Andrea Mazzarino, uma das fundadoras do Projeto Costs of War da Brown University, convida para refletir sobre como as guerras modernas causaram mortes e sofrimentos não apenas por meio da violência direta, mas também por meio de doenças infecciosas, da fome e do colapso dos sistemas de saúde. Guerras intermináveis, que geram efeitos em cascata sobre a saúde pública e levam a tragédias silenciosas.
Enquanto anticapitalistas, o artigo nos leva a refletir que a guerra está no âmago do sistema capitalista e engendra diversas formas de guerra para destruir e poder renascer de suas próprias cinzas. A própria formação do capital aconteceu por meio das guerras, que são contínuas enquanto o capitalismo existir. Nesse ínterim, quem mais sofre é o povo, especialmente os mais vulneráveis e oprimidos. “O capital não é estrutura nem sistema, é máquina e máquina de guerra […]. O capital é um modo de produção na exata medida em que é um modo de destruição” (Éric Alliez e Maurizio Lazzarato, Guerras e capital).
A guerra mata de diferentes maneiras. Por esses dias, os estadunidenses foram bombardeados com imagens de Gaza e de outros lugares, com pessoas ou corpos mutilados sendo carregados em macas após serem retirados de escombros de casas e hospitais, por socorristas cujos corpos magros e rostos abatidos evidenciam que eles não estão em condições melhores do que aqueles que assistem. As redes sociais e os veículos jornalísticos nos transformam em testemunhas oculares de crianças esqueléticas, muito debilitadas para sequer chorar. Contudo, comparado com bombardeios aéreos que destroem e matam instantaneamente, há um desastre mais lento, mais difícil de ser capturado (especialmente em uma era de atenção fragmentada por plataformas como o TikTok), que consiste nas horas em que muitas pessoas em zonas de conflito sucumbem a doenças infecciosas de diversas naturezas.
Permita-me descrever algumas dessas maneiras:
No Iraque, em 2004, Ali, de três meses, tenta chorar, mas está muito fraco para produzir um barulho, pois seu corpo está debilitado pela diarreia. Entre 2003 e 2007, metade dos 18 mil médicos iraquianos deixaram o país devido à deterioração das condições de segurança (sendo que poucos têm a intenção de retornar). As instalações de saúde também foram bombardeadas e destruídas. Nesse contexto, cerca de dois terços das mortes de crianças menores de cinco anos, como Ali, foram atribuídas a infecções respiratórias e diarréias, agravadas pela desnutrição.
No Paquistão, em 2017, um dos poucos países que ainda não erradicou o vírus da poliomielite, o pai de um menino de cinco anos fica inconsolável ao saber que seu filho nunca mais andará sozinho. Entre as populações deslocadas na fronteira afegã-paquistanesa, onde viviam, preocupações com os ataques aéreos de contrainsurgência dos EUA e, posteriormente, das forças do governo paquistanês e da oposição, com as ameaças à segurança das equipes de vacinação em partes do país devastadas pelo conflito e com as suspeitas dos pais, como o pai do menino, de que os profissionais de saúde tinham enviados pelo governo dos EUA para esterilizar as crianças paquistanesas, tudo isso impedia [que as crianças recebessem as imunizações que necessitavam.
Em Burkina Faso, em 2019, Abdoulaye, de três anos, morreu após contrair malária em um abrigo para pessoas deslocadas internamente pela violência entre as forças do governo e as milícias islâmicas. Desnutrido e anêmico, sem acesso direto a uma clínica de saúde, ele sucumbe a uma doença tratável.
Em Fayetteville, na Carolina do Norte, em 2020, bem como em outras cidades militares ao redor dos EUA, as taxas de infecções sexualmente transmissíveis, como sífilis, herpes simples e HIV, figuram entre as mais elevadas no país. A presença de bases militares tende a aumentar a pobreza entre os civis, tornando as populações vizinhas dependentes dos serviços de baixa remuneração. Soldados estadunidenses estressados e traumatizados pela guerra tendem a adotar comportamentos sexuais de risco, ampliando a disseminação dessas doenças entre a população mais ampla.
Na Ucrânia, em 2023, um soldado em tratamento por severas queimaduras morreu de infecção generalizada, apesar de estar sendo administrado múltiplos antibióticos. Os médicos encontraram klebsiella, um patógeno resistente a diversas drogas, em seu corpo. Apesar dos esforços bem-sucedidos do governo ucraniano de conter a resistência antimicrobiana em sua população até a invasão russa de 2022, o aumento do número de vítimas e a escassez de suprimentos e profissionais impõe desafios aos trabalhadores da saúde, que agora tentam fazer todo o possível que podem para manter os soldados vivos. No longo prazo, as infecções resistentes a antibióticos rastreáveis a pacientes ucracianos já estão começando a aparecer em lugares tão distantes quanto o Japão.
Em maio de 2025, na Faixa de Gaza, Jenan, de quatro meses, faleceu de uma diarréia crônica após perder metade do peso corporal. Ele necessitava de uma fórmula láctea hipoalergênica, mas bombardeios e bloqueios tornaram esse produto escasso. Como aponta a antropóloga Sophia Stamatopoulou-Robbins, antes do início da guerra entre Israel e o Hamas em outubro de 2023, a média mensal de casos de diarréia em crianças era de cerca de 2 mil. Em abril do ano seguinte, no entanto, tais casos ultrapassaram o número de 100 mil. Da mesma forma, na década anterior à guerra, não existiram epidemias em larga escala em Gaza. Apenas nos primeiros sete meses desse conflito, no entanto, a superlotação em abrigos improvisados, déficits nutricionais, falta de produtos de higiene – somente um em cada três habitantes de Gaza possuíam sabão – e água contaminada provocaram surtos de sarampo, cólera, febre tifoide e poliomielite, agravados pela fome generalizada.
Em certo nível, não poderia ser mais simples. A guerra destrói muitas das inúmeras comodidades modernas que tornam a vida possível. Doenças e mortes evitáveis ocorrem até mesmo em contextos industrializados marcados pela desigualdade, desinformação, trauma psicológico ou apenas pelo caos do combate, que dificulta o planejamento de longo prazo. Em países de baixa e média renda, como Iêmen, Síria e Nigéria, as doenças infecciosas já figuravam entre as principais causas de morte até mesmo antes da eclosão dos conflitos significativos. Sua incidência, no entanto, se agravou drasticamente no tempo de guerra, especialmente entre civis que não possuem o mesmo acesso a médicos e hospitais como os grupos armados.
O corpo de uma única criança, definhando pela ausência do líquido básico que flui em nossas torneiras, captura melhor a maneira como as baixas de guerra se espalham pelo tempo e pelas populações. Para cada soldado que morre em combate, exponencialmente mais pessoas sucumbem à desnutrição, a doenças ou à violência relacionada ao trauma, mesmo após o fim dos combates. As infecções preveníveis desempenham papel central nesse cenário.
A guerra contra as crianças
As crianças são particularmente vulneráveis às doenças e mortes nos conflitos armados por conta de seus sistemas imunes imaturos, maiores necessidades nutricionais, tendência a sucumbir mais facilmente à desidratação e dependência das famílias que podem não estar ao redor para cuidar delas. Um estudo de mais de 15 mil eventos de conflitos armados em 35 países africanos constatou que as crianças com mais de 10 anos ou menos tinham muito mais probabilidade de morrer se morassem a menos de 100 quilômetros de uma zona de batalha do que em períodos anteriores em períodos de paz.
Tomando o Iêmen como um exemplo de como a guerra pode afetar as crianças pequenas e seus familiares ao longo do tempo. Desde que iniciou a guerra civil neste país em 2015, a cólera, uma doença transmitida pela água que os médicos sabem como prevenir desde 1954, tem devastado os membros mais vulneráveis da população daquele país, particularmente as crianças, devido à falta de saneamento adequado ou de acesso razoável à saúde. Em dezembro de 2017, mais de um milhão de pessoas haviam contraído a doença, aproximadamente metade delas eram crianças , e mais de 2.000 haviam falecido em decorrência da infecção. Compare isso com mais de 10 mil iemenitas que estima-se que morreram em combates diretos até aquele momento e se terá uma compreensão de quão significante a morte por enfermidades conta entre as vítimas dos conflitos armados.
Quase uma década depois, de fato, existem centenas de milhares de novos casos daquela doença no Iêmen por ano e centenas de mortes anuais , representando mais de um terço de todos os casos globais. Quando Rami descobriu que suas filhas, de 10 e 7 anos, estavam com cólera, conseguiu reunir o equivalente a cerca de 15 dólares para levá-las a uma clínica, onde receberam fluidos essenciais e informações para evitar novos casos. Muitas famílias, contudo, não dispõem de recursos para tal tratamento, sendo todas obrigadas a adiar o cuidado ou a enfrentar o impensável: a perda de um filho.
Considere o que aconteceria se alguém que você ama morresse por ter nascido no lugar errado, na hora errada, em meio à tempestade da guerra que destrói infraestruturas tão essenciais às nossas vidas, que normalmente sequer percebemos sua presença. Espero que seja uma realidade que nem você nem eu vivenciamos.
Guerra e deslocamento
Ainda assim, reflito sobre essas questões todos os dias, como aposto que fazem muitos de meus colegas vinculados ao Projeto Costs of War. Desde o lançamento do projeto, em 2011, as Professoras Catherine Lutz, Neta Crawford e eu nos reunimos com especialistas em conflitos armados para discutir como abordaremos a questão do impacto da guerra sobre a saúde. Repetidamente, nos lembraram de como é difícil falar sobre guerra e saúde sem entender como é para as famílias serem forçadas a deixar suas casas em busca de segurança.
Surpreendentemente, refugiados e pessoas deslocadas internamente (PDIs) são especialmente suscetíveis a doenças e enfermidades. Qualquer pessoa que tenha adoecido durante uma viagem sabe que as chances de conseguir cuidado são dificultadas pela falta de familiaridade com a comunidade em que se encontra. No caso dos cerca de 122 milhões de refugiados e ou pessoas deslocados por guerras atualmente, o estigma e o assédio são companheiros de viagem frequentes. Segundo uma meta-análise, mais de um quinto das mulheres refugiadas e PDIs experimentaram algum tipo de violência sexual em contextos de deslocamento. Um estudo com mais de 500 imigrantes e refugiados na Itália constatou que quase metade sofreu violência física, abuso sexual, assédio ou discriminação no trabalho.
As narrativas empregadas por políticos extremistas sobre migrantes – como as histórias de Donald Trump sobre haitianos que supostamente comiam cães e gatos em Springfield, Ohio – desviam a atenção de problemas sociais que tais líderes parecem relutar em enfrentar, como a solidão e a pobreza. Pessoas deslocadas carecem de influência política e poder de voto nos locais de que são acolhidas e, em zonas de guerra, combatentes raramente respeitam abrigos e campos destinados à sua sobrevivência.
Para as pessoas que fogem de suas casas, também faltam condições básicas. Apenas 35% dos refugiados dispõem de água potável no local onde vivem, enquanto menos de um quinto deles têm acesso a sanitários. Imagine como isso afetaria todas as coisas de ordem superior que você valoriza em sua vida, inclusive os encontros com outras pessoas que você valoriza em sua vida, se você não conseguisse nem mesmo encontrar um lugar decente para lavar as mãos ou escovar os dentes.
Acima de tudo, o que mais se destaca para mim, tanto como assistente social quanto como estudiosa da guerra, é a forma como as pessoas forçadas a deixar suas comunidades acabam perdendo conexões com profissionais de saúde em quem confiam. Não sei dizer quantas pessoas conheci em ambientes clínicos e humanitários que se recusaram a buscar atendimento para Covid-19, pneumonia, sintomas graves de gripe e outras doenças porque não tinham confiança de que seus profissionais em suas comunidades que os acolhem tinham em mente seus melhores interesses.
O ataque do meu governo [dos EUA] à saúde pública
Enquanto os Republicanos no Congresso lutam para aprovar um projeto de lei que privaria milhões de estadunidenses do seguro-saúde, autoridades de alto escalão disseminam desinformação sobre vacinas para doenças já erradicadas, como o sarampo, e profissionais e funcionário de saúde enfrentam ameaças de violência, observa-se que muitos estadunidenses pobres começam a vivenciar obstáculos ao acesso à saúde semelhantes aos encontrados em zonas de guerra.
Enquanto isso, com as decisões do governo Trump no início deste ano de demitir pelo menos 2 mil funcionários da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional e congelar os dólares usados (em parte) para tratar e monitorar doenças infecciosas em outros lugares do planeta, a ameaça de que uma pandemia estrangeira possa chegar a esse país aumentou consideravelmente.
Para citar a Senadora Joni Ernst em uma recente reunião com eleitores preocupados com a perda do sistema de saúde: “todos nós vamos morrer”. Embora isso seja um fato, a forma como se morre importa. Uma vida longa com acesso a serviços básicos como imunizações e água limpa é uma das diferenças entre morrer um ser humano e morrer como um dos animais selvagens que encontro em minha área rural, infectados por bactérias na água ou exausto pela exposição ao calor.
Eu me pergunto: como nós, estadunidenses, chegamos a um ponto em que muitos de nós ficamos em silêncio ou apoiamos o desfile militar de aniversário de um homem poderoso, no valor de 45 milhões de dólares, que fechou as estradas para moradores e passageiros durante dias? Como chegamos a um momento em que nossos líderes parecem relutantes em investir na área da saúde e nem sequer escondem seu desprezo pelas pessoas pobres, um número significativo das quais são militares e veteranos?
Não tenho mais a certeza se sei o que esse país representa mais. Não sei sobre você, mas hoje em dia os Estados Unidos muitas vezes me parecem uma terra estrangeira traiçoeira.
Originalmente publicado em https://tomdispatch.com/illness-and-endless-wars/
Tradução de Paulo Duque, do Esquerda Online