O presidente norte-americano Donald Trump acaba de escalar mais uma vez sua ofensiva sobre a soberania de países. Segundo informações do The New York Times, agora em agosto foi concebida uma diretriz secreta, autorizando o Pentágono a empregar força militar contra organizações de cartéis de drogas latinoamericanas. Tempos atrás, foram formalmente caracterizadas como organizações terroristas. A lógica trumpiana é que esses grupos representariam uma ameaça existencial aos EUA.
Recentemente, a presidente mexicana Cláudia Sheinbaum rejeitou qualquer possibilidade de intervenção unilateral dos EUA, considerando uma violação da soberania nacional. Além disso, há um histórico de intervenções militares contra cartéis de tráfico no México, com alta probabilidade de ineficácia no médio prazo. Em outros tempos, levou à fragmentação desses grupos criminosos e intensificação da violência.
Os presidentes Felipe Calderón (2006-2012) e Enrique Peña Nieto (2012-2018), já empregaram forças militares em larga escala contra os cartéis. O resultado dessas campanhas foi uma “escalada acentuada da violência” e a “fragmentação” das grandes estruturas criminosas em facções menores e mais difíceis de combater. Essa fragmentação muitas vezes leva a um aumento da violência à medida que esses grupos menores disputam o controle e novos líderes emergem para preencher o vácuo criado pela eliminação de figuras de alto escalão. Algo muito similar na guerra de drogas no Rio de Janeiro.
Os cartéis já mostraram uma capacidade enorme de realocação e reconfiguração de suas operações, fazendo com que qualquer ataque militar seja minimizado em prazos muito curtos. Há igualmente a experiência desastrosa no Afeganistão.
Além disso, haverá uma contaminação diplomática, minando qualquer possibilidade de efetivar a cooperação em áreas cruciais, como inteligência e controle de fronteiras.
O álibi por trás dessa medida é a crescente crise do fentanil nos EUA. Trata-se de uma droga sintética altamente potente, responsável por um aumento alarmante de mortes por overdose. Já há 100 mil ocorrências desde 2021. Os cartéis mexicanos são vistos como a maior fonte dessa droga.
Drogas e terrorismo
No seu primeiro discurso ao congresso, depois de eleito, Trump anunciou que “era hora da América fazer guerra aos cartéis, já preparando o terreno para uma resposta militar.
O primeiro passo foi a formalização da designação de oito grupos do crime organizado latinoamericano como Organizações Terroristas Estrangeiras (FTOs).
Entraram na lista seis cartéis mexicanos proeminentes: Sinaloa, Jalisco Nova Geração, Golfo, Nordeste, La Nueva Familia Michoacana e United; Também a venezuelana Tren de Aragua e a salvadorenha MS-13.7. A designação de FTOs acarreta implicações imediatas e significativas. Ela ativa sanções e penalidades, proibindo indivíduos ou empresas sujeitas à jurisdição dos EUA de fornecer apoio material, incluindo finanças, a essas organizações.
Na mesma época, Elon Musk, então assessor especial da presidência dos EUA, afirmou, no X, que os grupos seriam “elegíveis para ataques de drones”.
A fundamentação legal
A peça legislativa central pára essa intervenção é a Autorização para o Uso da Força Militar (AUMF) de 2001, concedendo ao presidente a autoridade para usar “toda força necessária e apropriada” contra os responsáveis pelo ataque de 11 de setembro de 2001. Depois disso, sucessivas administrações estenderam a aplicação da lei para além do Al-Qaeda e do Talibã, no Afeganistão, devido à omissão, no texto, dos locais de aplicação da lei.
Acabou atropelando a Resolução dos Poderes de Guerra, de 1973, que obrigava o presidente a notificar o Congresso dentro de 48 horas após o envio de forças armadas para ação militar, proibindo que essas forças permaneçam por mais de 60 dias, com um período adicional de mais 30 dias para retirada.
A definição dos cartéis como organização terrorista, permitiu o uso da AUMF em operações militares.
Grupo Designado | País de Origem | Observações Principais | Data da Designação (aproximada) |
Cartel de Sinaloa | México | Um dos maiores produtores de fentanil, com vasta presença global. | Fevereiro de 2025 |
Cartel Jalisco Nova Geração (CJNG) | México | Conhecido por sua extrema violência e expansão territorial. | Fevereiro de 2025 |
Cartel do Golfo | México | Grupo histórico com forte presença na fronteira EUA-México. | Fevereiro de 2025 |
Cartel do Nordeste | México | Facção dos Zetas, opera no nordeste do México. | Fevereiro de 2025 |
La Nueva Familia Michoacana | México | Atua principalmente no estado de Michoacán. | Fevereiro de 2025 |
Cartéis Unidos | México | Coalizão de grupos menores em Michoacán. | Fevereiro de 2025 |
Tren de Aragua | Venezuela | Gangue transnacional com operações na América Latina e EUA. | Fevereiro de 2025 |
Mara Salvatrucha (MS-13) | El Salvador | Gangue transnacional com forte presença na América Central e EUA. | Fevereiro de 2025 |
O Artigo 2 da Carta das Nações Unidas proíbe agressão, ameaças, a qualquer país. Trata-se da chamada norma peremptória. A ofensiva contra cartéis, em outros países, representa claramente uma violação dessa norma. Há a preocupação adicional com a segurança de civis, ou mesmo de suspeitos de atos criminosos que não representam uma ameaça iminente.
O cenário mais provável de ação envolve ataques de drones leves e esporádicos, concentrado em áreas remotas onde estão as sedes dos cartéis.
Mas há a possibilidade da abordagem de “choque e pavor”, semelhante às campanhas rápidas conduzidas pela primeira administração Trump contra a ISI. O objetivo seria sobrecarregar as forças dos cartéis e eliminar alvos de alto valor.
Esses alvos seriam:
- Laboratórios de fabricação de fentanil: A destruição dessas instalações é vista como crucial para interromper o fluxo da droga mais letal para os EUA.2
- Instalações de armazenamento controladas por cartéis: Locais onde drogas, precursores químicos ou armas são guardados seriam alvos para desorganizar as cadeias de suprimentos dos cartéis.2
- Áreas onde líderes de alto escalão dos cartéis estão ativos: A eliminação ou captura de figuras-chave é uma tática para desarticular a liderança e o comando e controle dos cartéis.2
- Sicários e comandantes de nível médio: Esses indivíduos são cruciais para a coordenação da logística e das operações de aplicação da lei dos cartéis, e sua neutralização poderia enfraquecer a capacidade operacional dos grupos.6
- Depósitos de armas: A destruição de arsenais de armas visaria reduzir o poder de fogo dos cartéis.6
Relações EUA-México
Se isso ocorrer, essas operações destruiriam as relações diplomáticas entre Estados Unidos e México. Especialmente a ruptura na cooperação em segurança e contra narcóticos, com a interrupção do compartilhamento de informações e cooperação na extradição de membros dos cartéis. No passado, após a prisão de um Ministro, o México limitou as operações do DEA em seu território.
Haveria, também, problemas com os desafios logísticos já enfrentados por empresas norte-americanas que atuam no México. Além de comprometer toda a agenda de aproximação com a América Latina.
De qualquer modo, seria apenas mais um capítulo na história das intervenções dos EUA na América Latina.
Tabela 2: Intervenções Militares Históricas dos EUA na América Latina (Casos Selecionados e Resultados)
País | Ano(s) | Evento/Intervenção | Resultado/Observações |
Cuba | 1898-1902 | Guerra Hispano-Americana; Ocupação dos EUA | Os EUA estabelecem influência duradoura, mas geram ressentimento. |
Cuba | 1906-09 | Derruba o Presidente eleito Palma; regime de ocupação | Intervenção para proteger interesses dos EUA, minando a soberania. |
República Dominicana | 1916-24 | Ocupação dos EUA | Impôs estabilidade, mas gerou resistência e nacionalismo. |
República Dominicana | 1965 | Forças Armadas dos EUA ocupam Santo Domingo | Intervenção para prevenir “segunda Cuba”, gerou críticas internacionais. |
Guatemala | 1954 | Força armada organizada pela CIA derruba o Presidente Arbenz | Restauração de regime pró-EUA, mas levou a décadas de conflito interno. |
Haiti | 1915-34 | Ocupação dos EUA | Impôs ordem, mas resultou em instabilidade política pós-retirada. |
México | 1914 | Veracruz ocupada; EUA permite que rebeldes comprem armas | Intervenção para proteger interesses, gerou tensões com o governo mexicano. |
México | 1913 | Embaixador dos EUA organiza golpe contra Madero | Apoio a ditador Porfirio Diaz, gerou instabilidade e ressentimento. |
Nicarágua | 1912-25 | Fuzileiros navais dos EUA invadem e ocupam o país | Impôs governos pró-EUA, mas alimentou movimentos de resistência. |
Panamá | 1903 | EUA envia navios de guerra para apoiar rebelião contra a Colômbia | Garantiu os direitos do Canal do Panamá, mas violou a soberania colombiana. |
Granada | 1983 | Forças Armadas dos EUA ocupam a ilha; derrubam o governo | Intervenção para proteger cidadãos dos EUA, mas condenada pela ONU |