professor de filosofia e ciências sociais no IFMG – Campus Ponte Nova.
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