A Europa Ocidental do ­pós-Guerra estabeleceu pactos para a pacificação entre seus Estados nacionais lastreados na “relação transatlântica” com os Estados Unidos e na constituição da Organização para o Tratado do Atlântico Norte, em 1949. Na prática, isso significou transformar a Europa Ocidental num protetorado norte-americano, que se alargou para a Europa Oriental após o fim da Guerra Fria. O avanço da integração econômica europeia teve a garantia da segurança proporcionada pela Otan, liderada e em maior medida custeada pelos EUA.

Esse arranjo, contudo, passou a ser questionado a partir do primeiro mandato de Donald Trump. A percepção no até recentemente tratado como “Ocidente coletivo” é de mudança de seu peso relativo no mundo, processo que segue a avançar. Os países da União Europeia em especial, mas também os Estados Unidos, se enxergam declinantes na hierarquia global de poder, em relação especialmente à China.

Os formuladores de política externa do presidente democrata Joe Biden definiram sua estratégia internacional a partir do reforço das alianças e consequente articulação de suas políticas com vistas à disputa hegemônica com a China. Essa “articulação” muitas vezes é obtida com pressão, como no caso da solicitação dos EUA para que holandeses e japoneses não vendessem a empresas chinesas determinadas máquinas fundamentais para a fabricação de chips avançados. O bloco liderado pelos EUA e seguido por europeus, japoneses, sul-coreanos, australianos e neozelandeses buscou, portanto, contrapor-se ao “eixo autoritário” formado por Rússia e China.

Neste segundo mandato de Trump, o governo dos Estados Unidos exerce uma política externa que em muito difere não apenas dos democratas, mas da linha seguida pelo Partido Republicano desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A ideia do America First rompe com o internacionalismo construído e liderado pelos EUA nos últimos 80 anos. A “ordem global baseada em regras” tem sido substituída por um isolacionismo que busca renegociar a ordenação do mundo com as outras duas grandes potências, Rússia e China, a partir da premissa do estabelecimento de “zonas de influência” desses países. Alianças como aquelas com os europeus são vistas como um fardo pelo novo governo. O livre-comércio passa a ser encarado como prejudicial, a reindustrialização é um imperativo e até mesmo o respeito à integridade territorial das nações, peça fundamental da atual ordem internacional, não é mais garantido, o que é explicitado nas ameaças do mandatário norte-americano ao Panamá, à Groenlândia e ao Canadá.

A dependência estratégica e tecnológica dos EUA é enorme

Para os europeus, a guinada da invasão russa da Ucrânia representou uma ruptura com décadas de “complacência” regional com o investimento em segurança. A guerra iniciada em 24 de fevereiro de 2022 gerou um impulso armamentista na Europa, com expressivo aumento nos dispêndios com os orçamentos militares. A Polônia lidera, em porcentagem do PIB, o gasto bélico no continente e a Alemanha então decidiu por um gasto extraordinário de mais de 100 bilhões de euros para suas Forças Armadas. No caso alemão, significou o fim de mais de duas décadas de exercício de uma espécie de semi-hegemonia geoeconômica na União Europeia, com foco nas estratégias exportadoras regional e global. A disposição do governo Trump em negociar com a Rússia o fim do conflito, mostrando-se mais inclinado a apoiar as posições do presidente russo Vladimir Putin, alijando os europeus das negociações, e suas declarações demonstrando pouco compromisso com a Otan, além do já mencionado bullying com a Dinamarca na questão da soberania sobre a Groenlândia, tornaram evidente para os dirigentes da região que a condição de protetorado dos EUA não é mais garantida.

A Europa se vê premida pela necessidade de se rearmar. A Alemanha, que em breve será liderada pelo conservador Friedrich Merz, decidiu tirar os gastos de defesa dos limites orçamentários e aprovou um pacote de 500 bilhões de euros para investimentos na debilitada infraestrutura do país. A União Europeia, por meio do plano Rearm Europe, prevê mobilizar 800 bilhões de euros para gastos com defesa no bloco. As dúvidas em relação à proteção por parte dos EUA estão fazendo avançar as conversas acerca de ­defesa conjunta independente dos países da região. A defesa nuclear também tem sido discutida, com a possibilidade de a França e a Grã-Bretanha oferecerem essa “cobertura”. Polônia e Alemanha falam em ter as próprias armas nucleares.

Na prática, essa “defesa conjunta” independente dos EUA por parte da Europa, embora desejada, não é algo fácil de conseguir, pelos diferentes interesses de cada país. Os Estados Unidos sempre lideraram a Otan como um poder externo que submeteu os países da região. Não há neste momento no continente europeu país com essa capacidade de liderança. França e Alemanha disputam a primazia nessa questão. Há também o problema de que os europeus ainda vão depender dos EUA, estima-se, ao menos por mais uma década, até que tenham construído suas próprias capacidades, o que implica, além do investimento nas Forças Armadas, a constituição de um complexo industrial de ­defesa que atenda amplamente às necessidades, pois atualmente são muito dependentes dos EUA nesse tipo de suprimento.

A aposta do novo chanceler alemão, contudo, é que a necessidade de se defender da Rússia (real ou em boa medida imaginada, para justificar essa direção) unirá a Europa. E que a Alemanha, como o país mais rico e de indústria mais importante do continente, ainda que sem armas nucleares (o que pode mudar) e em processo de constituição de uma “economia de guerra”, pode liderar o continente nessa transformação de união econômica para uma união estratégica. •


*Pós-doutorando em Economia Política Internacional no Instituto de Economia da UFRJ. Colaborador do Observatório Internacional do Século XXI.

Publicado na edição n° 1358 de CartaCapital, em 23 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os europeus que se cuidem’

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Last Update: 16/04/2025