Os dez anos de Made in China 2025 e a Quarta Revolução Industrial

por Márcio Sampaio de Castro

O controverso Henry Kissinger narra em uma passagem de seu seminal livro Sobre a China a história de um lavrador chinês que resolveu remover com uma pá a montanha que atrapalhava sua visão do nascer do sol a partir da janela de sua casa. Ao ser questionado por um conhecido a respeito da impossibilidade de concluir a tarefa em seu tempo de vida, o lavrador respondeu: “Eu não conseguirei ver o nascer do sol de minha janela, mas meu neto conseguirá”. Kissinger se vale dessa historieta para iluminar um aspecto fundamental da civilização confucionista (englobados aí chineses, japoneses e coreanos), a combinação entre planejamento, paciência e resiliência.

Em 2015, diante dos desafios representados pelas pressões econômicas e militares que começavam a se abater sobre a China, como a plataforma da administração Barack Obama conhecida como “Pivô para a Ásia”, com o aumento da presença militar norte-americana na região do Indo-Pacífico, os efeitos da crise financeira do subprime e a nova realidade produtiva representada pela Quarta Revolução Industrial, o governo chinês lançaria o projeto denominado Made in China 2025. A proposta de uma nova etapa de desenvolvimento e modernização que demandaria mais uma vez do país a mobilização do tripé mencionado linhas acima.

O projeto previa que dez anos após sua implantação a nação veria reduzidas as disparidades em relação aos países avançados em áreas sensíveis das novas tecnologias como equipamentos eletrônicos e microchips, tecnologia da informação, máquinas agrícolas, energias renováveis e veículos elétricos, equipamentos ferroviários, tecnologia aeroespacial, robótica, engenharia naval e dispositivos médicos avançados. Para 2035, o objetivo seria o de alcançar o status de potência industrial tecnológica e para 2049 a condição de liderança na Quarta Revolução Industrial.

Circunstâncias internas e externas fizeram com que os ponteiros do relógio saltassem mais rápido do que o planejado. Premidos pela crescente hostilidade ocidental, notadamente pelas sanções e proibições de acesso a semicondutores avançados e máquinas de última geração, perseguição às suas empresas, colocando em cheque o propalado discurso da livre concorrência, e, por fim, o bloqueio de acesso e intimidação de seus estudantes em universidades estadunidenses, os chineses se viram diante da necessidade de acelerar seus esforços em direção a seus objetivos.

Há dez anos, 70% dos automóveis circulando pelas ruas e estradas chinesas eram produzidos por empresas estrangeiras. Para a norte-americana Tesla, aquele mercado figurava como um dos mais promissores no mundo, chegando a ocupar o segundo lugar nas vendas da companhia. Aviões da Airbus e da Boeing dominavam os céus nas rotas locais e os bens manufaturados exportados para todo o mundo eram produzidos valendo-se majoritariamente de máquinas e insumos eletrônicos trazidos do exterior. Na avaliação do diretor do Instituto de Estudos Financeiros da Universidade de Renmin, Wang Wen, na comunidade tecnológica chinesa havia naquele período a ilusão de que com a riqueza gerada pelas exportações o país poderia adquirir os equipamentos e aparatos necessários para o seu desenvolvimento tecnológico. O aumento paulatino da pressão ocidental, sobretudo por parte dos EUA, trouxe um choque de realidade para os chineses.

Em março de 2018, durante seu primeiro mandato, Donald Trump produziu um memorando denominado Declaração sobre medidas para proteger a tecnologia e a propriedade intelectual nacionais das práticas comerciais discriminatórias e onerosas da China onde se pode ler: “Os Estados Unidos imporão uma tarifa de 25 por cento sobre 50 mil milhões de dólares em bens importados da China que contenham tecnologia industrialmente significativa, incluindo aqueles relacionados com o programa ‘Made in China 2025″. O documento marcava uma das primeiras rodadas do que viria a ser a guerra tarifária perpetrada ao longo dos últimos anos de forma contínua pelos EUA contra o país asiático.

Primeiros passos, o trio BAT

É claro que o ingresso dos chineses na realidade do mundo digital e de suas derivações não se deu a partir de 2015. O trio BAT, acrônimo para as empresas Baidu, Alibaba e Tencent, já estava plenamente operacional no início dos anos 2000, conquistando espaços como plataformas de internet. O Baidu consolidou-se inicialmente como mecanismo de buscas. O Alibaba avançou na área de comércio eletrônico e a Tencent com jogos eletrônicos. Atualmente, são companhias com valores de mercado bilionários.

Mas o que merece escrutínio aqui é como elas se desenvolveram e chegaram onde estão.

Quando se analisa o crescimento econômico da República Popular da China nas últimas cinco décadas, poucos levam em conta o papel dos chineses da diáspora. Desde muito tempo, há uma imensa comunidade espalhada por locais como Singapura, Malásia, Indonésia, Tailândia e costa oeste dos EUA, isso sem contar os nacionais localizados em Hong Kong e Taiwan. Essa comunidade foi o primeiro grupo a responder ao convite do governo para investimentos no país, a partir das Quatro Modernizações iniciadas por Deng Xiaoping em 1978. Além disso, muitos jovens pertencentes a essas comunidades de expatriados iniciaram um processo de retorno à mainland (中國大陸), termo que se refere ao território original, trazendo recursos financeiros ou formação e experiência técnica para contribuir ao esforço de desenvolvimento nacional.

Outro fator decisivo ao longo do tempo tem sido o ambiente de crédito abundante e barato para a criação de novas empresas. Esses créditos muitas vezes ficam a cargo dos governos provinciais, cobrados e incentivados por Pequim a apresentar resultados concretos em relação aos projetos de médio e longo prazo definidos pela cúpula do PCC (Partido Comunista da China). Recentemente tem se espalhado a doutrina denominada “uma visita no máximo”. Os empreendedores procuram as sedes administrativas dos governos locais, apresentam suas demandas para o desenvolvimento de seus negócios e obtêm o compromisso da burocracia estatal de que suas questões serão atendidas em tempo recorde. Desnecessário dizer que a contrapartida para toda essa eficiência e dinamismo é a obediência irrestrita a agenda do Estado.

Por fim, um elemento igualmente importante é a qualificação de mão de obra aliada à pesquisa. Vejamos na sequência alguns dados.

De acordo com o ranking da conceituada Revista Nature, ao final de 2024, das dez instituições de pesquisa no mundo com o maior volume de publicações sobre o estado da arte da ciência, oito eram chinesas, com a liderança da Academia Chinesa de Ciências, apresentando mais do que o dobro de publicações da segunda colocada, a Universidade de Harvard.

Em 2007, o governo dos EUA destinou uma verba de U$450 bilhões de dólares para pesquisa e desenvolvimento, enquanto a China investiu U$180 bilhões. Em 2023, esses valores foram U$823 bilhões e U$780 bilhões respectivamente, em valores constantes, de acordo com dados compilados pela publicação Global Times.

Na área de patentes, o país asiático também vem apresentando liderança consistente em tempos recentes. No caso de robôs humanóides, são 5688 registros nos últimos cinco anos, contra 1483 do segundo colocado, os EUA. No campo da tecnologia quântica, voltada sobretudo para aplicação em supercomputadores, são 35540 patentes, contra 34831, no mesmo período.

Os polos de desenvolvimento

A chamada Quarta Revolução Industrial, associada em boa parte do mundo à denominada IoT, o acrônimo em inglês para Internet das Coisas, é conhecida na China como Internet Plus Initiative (互联网+). Trata-se de uma estratégia voltada a integrar tecnologias digitais com indústrias tradicionais, combinando internet móvel, computação em nuvem e big data. Neste campo, o governo chinês escolheu a cidade de Shenzhen como um laboratório vivo para a aplicação desses conceitos.

Na cidade, localizada no delta do Rio das Pérolas, a política pública regional incentivou a constituição de uma frota de veículos composta em quase 100% por veículos elétricos. O conceito de cidade inteligente, aplicado aos mais diversos equipamentos públicos, como transporte, comunicações e arquitetura, dentre outros elementos, lhe rendeu o apelido de “cidade futurista”. Mas Shenzhen é também um polo importantíssimo de empresas tecnológicas, que reúne, além de milhares de startups, as sedes das mundialmente conhecidas e reconhecidas por seu gigantismo Tencent, Huawei, Foxconn, ZTE e BYD. Além disso, ao lado dessas grandes companhias, a universidade local é o epicentro de inovação e a cidade atrai anualmente ondas de jovens de todo o país e muitos outros do exterior interessados em fazer parte desse ecossistema.

Outra cidade que chama a atenção por seu papel no projeto tecnológico chinês é Hangzhou. Berço da conhecida Alibaba, que criou um sistema digital de cooperação em nuvem para apoiar as pequenas startups locais, Hangzhou tem chamado atenção mais recentemente por abrigar os chamados “Seis Pequenos Dragões”: Game Science, Unitree Robotics, Deep Robotics, Manycore, BrainCo e DeepSeek. Esta última sacudiu o mundo recentemente ao apresentar um programa de inteligência artificial generativa com padrões de eficiência equiparáveis às gigantes norte-americanas do setor por um custo dez vezes menor, poder computacional também menor e com código aberto. Para desespero das grandes concorrentes estadunidenses que sempre justificarem seus vultosos valores de mercado escorando-se no custo de produção e manutenção de sistemas de IA.

O ambiente de inovação em Hangzhou é similar ao de Shenzhen, assim como em Wuhan e Zhongguancun. Esta última, localizada a noroeste de Pequim, é particularmente beneficiada pela oferta de talentos por estar próxima a três das mais importantes universidades chinesas: a Universidade de Pequim, a Universidade Tsinghua e a Academia Chinesa de Ciências.

Removendo a montanha

Em fevereiro deste ano, o presidente Xi Jinping reuniu-se com os representantes das principais Big Techs chinesas. Em seu discurso, o líder enfatizou as noções de “prosperidade comum” e “modernização chinesa”, lembrou aos empresários que o primeiro compromisso deles é com a nação. Nenhuma referência a países estrangeiros, sanções ou competição. Mas todos ali sabiam que o desenvolvimento chinês causa fora de suas fronteiras um misto de espanto, temor, inveja e até admiração.

A resposta chinesa para esse ambiente hostil tem se dado em duas frentes, a interna e a externa.

O país foi alijado pela administração Joe Biden do acesso às máquinas de raios ultravioletas produzidas pela holandesa ASML e responsáveis pela fabricação dos semicondutores mais sofisticados existentes no mercado global. Atualmente, os semicondutores mais avançados do mundo são os de 3nm e 5nm, capazes de garantir uma velocidade excepcional na transmissão de dados no interior das placas de circuitos integrados, e são fabricados apenas pela sul-coreana Samsung e pela taiwanesa TSMC.

A solução interna para reduzir a distância tecnológica e alcançar um grau de autonomia minimamente satisfatório no setor foi a concentração de esforços significativos. O primeiro deles foi a destinação de U$4 bilhões de dólares para o desenvolvimento da indústria de semicondutores. Para a surpresa de muitos, seus engenheiros conseguiram chegar, no início de 2022, ao modelo de uma máquina com tecnologia diferente e inferior ao equipamento da ASML, mas ainda assim capaz de produzir semicondutores de 7nm.

O coração dessa história passa pela companhia SMIC (Semiconductor Manufactory International Corporation). Fundada em 2000, por Zhang Rujing, a história dessa empresa traz pistas muito importantes para o entendimento do avanço tecnológico chinês. Rujing nasceu na China continental em 1948, sua família fugiu para Taiwan um ano depois com a ascensão do PCC ao poder. Ali, ele cresceu e graduou-se em engenharia mecânica. Fez mestrado e doutorado nos EUA, tendo como primeira empregadora a Texas Instruments. No final dos anos 1990 retornou para a mainland, mas acabou migrando novamente para Taiwan onde trabalhou por um breve período em uma subsidiária da TSMC. De volta ao continente, levou consigo um grupo de engenheiros e técnicos taiwaneses e foi acusado pelo governo da ilha de roubar segredos industriais. Com participação acionária do governo chinês, a SMIC é atualmente uma das maiores exportadoras de chips do mundo e responsável pelo salto tecnológico do país neste campo.

Já a resposta externa envolve o emprego das empresas Huawei e ZTE. Como o país detém a liderança no desenvolvimento e emprego das tecnologias de transmissão de dados 5G e 6G, oferecendo a melhor relação custo-benefício, Pequim planeja incorporar essas tecnologias aos pacotes oferecidos nos contratos celebrados no âmbito da BRI (acrônimo em inglês para Iniciativa da Nova Rota da Seda).

Em 2024, a BYD se tornou a maior produtora e comercializadora de veículos elétricos do mundo. O programa espacial do país encontra-se em estágio bem avançado e há aqueles que apostem que os chineses desembarcarão na Lua muito antes dos estadunidenses. A data já está até marcada: 2030.

Há uma década, quando Xi Jinping lançou o Made in China 2025, muitos não deram a devida atenção. O desafio de remover a montanha com uma pá parece não intimidar os chineses. Planejamento, resiliência e capacidade de investimento em recursos humanos e financeiros têm sido a sua pedra de toque. Os países que não quiserem ficar para trás nesse mundo de inovação tecnológica e da quarta revolução industrial precisam começar a aprender e praticar algumas das lições do velho país asiático.

Márcio Sampaio de Castro é mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É professor nos cursos de Relações Internacionais e Propaganda e Marketing das Faculdades de Campinas (FACAMP), onde coordena o Grupo de Análise e Pesquisa sobre a China (GAP – China).

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Last Update: 28/07/2025