É certo que entre aqueles que se unem por ideias para construir um mundo socialista sempre existiu rupturas e divisões. Aliás, na visão de Lenin, não é possível dissociar a  história do partido bolchevique da história das suas lutas fracionais. Portanto, começamos por afastar qualquer ilusão infantil de que grandes mudanças na luta de classes acontecem mantendo incólumes as organizações políticas. 

O problema que nos chama atenção é que várias organizações revolucionárias têm enfrentado divisões e fragmentações. A hipótese da qual partimos aqui é a de que há uma onda de rupturas e dispersões na esquerda revolucionária. Pelo menos nos últimos 10 anos, elas atingiram várias organizações em diferentes países. O mais grave, no entanto, é que não se trata de um realinhamento de projetos, pois muitas divisões foram apenas o primeiro ato de um processo ininterrupto de crises, que dispersaram muitos dos melhores militantes. 

 As organizações que estão “estáveis”, que acumularam vitórias eleitorais ou sindicais, não podem simplesmente acreditar ingenuamente de que se trata “da crise dos outros”. Em primeiro lugar, porque são poucas as organizações na condição de estabilidade e acúmulos de construção. Em segundo, porque a ocorrência de crises e rupturas é tão frequente que nos obriga a buscar uma reflexão mais profunda. É preciso levantar hipóteses e, no mínimo, ser consciente desse espírito que ronda os socialistas no século XXI. 

Entre as organizações que se reivindicam trotskistas é fato que esse processo atingiu possivelmente a maioria das principais e maiores correntes organizadas. O SWP inglês enfrentou uma explosão com fragmentação crescente a partir de 2013; no Brasil o PSTU se dividiu em 2016 (1); nos Estados Unidos a ISO decidiu se dissolver em 2019 (2); na França o NPA se encontra dividido em duas organizações com mesmo nome; o POI francês e o PO argentino também enfrentaram divisões importantes; o CWI se dividiu internacionalmente em três outras correntes. 

Evidentemente a história do trotskismo foi marcada por derrotas e pela marginalidade política. Entretanto, não nos parece que este processo seja uma exclusividade das correntes com esta referência teórico-política. No Brasil o PCB dividiu-se numa polêmica agressiva na internet em 2023, durante uma crise que envolveu diferenças políticas frente ao governo Lula, problemas de regime, conflitos geracionais e diferenças no método de interpretação do marxismo. A Consulta Popular também se dividiu em 2021 e uma parcela significativa de seus militantes deixaram a organização formando o Movimento Brasil Popular em março de 2022. Não nos parece que sejam casos isolados, muitas organizações importantes do movimento dos trabalhadores atravessaram ou ainda estão atravessando dilemas estratégicos e crises estruturais. 

Não pretendemos interpretar cada um desses processos, que evidentemente carregam inúmeras particularidades: são muitos fatores internacionais e nacionais presentes em cada um dos casos. Podemos resumir, para efeito de uma sistematização superficial, porém reveladora que existem pontos que se repetem, se não em todos os casos em muitos deles, como por exemplo: (1) grandes diferenças políticas frente a novos fenômenos da luta de classes; (2) graves crises do regime/funcionamento da organização, ou em outros termos divergências sobre como aplicar o centralismo democrático; (3) visões distintas sobre o papel e a relevância da atuação dos revolucionários nas pautas feministas, anti racistas, antilgbtfóbicas; (4) casos graves de opressão e poucos mecanismos de tratamento desse tema; (5) o personalismo e o papel dos dirigentes; e, por fim, (6) conflitos geracionais que cruzaram todos esses elementos.

As particularidades nacionais e as subjetividades são inúmeras, uma vez que os sujeitos especialmente dentro de pequenas organizações têm extremo impacto sobre as crises. Nosso intuito com os exemplos é apenas constatar que um processo tão amplo e agudo não acontece por coincidência em tantos países e organizações ao mesmo tempo. Para buscar explicações é preciso olhar também para fatores exógenos, como anda o mundo que nos cerca?

A crise da estratégia: revolucionários um tempo sem revoluções vitoriosas

Existe uma crise fortíssima da sociedade capitalista, até mesmo a intelectualidade burguesa fala em crise civilizatória. É lugar comum nas elaborações da esquerda socialista o reconhecimento de múltiplas crises (crise climática, crise econômica, crise dos regimes democráticos, crise política). É também correto rejeitar a visão atemporal e a histórica da direita liberal incorporando a ideia de crise civilizatória sem adjetivá-la corretamente, a crise não é da humanidade em geral, ou da civilização em geral, mas do capitalismo, causada pelo desenvolvimento do sistema tal como ele é, e não por erros de percurso. 

A perspectiva de um progresso gradual e crescente das condições de vida da classe trabalhadora está muito longe do horizonte. Uma breve análise da produção cultural dos nossos tempos mostra que as distopias do fim do mundo estão mais presentes no imaginário coletivo do que a idealização de um futuro melhor. 

Portanto, o problema não é a prosperidade do capitalismo. A questão é a ausência completa de uma perspectiva socialista, ou mesmo anticapitalista. Quase cinco décadas nos separam da última revolução socialista vitoriosa. Apenas os septuagenários viveram o impulso de ler nos grandes jornais burgueses que o exército mais poderoso do mundo deixava Saigon, derrotado e expulso. O Vietnã foi a última expropriação da burguesia e já se passaram 49 anos. 

A ausência de vitórias parciais significativas também é parte do balanço das revoluções do tempo presente. A Primavera Árabe, com toda sua força e radicalidade, não conquistou sequer a derrubada dos regimes ditatoriais que dominam o Norte da África e o Oriente Médio. Do ponto de vista do resultado prático, também foi extremamente mais limitada do que o ascenso dos anos 80 na América Latina por exemplo. 

Todos esses fatores pesam sobre os ombros das velhas e novas gerações e, sem dúvida, angustiam aqueles que buscam entender a quadra histórica em que nos coube viver. É um labirinto de questionamentos estratégicos. A geração do pós-guerra deparou-se com revoluções fora do modelo russo e buscou explicações e atualizações teóricas para entendê-las. Os revolucionários dividiram-se em alguns dilemas teórico-programáticos, típicos daquele período: a classe social determinante é o proletariado ou o campesinato? Qual papel deve ter um partido político na tomada do poder? A tática da guerra de guerrilhas ou do cerco às cidades têm validade universal? Respostas diferentes a essas questões chave geraram grandes rupturas e realinhamentos naquele tempo. 

A geração atual encontra-se diante de outras perguntas: é possível uma revolução socialista vitoriosa? Vale a pena dedicar a vida pela construção de um mundo socialista? Qual a validade da construção de organizações políticas revolucionárias? Não seria possível militar apenas por meio de um blog ou canal nas redes sociais, de um mandato parlamentar, de um sindicato? 

As direções das correntes políticas podem ter maior ou menor consciência desse dilema, mas não há nenhum militante que não tenha passado por conversas com outros importantes ativistas no sentido de evitar a pior das derrotas: o abandono da militância organizada. 

É nesse terreno que as lutas fracionais acontecem, por isso é tão importante compreender esta vulnerabilidade para que as diferenças não acabem por produzir rupturas injustificáveis, sem clareza política e sem projetos definidos. A fragilidade e a vulnerabilidade são, portanto, fatores exógenos, produto das derrotas da classe trabalhadora na luta de classes. Diante disso: quais reflexões devemos fazer do ponto de vista interno para nos construir em meio a tempestade? Ou, no mínimo, quais fatores endógenos contribuem ainda mais para tornar organizações políticas ainda mais vulneráveis diante da onda de rupturas. 

A marginalidade política impõe sérias deformidades

Somos pequenos, todos nós. Este texto não fala desde o lugar de uma organização que se vê como acabada e conectada com as massas em detrimento de outras correntes. Evidentemente existem seitas, inclusive seitas grandes. O problema do senso de proporção, do reconhecimento do nosso pequeno tamanho é relevante para pensar o projeto, a política e a tática da organização. 

Os partidos da Terceira Internacional contavam seus militantes na escala dos milhares, não os simpatizantes que foram milhões, mas os militantes orgânicos dos partidos comunistas. Lenin, referindo-se aos comunistas na Inglaterra, considerava que eles não tinham condições (políticas) de serem uma organização própria porque eram apenas alguns milhares. Pierre Broué, analisando o Partido Bolchevique, refere-se à organização com menos de 10 mil militantes como algo “que já não existe” (3). O partido de Lênin teve 147 mil militantes no ascenso de 1905 e meio milhão de membros depois da tomada do poder. Não era o único. Os PC ‘s tiveram durante décadas dezenas de milhares de militantes em várias partes do mundo. A Internacional, que reconheceu a necessidade da unidade com os socialistas em 1922, era uma organização extremamente poderosa e numerosa no Congresso da Frente Única. 

Será que julgamos o desenvolvimento das nossas próprias organizações levando em conta essas referências? As décadas de marginalidade nos impuseram outra escala. É comum considerarmos como “grandes” organizações políticas de 1.000 militantes, ou ainda considerarmos como partidos (no sentido leninista do termo) grupos locais de algumas dezenas. 

Evidentemente que só podemos nos comparar com nosso próprio tempo, sob pena de um anacronismo sem fundamento, mas retomar a escala do que eram as organizações que nos inspiram, que foram vitoriosas na luta pelo poder, ajuda a perceber melhor os nossos desafios. 

Outra característica típica da marginalidade é a crença de que somos organizações cercadas de inimigos. A relação com o projeto socialista se dá então pela autoproclamação de que somos os únicos revolucionários. Portanto, a melhor linha política seria lutar, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade, contra a extrema direita, o reformismo tradicional, as alternativas de esquerda e, especialmente, a pequena corrente ao lado que, não raras vezes, tem um passado organizativo comum. Apenas a diferenciação constante daria garantias de uma linha verdadeiramente revolucionária. É o fim da política, das mediações, da vocação para fazer conexões reais com a classe trabalhadora. É a fórmula da crise. 

O regime político deve ser saudável e baseado em acordos sólidos 

Diferenças são inevitáveis. Ao mesmo tempo, nem sempre uma diferença política significa uma diferença de estratégia. Não existe apenas uma tática válida em cada cenário. Um regime saudável deve começar por permitir discussões políticas permeadas pela análise da realidade concreta, pelo cálculo científico de “prós e contras”, vantagens e desvantagens políticas, e não por acusações de que a proposta em debate está fora dos limites do marxismo revolucionário. 

É muito importante construir acordos de programa e também acordos sólidos sobre como resolver as diferenças, o regime é parte do programa. A liberdade no debate, o debate de ideias franco e honesto, a tomada de decisão coletiva, a aplicação conjunta da linha votada e o balanço para reafirmar ou rever posições anteriores: a tecnologia do modelo leninista nunca foi tão necessária, porém também nunca foi tão questionada. Em quase todas as crises, são frequentes os casos de maiorias que suspendem o debate porque não suportam derrotas e de minorias que se recusam a aplicar a linha aprovada, ambas comprometendo a chance do teste da verdade (da nossa verdade), a medição do impacto (positivo ou negativo) de determinada linha na luta de classes. Por uma ou por outra via, põe-se fim à possibilidade de síntese.

Problemas de regime existem e uma organização só pode ter futuro se construída em base a acordos sólidos de como agir diante de diferenças, porque lutas políticas são inevitáveis, ainda mais num mundo complexo, permeado por inúmeros desafios políticos. No entanto, o projeto político de uma organização precisa de mais do que um regime saudável para sobreviver, é imperioso ter uma conexão sólida com os processos mais dinâmicos da realidade, acertar politicamente, repudiar a marginalidade, conectar-se com a classe trabalhadora. Os erros políticos custam mais caro num tempo de fragmentação. 

É urgente conectar-se com a classe trabalhadora

Organizações pequenas não têm força para disputar os rumos das conjunturas, não podem sozinhas mudar o ânimo das massas ou convencê-las da necessidade de lutar. Porém, muitas vezes, em busca de fazer o que não pode ser feito, renuncia-se às tarefas que realmente estão ao nosso alcance e que podem fazer do amanhã um dia diferente do de hoje. 

Queremos mudar o mundo, derrotar a extrema direita, construir um futuro socialista. Para isso, não basta falar, é preciso também ser escutado. Em vários momentos cruciais da história, existiram pequenas organizações que estavam corretas, porém não tinham força para fazer avançar suas ideias. Esse é o grande dilema das organizações revolucionárias. Não vence sempre quem tem razão. 

Portanto, é preciso olhar para as nossas pequenas organizações e refletir sobre o nosso projeto. Qual é o lugar que nos permite ser úteis? Como podemos fazer a diferença, nos conectar com o mais dinâmico da nossa classe. Quais são os caminhos para romper um ciclo de crise e fragmentações? Uma organização tem a tarefa de ficar à espreita, ouvir, entender, se aproximar, aproveitar das janelas de oportunidade que a luta de classes coloca. Pequenas organizações podem ter papeis importantes, até desproporcionais ao seu real tamanho, se compreenderem o tempo em que vivem. É por esse caminho que se abre a oportunidade de crescer, ganhar audiência política e ter mais responsabilidade dirigente. 

É frequente nas polêmicas políticas que deram base às crises contemporâneas dois erros de amplo impacto. Um é o de subestimar a importância das pautas feministas, antirracistas e antilbgtfóbicas; ou ainda associar essas lutas a outras classes sociais que não o proletariado, como se fossem em si pequeno-burguesas ou diretamente burguesas. Existem excelentes interpretações marxistas sendo produzidas nos tempos atuais sobre essas questões, teorias, como a Teoria da Reprodução Social, que estão repensando a classe e recentralizando as opressões. Esses diálogos ajudariam muito as organizações a se conectarem com as novas gerações e, especialmente, entender a relevância das questões tidas por uma parte significativa da esquerda como secundárias, mas que estão no eixo da atuação da extrema direita em  nível mundial. 

Outro tema que aparece com frequência nas crises são os dilemas políticos colocados pela recuperação do reformismo tradicional diante do ascenso da extrema direita. Existem também situações piores, em que os candidatos que rivalizam com os neofacistas são diretamente burgueses de direita tradicional. A recusa em misturar-se com outros setores, seja na Frente Única, ou até mesmo no chamado ao voto para derrotar a extrema direita, conduz inevitavelmente ao isolamento e facilita o caminho para o reformismo tradicional destruir politicamente as alternativas de esquerda. 

Parece existir uma substituição da classe trabalhadora realmente existente – que é diversa, contraditória, cheia de atrasos, pensamentos reformistas – por uma classe imaginada, idealizada. Esse setor, transformado de militantes marxistas em fieis, parou de olhar para a Terra e seus dilemas reais, ignora o tamanho das derrotas como se assim fosse possível que elas deixassem de existir. O trabalhador real (com suas diversidades, seus defeitos e qualidades, seus preconceitos e atrasos, seus medos e crenças) é substituído pela idealização de um ascenso sempre iminente contido por direções traidoras. É urgente reconhecer o tamanho e a gravidade do refluxo, o que não diminui em nada a importância da militância organizada. 

Nunca foi tão importante construir organizações revolucionárias

Os ideólogos do sistema querem nos fazer acreditar que mudanças globais não são possíveis; que todas as direções são em si burocráticas; que cada pessoa deve centrar sua vida em seus interesses pessoais; que os instrumentos políticos coletivos não importam. E não é necessário mesmo um partido revolucionário para conquistar mandatos parlamentares, nem para dirigir sindicatos, nem para existir movimentos progressivos ou escrever sobre ideias intrigantes.

Uma organização revolucionária pode fazer tudo isso, mas seu sentido de existência é a estratégia de uma mudança socialista do mundo. Há muitas formas de abandono da hipótese comunista, a mais direta e explícita é a adesão à velha teoria de mudança lenta e gradual do sistema. Porém, não nos serve apenas sobreviver. Quando a construção de organizações revolucionárias com peso de massas é substituída pela autoperpetuação de seitas auto proclamatórias, a hipótese comunista também é abandonada, só que com uma dose extra de autoengano. 

Construir organizações revolucionárias em tempos de refluxo da luta de classes é apostar no futuro para que a esquerda não seja sempre refém do mito de Sísifo, aquele que na mitologia grega foi condenado a empurrar para sempre uma pedra num morro íngreme. Do contrário, todas as vezes que a conjuntura nos der oportunidades seremos pequenos demais para fazer a diferença. 

Nossas correntes políticas podem se construir nas adversidades, desde que tenhamos a compreensão de que a ferramenta partido é um tipo especial de instrumento que se constrói errando, testando, acertando, refletindo, sem nunca deixar de golpear.

Notas

1 https://www.pstu.org.br/declaracao-da-direcao-nacional-do-pstu/ e https://esquerdaonline.com.br/2016/07/10/e-preciso-arrancar-alegria-ao-futuro/

2 https://socialistworker.org/2019/04/02/the-isos-vote-to-dissolve-and-what-comes-next

3 En 1910 la organización ya no existe. En el conjunto del país los efectivos pasan de casi 100.000 a menos de 10.000.” Broué. El partido bolchevique. Versão Espanhol , p 59.

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Last Update: 21/05/2025