Os filósofos do Direito na era da IA
por Fábio de Oliveira Ribeiro
Quando é contratado para cuidar de um caso, o advogado procura descobrir qual é a melhor solução para o problema do seu cliente levando em conta a legislação, a jurisprudência e a doutrina acerca das questões envolvidas nele. Ele tem que se preocupar tanto com a solução do problema, quanto com a apresentação do mesmo porque disso pode depender o sucesso. E sim, a credibilidade do advogado sempre está em jogo quando ele atua num processo judicial.
Quando um caso é submetido a um jurista, ele pesquisará todas as opiniões diferentes existentes recentes e antigas sobre as questões jurídicas envolvidas nele. Ele confrontará estas opiniões, para descobrir seus pontos fortes, fracos e pontos cegos. Depois ele formulará uma ou mais hipóteses pessoais acerca do problema para tentar apresentar uma solução que pode ou não estar apoiada em alguma daquelas opiniões existentes que foram dissecadas.
Se o jurista for um autêntico erudito. O trabalho dele será ainda mais cuidadoso. Ele procurará saber como aquelas questões jurídicas do caso são tratadas em outros países civilizados. Depois ele comparará estas soluções legais, jurisprudenciais e doutrinárias com as que existem no país dele. No fim, ele tentará compreender como diferenças culturais, históricas e linguísticas afloram na formulação de conceitos jurídicos acerca de questões análogas. Ele mostrará pontos de contato e de distanciamento e formulará uma opinião bem fundamentada acerca de como a questão foi melhor tratada por esta ou por aquela civilização.
Um filósofo do direito não é nem um advogado, nem um jurista nem um erudito em questões jurídicas. Ele não está preocupado com casos particulares, nem com as diversas opiniões sobre uma mesma questão jurídica ou como essas questões são tratadas em países diferentes. Em menor ou maior grau essas são questões práticas e mundanas transitórias que despertam pouco interesse filosófico.
A tarefa do filósofo do Direito é diferente. Ele precisa realmente se distanciar dos advogados, juristas e eruditos para ver o que existe escondido sob a superfície mostrada na legislação, a jurisprudência e a doutrina de uma civilização ou de todas elas. É muito provável que ele investigará se existe alguma dissonância entre a realidade social histórica e os conceitos expressos nos textos de Lei, decisões e opiniões dos juristas colocando-se muito além do abismo que eventualmente existe entre o que aquela civilização “realmente é” e o que ela “parece ser” ou “mostra acerca de si mesma”.
O advogado deve ser preciso e levar em conta os interesses do cliente que ele defende. O jurista e o estudioso precisam ser capazes de encontrar e mostrar quais são diversas opiniões sobre seu objeto de estudo, de analisar as complexidades da questão jurídica específica sobre a qual se debruçaram e de formular conclusões que podem ou não conter suas próprias hipóteses fundamentadas sobre o tema. O filósofo do direito, por sua vez, pode dar asas à sua imaginação, mas deve tomar cuidado com o princípio da não contradição ao expor sua tese.
Sendo assim, as fontes de pesquisa utilizadas pelos advogados, juristas e estudiosos devem ser criteriosamente selecionadas e manuseadas com atenção e cuidado. Um advogado pode ser envergonhado no Tribunal se invocar uma Lei que foi revogada ou citar uma jurisprudência que deixou há muito tempo de expressar a opinião dominante sobre aquele assunto. Ele deve sempre se ater ao objeto em disputa e no enquadramento legal dele (e das questões processuais que eventualmente surjam durante o processo), porque aquilo que diz respeito a outras questões jurídicas não relacionadas ao mesmo geralmente são irrelevantes num caso particular.
O jurista e o estudioso têm um pouco mais de liberdade do que o advogado. Eles podem consultar uma variedade maior de fontes, porque quando eles estudam profundamente um assunto jurídico o resultado do trabalho deles não terá a mesma finalidade que o do advogado. Mas mesmo eles devem saber selecionar e manusear as fontes, porque é vergonhoso um estudioso mencionar como opinião corrente num país estrangeiro algo que lá já foi ultrapassado.
A liberdade do filósofo do direito será limitada apenas pela própria capacidade dele de imaginar quais fontes ele pode possivelmente utilizar. No caso dele, o uso de alegorias, metáforas, poesia, retórica e analogias com outras áreas do conhecimento humano para encontrar e explorar os paradoxos de uma civilização e da estrutura jurídica dela são admissíveis. O estilo da escrita do filósofo do direito pode ser muito diferente daquele que é utilizado por advogados, juristas e estudiosos do direito.

As complexidades da linguagem e sua evolução podem ou não se tornar especificamente importantes para o filósofo do Direito, mas ele dificilmente conseguirá deixar de pensar sobre essa questão. É nesse ponto que, considerando a situação atual, ele terá que refletir sobre os efeitos do uso de IAs geradoras de texto por advogados, juízes, juristas e eruditos.
Isso pode ser considerado uma verdadeira evolução ou um perigo para a civilização? Existe algum risco de os profissionais da área legal perderem suas capacidades cognitivas após usar IAs por algum tempo? É perigoso confundir “soluções correlacionais probabilisticamente adequadas de um caso” sugeridas por IAs com “decisões justas baseadas na legislação, jurisprudência e doutrina levando em conta as causas e efeitos que emergem das provas naquele particular caso” proferidas por seres humanos? Essas são apenas algumas questões que o filósofo do Direito pode fazer a si mesmo.
Mas se realmente for curioso, ele tentará aprender algo específico sobre as tecnologias que permitem aos engenheiros de TI criarem e treinarem IAs. E ele tentará descobrir se existe alguma diferença intrínseca entre a maneira como os seres humanos pensam sobre um problema a maneira de uma IA resolver dúvidas fazendo correlações com base nos parâmetros fornecidos pelo usuário levando em conta imensos bancos de dados para fornecer uma resposta plausível capaz de aumentar a certeza do usuário de que o resultado fornecido está correto.
Verdadeiro e falso parecem ser iguais a 0 e 1 da linguagem computacional. Mas entre verdadeiro e falso existe uma variedade de claros e escuros, de sombras e imagens, coisas e os reflexos espelhados delas que, sob determinados aspectos e condições, podem ser igualmente consideradas verdadeiras e/ou falsas por um filósofo do Direito. A linguagem computacional binária de 0 e 1 que empodera uma IA tem ou pode adquirir essa sintonia fina cognitiva?
IAs como ChatGPT, Gemini, Perplexity e DeepSeek já conseguem imitar suficientemente bem um advogado, um jurista e um erudito. Elas podem até mesmo imitar um filósofo do Direito. O usuário precisa ser realmente cuidadoso para descobrir pequenas inconsistências e grandes alucinações contidas nas respostas eloquentes que elas fornecem para as questões que lhes são submetidos. A esmagadora maioria dos usuários não é tão cuidadosa. Vem daí um problema existencial: a tendência natural humana de normalizar o uso de qualquer coisa que parece suficientemente boa.
Alucinações nunca são suficientemente boas para um advogado. No limite elas expõe o profissional a ser ridicularizado e punido num Tribunal por tentar enganar o juiz citando precedentes jurisprudenciais inventadas e opiniões de doutrinadores que não existem ou que existem e disseram algo um pouco ou muito diferente do que aquilo que a IA reproduziu como sendo deles. Punições processual podem e já tem sido decretadas nesses casos.
Pequenas inconsistências nos bancos de dados (ou dados envenenados plantados neles por hackers) podem fazer IAs formularem hipóteses inadequadas sobre questões jurídicas pesquisadas por juristas e eruditos. As reputações deles também podem ser destruídas, sem dúvida. Mas isso provavelmente demorará mais para acontecer e os danos que os livros e artigos científicos deles podem causar ao sistema de justiça é maior, porque eles serão estudados e citados por advogados e juízes. E eles também se transformarão em dados consultados por IAs que os advogados e juízes utilizam para trabalhar.
Dificilmente um filósofo cometerá o erro de se deixar enganar por uma IA como se fosse um advogado, jurista ou erudito. Mas é preciso lembrar que os filósofos muitas vezes cometeram erros grosseiros e se auto enganaram num passado recente e distante, quando essa tecnologia não existia. Nenhum ser humano saudável pode dizer que deixou de cometer algum erro pequenos ou grandes porque fazer isso é indissociável da condição humana e é uma coisa importante do que significa aprender a ser um ser humano. O estrago que os filósofos produziram á humanidade, entretanto, geralmente foi menor do que aquele causado por líderes políticos ambiciosos intolerantes e sem empatia, fanáticos religiosos, comandantes militares e cientistas que trabalham para fábricas de armamentos químicos, biológicos e nucleares.
As obras dos filósofos do direito demoram muito tempo para penetrar profundamente na cultura jurídica de qualquer país. Muitas vezes isso ocorre décadas depois que eles morreram. E muitos que estão mortos há séculos ou milhares de anos continuam a ser estudados e a influenciar as gerações mais novas de estudantes de Direito sem que isso realmente possa envenenar a atividade cotidiana presente do sistema de justiça com os fantasmas de um passado que deixou de existir.
Então, me parece que evidente que os filósofos do Direito nesse momento estão mais adequadamente equipados do que os advogados, juristas e estudiosos para usar, testar e abusar das IAs geradoras de texto. Eles podem errar para se autocorrigir e induzir as IAs que utilizam a cometer erros para corrigi-las. Podem até testar os limites cognitivo das máquinas envenenando-as com seus prompts maliciosos. Filósofos do direito são os únicos que podem brincar com IAs. Mas essa tecnologia não deve em hipótese alguma ser utilizada por advogados para apresentar casos num Tribunal ou decidir processos judiciais e para escrever livros de doutrina jurídica. Algo que não impede os advogados, juristas e estudiosos de brincar com a nova tecnologia como se eles mesmos fossem filósofos do Direito.
Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “