Os guetos de Varsóvia e de Gaza

por Carlos Henrique Vianna

Há poucos dias atrás vi um documentário sobre o Gueto de Varsóvia, momento alto da resistência dos judeus ao terror nazista, confinados em um pequeno bairro da capital polonesa, entre 1940 e 1943. Impossível não fazer um paralelo com a realidade de Gaza, semelhante em muitos aspectos ao sofrimento imposto aos judeus polacos naquele bairro heróico.

Muitos leitores conhecerão a história épica do Gueto de Varsóvia. Para os que não conhecem os detalhes recomendo uma rápida pesquisa na wikipedia e apenas farei algumas observações sobre as similitudes e diferenças, no âmbito de contextos históricos e conflitos tão diferentes no tempo, espaço e protagonistas.

Permito-me só uma citação curta sobre os dias finais do Gueto.

“Esmagamento da revolta

A batalha final começou na noite da páscoa judaica, no domingo 19 de abril de 1943. 3 mil homens nazistas confrontaram a resistência de 1,5 mil moradores. Os partisans judaicos dispararam e atiraram granadas contra patrulhas alemãs a partir de becos, esgotos, janelas. Os nazis responderam detonando as casas bloco por bloco e cercando e matando todos os judeus que podiam capturar.

De acordo com relatos, verificava-se cheiro de cadáveres nas ruas, das bombas incendiárias e mulheres saltando dos andares superiores dos prédios com crianças nos braços. Em 8 de maio, os rebeldes foram cercados. Alguns deles, preferiram o suicídio do que ser levado a campos de extermínio. Às 20 horas e 15 minutos do dia 16 de maio, finalmente considerou-se o fim do levante com a destruição da sinagoga do gueto, então em ruínas.

Após as revoltas, o gueto tornou-se o local onde os prisioneiros e reféns polacos eram executados pelos alemães. Mais tarde, foi criado um campo de concentração na área do gueto. Chamava-se KL Warschau. Durante a revolta de Varsóvia, (da resistência polaca, em agosto de 1944), a unidade AK polaca “Zoska” conseguiu salvar 380 judeus do campo de concentração e a maioria deles juntou-se à AK.” (fonte Wikipedia)

As semelhanças e diferenças entre os Guetos de Varsóvia e de Gaza

Chamar o território ocupado de Gaza de “gueto” , após o 7/10/23, não é um erro conceitual. Embora os enquadramentos históricos sejam outros e diversos, as semelhanças saltam aos olhos. A população de Gaza está confinada territorialmente, daí muitos a tratarem como “uma prisão a céu aberto”. Guetos ou “Judiarias” existiram em muitas cidades europeias cristãs desde a Idade Média. Submetidas à vigilância, controle de entrada e saída e não raro objetos de “pogroms”, massacres mais ou menos extensos. A partir dos anos trinta do século XX, com a ascensão da Alemanha nazista, a evolução dos “pogroms” evoluiu para uma política de eliminação física dos judeus europeus, o Holocausto. Desde os anos 30/40, a eliminação física de palestinos, quer em conflitos abertos, quer em ações terroristas contra a população desarmada de aldeias ou contra dirigentes comunitários ou políticos, tornou-se uma prática constante e os números são da ordem de dezenas de milhares desde aquela época. Não só na antiga Palestina da dominação inglesa, como nos países vizinhos, até os dias atuais. Em paralelo e em continuidade, uma política persistente do Estado de Israel de limpeza étnica, onde possível.

Tal como no Gueto de Varsóvia, os palestinos de Gaza gozaram, até o 7/10/23, de alguma liberdade de administração do território, sempre com o controle discricionário do Estado de Israel para inúmeros assuntos, como distribuição de energia, água, entrada de ajuda humanitária e tantos outros. Após a invasão do território de Israel pelo Hamas e outros grupos, a situação mudou radicalmente. Gaza passou a viver ininterruptamente sob bombardeios aéreos, terrestres e até por mar. Aí reside uma grande diferença com o Gueto de Varsóvia. Durante mais de 2 anos, depois de confinados pelo muro, não houve bombardeios nem incursões mortíferas intra-muros. A fome e as doenças, tal como atualmente e desde há quase dois anos em Gaza, foram os instrumentos de morticínio lento dos judeus pela ação do governo nazista. O gueto recebeu um número de pessoas várias vezes a sua população inicial, quando era o bairro judeu de Varsóvia. Os alemães impediram a relação do bairro com o mundo exterior, que era feita clandestinamente. Depois do 7/10 as fronteiras de Gaza foram fechadas e permanecem sob controle das IDF, as forças armadas de Israel. No entanto, Gaza quase nunca deixou de ter ajuda externa da ONU, ONGs e países árabes, ainda que controlada e cada vez mais restringida. Ambos os casos conformam medidas e políticas de limpeza étnica. Para os judeus polacos, o cerco geográfico num pequeno bairro facilitou a implementação da “solução final”, quando esta foi sendo paulatinamente concretizada com a construção e posta em funcionamento dos campos de extermínio espalhados no leste europeu.  A “solução final” , no caso de Gaza, proposta por Israel e também pelo atual governo norte-americano, é a expulsão dos palestinos para o Egito, para viverem em tendas no deserto. Uma limpeza étnica radical. E a recolonização capitalista/hoteleira desta “potencial riviera”, sem “nativos”, da Faixa de Gaza. Mas também houve e continua havendo a eliminação física, tal como na Europa de Hitler, pois 50 a 60 mil mortos, a maioria mulheres e crianças/adolescentes, e um número bem maior de feridos, desde o 7/10, configura para muitas organizações internacionais um caso de genocídio, mais do que “simples crimes de guerra”. A morte violenta de uma parcela significativa da população palestina, da qual somente uma minoria será de combatentes anti-Israel, é uma política consciente de Estado, para governar pelo medo e terror, para forçar a emigração e fuga, e, não menos importante, para vingança pura e simples do que aconteceu em 7/10 na invasão do território de Israel. Tal acontece não só em Gaza, mas também na Cisjordânia, e até nos países viozinhos, a par de um continuado processo de ocupação de terras pelos cidadãos israelitas que vivem nos colonatos criados à força nos últimos anos.

Outra semelhança entre Gaza e Varsóvia é o confinamento de tanta gente num espaço mínimo. Atualmente o território útil de Gaza está limitado a aproximadamente 20% do original. Mais de 70% dos prédios está destruído, sem condições de habitabilidade. Além disto as forças armadas de Israel ocupam várias áreas e “empurram” os palestinos de um lado para o outro constantemente. A enorme densidade populacional em ambos os casos é comparável e significavam para o Gueto, assim como atualmente para os habitantes de Gaza uma verdadeira tortura quotidiana.

A máquina de propaganda de Israel caracteriza a atual situação de Gaza como de guerra entre duas partes. O que é falacioso, pois o que se vê é o lento massacre da população palestina, principalmente por bombardeio aéreo. Hospitais, escolas, paramédicos, espaços da ONU, nada escapa à violência praticamente unilateral de Israel. Uma guerra implica em duas forças militares. Os insurgentes palestinos estão reduzidos a esconderem-se, praticamente sem ações ofensivas. Ainda têm reféns e isto é quase a sua única moeda de negociação e mesmo sobrevivência.

Relembrando as atrocidades nazistas na Europa e em Varsóvia em particular, contra os judeus do Gueto, mas também contra os resistentes polacos na revolta de 1944, fica o nosso espanto:

Como pode ser que um povo tão perseguido e massacrado desde séculos, impõe hoje, através de seu Estado militarizado e étnico, quase teocrático, uma existência terrível aos palestinos, ambos povos semitas de origem comum nos tempos bíblicos? Sempre é bom afirmar, o ataque militar dos rebeldes anti-Israel em 7 de outubro usou também de violência contra civis, num nível inaceitável. Os confrontos com as IDF são o que , controntos entre forças militares. Mata-se e morre-se. As forças militares israelitas, inclusive as de defesa dos kibutzin,  revelaram uma surpreendente fraqueza ante um previsível ataque “surpresa”. Capturar reféns cumpre a função de possibilitar a troca de prisioneiros, mais de 10 mil palestinos nas prisões de Israel. Matar indiscriminadamente civis é um crime de guerra.  Mas a vingança de Israel tem se revelado interminável e se transformou numa oportunidade para a limpeza étnica em grande escala, a matança de civis, em grande escala, a expansão territorial em grande escala. E anuncia-se uma nova ofensiva letal na Faixa de Gaza.

Onde terminará isto?

P.S.) DECLARAÇÃO DE INTERESSE: Antes que algum leitor mais exaltado me condene pelo tom crítico deste artigo para com Israel, especialmente com seus dirigentes, devo dizer o seguinte: Tenho enorme admiração pelos judeus com tantos nomes admiráveis que marcaram a História da Humanidade. Serão um povo ou etnia ou pessoas que compartilham uma judaicidade, como queiram, amantes e cultivadores do Conhecimento, com pensadores, cientistas e intelectuais da craveira de Marx, Freud, Eistein, Spinoza, Walter Benjamin, Hannah Arendt e o contemporâneo Amos Oz. Uma lista interminável. Eu estudei, nos anos 60, no Colégio de Aplicação da UFRJ, onde talvez uns 30% dos alunos eram judeus. A excelência do ensino do CAp atraia a opção dos pais pelo melhor para seus filhos. Minha mulher, meus filhos e netas têm o nome Bibas, vindo do bisavô  emigrado do Marrocos para ser rabino em Belém do Pará em finais do séc. XIX. Infelizmente o nome de família Bibas ficou conhecido após o 7 de outubro, pois um bebê de meses, Kfir Bibas, foi sequestrado de um kibutz junto com seu irmão e sua mãe. Segundo comunicado das brigadas Al-Khassam, braço armado do Hamas, terão morrido semanas depois, no início de novembro, sob escombros, na sequência de um bombardeamento do IDF. Pode ser verdade, pode não ser. Uma tragédia. Os Bibas são de origem ibérica, emigrados para o Marrocos e o Egito , que os recebeu, após a expulsão de judeus e árabes da Espanha e Portugal. Há Bibas em diversos países e até, ainda, no Marrocos.

Minha mulher anda até hoje com o retrato do bisavô na carteira e nós dois, ateus confessos, acreditamos que ele velou por nós na nossa acidentada vida de fuga de 3 ditaduras sul-americanas. Já fui por razões profissionais dezenas de vezes a países árabes, por semanas ou meses cada viagem. Sempre conversei muito com quem pude. Confesso que tenho grande dificuldade de entender o fanatismo e o fatalismo do Islão. A doutrinação desde a mais tenra idade nas madrassas, a subordinação e repressão das mulheres, a pouca tolerância com o diferente. O sectarismo contra os “infiéis”.Mas isto já é outra conversa.

Carlos Henrique Vianna – Co-fundador e ex-presidente da Casa do Brasil de Lisboa

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Last Update: 12/05/2025