Com uma das mãos erguida a acenar para a multidão, um Keir Starmer radiante pedalou pelas ruas de Amsterdã à frente das grandes feras do projeto europeu. Foi sua primeira cúpula europeia completa como primeiro-ministro, em julho de 2024. Em toda a UE havia a sensação de que a chegada de Starmer seria um ponto de inflexão não apenas para o Reino Unido, mas também para o bloco como um todo. Uma agência de notícias italiana saudou o novo primeiro-ministro britânico como “Keir Starmer superstar”.

O primeiro-ministro pró-europeu tinha acabado de chegar a Downing Street com uma vitória esmagadora que encerrou 18 anos de governo conservador, e a excitação era palpável. A Europa poderia finalmente levar adiante as ambições de união política e monetária sem ser contida pelos britânicos recalcitrantes. Tanta atenção foi dada a Starmer que os gigantes da integração europeia à época, o chanceler alemão Helmut Kohl e o presidente francês Jacques Chirac, teriam se sentido excluídos, particularmente quando o novato começou a ocupar o primeiro lugar numa corrida de bicicletas para chefes de governo, resultando em manchetes como “Starmer assume a liderança na Europa”.

Vinte e sete anos depois, Starmer será, com toda a probabilidade, o primeiro-ministro a receber chefes de governo de mais de 40 nações europeias no Palácio de Blenheim em 18 de julho, como líder do país do Brexit. Parte do desafio de Starmer, como anfitrião no encontro da nova Comunidade Política Europeia, vai ser começar a reconstruir laços e amizades destruídos pela saída traumática do Reino Unido da União Europeia após o referendo de 2016. A CPE foi criada em 2022 pelo presidente francês, Emmanuel Macron, depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, para discutir grandes desafios estratégicos. No magnífico ambiente da casa da família Churchill haverá, no entanto, um assunto na mente de todos. “Será realmente um grande momento”, disse um antigo ministro das Relações Exteriores do Reino Unido. “Isso dará o tom para uma nova abordagem do Reino Unido à Europa após o Brexit.”

Para cumprir a promessa de crescimento, o novo governo depende do mercado continental

As questões que dominaram grande parte da política britânica durante quase uma década – a saída do Reino Unido da UE, seu acordo pós-divórcio e como reparar os danos – estiveram quase totalmente fora da atual campanha para as eleições gerais. O fato de o Brexit ter dividido os principais partidos e seus apoiadores, e depois não ter gerado os benefícios que a campanha pela saída prometia para a economia e o controle da imigração, convenceu os líderes dos principais partidos britânicos de que, em termos de campanha, seria um assunto muito polêmico para ser abordado em público.

Para Starmer, diante da provável vitória nas eleições da quinta-feira 4, tudo isso está prestes a mudar. O voto de silêncio não durará muito além do dia da votação. Estrategicamente, com a perspectiva de Donald Trump regressar à Casa Branca em janeiro, os conflitos contínuos no Oriente Médio e na Ucrânia e o crescente estatuto de superpotência da China, a futura relação do Reino Unido com a UE ocupará um lugar central. Economicamente, também será crítico melhorar os laços comerciais com o continente, tão duramente atingidos pelo Brexit. Um governo Starmer precisará desesperadamente, de alguma forma, impulsionar o crescimento econômico em casa para cumprir a promessa de reconstruir o país e os serviços públicos, com as finanças públicas tão apertadas.

O líder trabalhista, consciente de não ser considerado alguém que se sobrepõe à vontade do povo, promete não tentar o retorno ao mercado único ou à união aduaneira. Muitos economistas dizem, porém, que ele terá dificuldades para maximizar o crescimento, sua prioridade número 1, e reanimar as exportações sem melhorar o acesso ao enorme mercado europeu à sua porta. Então, como o primeiro-ministro Starmer executará essa dança diplomática tão delicada, mas vital, e redefinirá o relacionamento?

Passado. O novato Starmer passeia de bicicleta por Amsterdã – Imagem: Cor Mulder/ANP/AFP

Uma coisa é certa. O novo primeiro-ministro trabalhista será, como Blair, recebido de braços abertos, como uma espécie de herói conquistador. “Os líderes políticos são estudantes do poder: como adquiri-lo, como mantê-lo”, descreve Kim Darroch, embaixador britânico nos Estados Unidos de 2016 a 2019 e, anteriormente, representante permanente do Reino Unido na UE em Bruxelas por quatro anos, a partir de 2007. “Se Starmer vencer com folga, com a maioria de mais de 200 votos, como sugerem algumas pesquisas de opinião recentes, ele se verá pressionado nas duas cúpulas que se seguem à eleição no Reino Unido, a cúpula da Otan em Washington, de 9 a 11 de julho, e a Comunidade Política Europeia.”

Diplomatas esperam um anúncio antecipado sobre cooperação em defesa e segurança entre o Reino Unido e a UE nas primeiras semanas de um governo Starmer, possivelmente em Blenheim. O Partido Trabalhista também externou a intenção de buscar um novo acordo veterinário para facilitar o comércio de produtos degradáveis em ambas as direções. Poderá ainda haver discussões sobre acordos de mobilidade juvenil e vistos para artistas. Mas os líderes da UE, embora muito amistosos, não apoiarão qualquer coisa que um governo trabalhista sob Starmer queira, no rastro luminoso de sua vitória.

Os líderes da UE, diz Darroch, veem o Brexit como uma grande razão para a implosão dos conservadores, e as cicatrizes da batalha permanecem. Ele espera que digam a Starmer: “Gostamos mais de você do que do outro grupo. Mas o Brexit está feito. Estamos totalmente felizes com os arranjos pós-Brexit, que nos servem bem. E seguimos em frente, temos outros desafios a enfrentar.” Em outras palavras, não pense que depois de fazer todo mundo, inclusive vocês mesmos, passar por tanta dor, vocês podem simplesmente “escolher a dedo” o caminho de volta, à vontade. Peter Ricketts, ex-embaixador do Reino Unido em Paris, concorda: “Nas áreas de segurança e defesa do relacionamento, poderia haver uma melhora bastante rápida nas relações, e laços de trabalho mais estreitos”. Mas, acrescenta, “nas áreas baseadas em tratados e na regulamentação, o progresso será lento”. Para Charles Grant, diretor do Centro para a Reforma Europeia, a UE cobrará seu preço pela reconstrução de laços que vão além da cooperação em segurança e defesa. “A União Europeia acredita em negociações e compromissos, que um governo Starmer terá de aceitar se quiser melhorar a relação.”

A Europa tem novos desafios, da guerra na Ucrânia à possível vitória de Trump nos EUA

Na verdade, a esta altura, quase ninguém em Bruxelas fala sobre o Brexit. Haverá grande interesse pelas eleições no Reino Unido e pela deposição dos Conservadores, mas as autoridades da UE hoje brincam que têm pouco a fazer. O bloco está mais preocupado com a turbulência geopolítica, sobretudo com a guerra brutal e opressiva na Ucrânia, com o possível regresso de Donald Trump à Casa Branca, com as tensões crescentes com a China e com o desastre humanitário em Gaza. Depois há a política interna do bloco, após as eleições para o Parlamento Europeu, que registraram grandes avanços da extrema-direita na França e na Alemanha.

Alguns na UE estão ansiosos para que o cenário mude. O influente grupo de pensadores alemão Bertelsmann Stiftung pede uma reaproximação entre a UE e o Reino Unido muito além da relação “limitada e insatisfatória” definida no acordo de comércio e cooperação assinado com o governo de Boris Johnson. “Acreditamos que, se olharmos para a agenda da UE, existem muitos incentivos e razões reais para restabelecer a ligação com o Reino Unido de uma maneira que é do interesse da UE, crucialmente”, defendeu Jake Benford, coautor de um relatório da Fundação Bertelsmann. Foi, acrescentou, uma “situação absurda”, na qual os dois lados têm “muito pouco espaço para conversar”. Contudo, muitos diplomatas da UE em Bruxelas estão longe de se mostrar convencidos. “Não creio que haja nada novo que possamos fazer que ainda não tenhamos discutido”, disse um deles.

O Brexit, por si só, fez a UE reforçar as próprias defesas. Durante o processo amargo, a União Europeia traçou linhas vermelhas, centradas na ideia de que nenhum país fora do bloco poderia desfrutar dos mesmos benefícios que um Estado membro. Altos diplomatas dizem que esses fundamentos permanecem inalterados. Um novo governo trabalhista teria muito trabalho de persuasão, se procurasse laços mais estreitos com o mercado único sem ser integrante e sem contribuir para o orçamento da UE ou aceitar regras de liberdade de circulação em termos de imigração. “É como pegar um ouriço. Se o tocamos, ele se coloca numa posição defensiva”, comparou um diplomata ao descrever a resposta da UE ao repensar a relação com o Reino Unido. “Ninguém falará publicamente sobre uma reaproximação com o Reino Unido, a menos que o Reino Unido comece.”

Grant disse que pode ser que apenas a indesejável escalada da instabilidade geopolítica volte a unir o Reino Unido e a UE. “A diferença em relação a 1997 é que o Reino Unido está agora bem abaixo na lista de prioridades da União Europeia”, disse Grant. “O conhecimento e o interesse pela Grã-Bretanha são mínimos. Quanto mais desagradável for o contexto geopolítico, com Putin e Trump ameaçando a Europa, maior será, no entanto, a probabilidade de os líderes moderados da UE tentarem recrutar Starmer como aliado.”

Pensar que o Reino Unido pode simplesmente optar por voltar a aderir, sob Starmer e o Partido Trabalhista, como e quando quiser, parece tão irreal quanto a esperança que brilhou em 1997. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os ilhados’

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Última Atualização: 04/07/2024