Bruninho e Lili não se conhecem e vivem realidades bem distintas, mas suas histórias têm ao menos um ponto em comum: ambos, ainda bebês, perderam as mães assassinadas pelos seus genitores e passaram a fazer parte de uma estatística que só cresce no País, embora não existam informações precisas sobre os chamados “órfãos do feminicídio”. Bruninho é filho da ex-modelo Eliza Samudio, assassinada em 2010 pelo goleiro Bruno, quando ele tinha apenas 4 meses de vida. Três décadas antes, em 1981, a cantora Eliane de Grammont, mãe de Liliane, a Lili, foi morta no palco pelo ex-marido, o cantor e compositor Lindomar Castilho, conhecido como o “Rei do Bolero”. Tanto Lili quanto Bruninho passaram por diversas privações e dificuldades, mas tiveram a sorte de crescer em famílias minimamente estruturadas, sendo criados pelas avós maternas, rodeados de afeto e atenção. Realidade nada comum para a grande maioria dos órfãos do feminicídio, que, além da perda das mães, ainda enfrentam a desassistência do Poder Público, carente de políticas específicas para apoiar essa população.

O órfão do feminicídio tem a vida devastada e carrega consigo sequelas que trazem implicações interpessoais e psicológicas profundas, reverberando ao longo de toda a sua formação. São crianças e adolescentes desamparados, cujas famílias foram destruídas pela perda da mãe e quase sempre pela prisão do pai, que, em mais de 80% dos casos, é o autor do crime, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Estamos falando de traumas que os filhos e filhas das vítimas vão carregar para o resto da vida. Se já temos poucas políticas públicas para combater a violência contra as mulheres, há ainda menos opções para os órfãos”, lamenta Izabel Santos, do Centro das Mulheres do Cabo, entidade referência em Pernambuco com mais de 40 anos de atuação no enfrentamento à violência de gênero.

O orçamento de 2025 prevê 85 milhões de reais para atender 4 mil crianças e adolescentes

Izabel alerta para a dificuldade em identificar quem são os órfãos do feminicídio, o que pode ser mais um fator a contribuir para o Poder Público negligenciar a atenção que deveria dar a esse público. “Existe um medo das famílias em relação ao acontecimento. Elas temem ser ainda mais vitimadas e tentam proteger as crianças e adolescentes órfãos”, diz, lembrando que, em alguns casos, esses filhos são encaminhados para viver com familiares paternos e passam por todo tipo de humilhação e violência psicológica. “Existem muitas questões por trás da morte da mulher que ficam soltas. Claro que muitas vezes os órfãos vão para lares bons, convivem com pessoas que os amam e cuidam, mas também há muitos casos de abandono. Eles ficam desassistidos, desamparados, a gente não sabe onde estão, se frequentam escola, se o Conselho Tutelar está acompanhando essa criança, se ela corre risco de vida… Não existe uma resolução com a simples punição do responsável por aquela violência”, completa a advogada Sueli ­Amoêdo, uma das coordenadoras da Plataforma Justiceiras e da Virada Feminista.

Outra dificuldade é a ausência de estatísticas oficiais e precisas sobre o fenômeno. Uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará, realizada em parceria com o Instituto Maria da Penha, estima que cada mulher assassinada deixa, em média, três órfãos. Com base na taxa brasileira de fecundidade estimada pelo ­IBGE, é possível dizer que mais de 2,5 mil crianças e adolescentes perderam suas mães só em 2022, embora nem todas as mortes possam ser tipificadas como feminicídio. “Infelizmente, não temos dados oficiais, os boletins de ocorrência e outros documentos públicos não informam se as vítimas eram mães nem a idade dos filhos”, explica Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entidade que divulga anualmente um mapa da violência no Brasil, o Anuário de Segurança Pública. Na sua última edição, o documento registrou 1.467 vítimas de feminicídio em 2023. Destas, 63,6% eram negras, 71,1% tinham idade entre 18 e 44 anos, e 64,3% foram mortas na própria residência. O número de vítimas cresce ano a ano, como mostra o gráfico à pág. 29.

Crime. O goleiro Bruno foi condenado a 22 anos de prisão pela morte de Elisa Samudio – Imagem: Domingos Peixoto/Agência O Globo/AFP

Sônia Samudio, avó de Bruninho, transformou o luto pela morte da filha que até hoje não pôde sepultar – os restos mortais de Eliza nunca foram encontrados – em luta para criar o neto. Sem assistência do Poder Público, contou com a ajuda de parentes e amigos para oferecer ao neto a estrutura necessária para que ingressasse no mundo do futebol. Chegou a receber doações para a compra de chuteiras e roupa para os treinos. Com o DNA não apenas do seu genitor, mas da mãe que também chegou a jogar como goleira, Bruninho teve sua iniciação futebolística no Athletico Paranaense, em Curitiba, e logo despertou interesse do Botafogo, clube carioca que o contratou como goleiro titular da categoria de base, com uma carreira promissora, segundo os analistas esportivos. “Eu não tive direito ao luto, nem sequer sei o que fizerem com o corpo da minha filha, mas percebi que tinha algo muito significativo, uma missão, que era cuidar do meu neto e tentar fazer com que a Justiça fosse feita para que os assassinos fossem punidos. Nunca tive benefício do Poder Público, de nenhum órgão. Tive apoio só da minha família e dos amigos mais próximos”, diz dona Sônia.

O crime de feminicídio foi inserido no Código Penal em 2015, a partir da Lei 13.104, que tipifica a infração como violência contra a mulher em razão do menosprezo à condição feminina. Passados dez anos, só agora uma lei federal está em vias de ser implantada para atender os órfãos de feminicídio. Trata-se da Lei 14.717, de outubro de 2023, a qual entrará em vigor ainda este mês. A norma prevê uma pensão especial aos filhos e dependentes menores de 18 anos de mulheres vítimas de feminicídio, cuja renda familiar per capita seja de até 25% de um salário mínimo. “Estamos finalizando a fase de regulamentação, de pactuação orçamentária, considerando todos os critérios e condicionantes para que ela realmente chegue aos órfãos do feminicídio no Brasil”, explica Pagu Rodrigues, diretora de Proteção de Direitos do Ministério das Mulheres, ressaltando que está previsto para 2025 um investimento de 85 milhões de reais para atender em torno de 4 mil órfãos do feminicídio.

“Não morre só a mãe, morre o pai e a ideia de família”, diz Lili Grammont, que cresceu sem apoio do Estado

Alguns estados, a exemplo de Paraná e Maranhão, e capitais, como Cuiabá, Recife e Rio de Janeiro, também têm projetos voltados para atender essa população. O Cria Esperança foi instituído pela prefeitura do Recife em 2022 e prevê que cada família acolhida pelo programa receba um valor mensal de 606 reais, acrescido em 15% para cada criança ou adolescente adicional, limitado a cinco órfãos por núcleo  familiar. Embora a lei seja de 2022, ela é retroativa a 2018 e atende os órfãos de até 18 anos de idade ou 24 anos, se ele estiver na universidade. O Cria Esperança também oferece apoio psicológico e educacional. “Fazemos o acompanhamento para que a gente possa apresentar a essas famílias as várias políticas públicas e programas da prefeitura que elas podem acessar ao longo da vida”, explica Glauce Medeiros, secretária da Mulher do Recife, justificando que o número reduzido de beneficiados se deve à subnotificação dos casos de feminicídio e à dificuldade do Poder Público em identificar os órfãos.

A reparação financeira cobre uma lacuna deixada com a morte dessas mulheres, já que muitas delas, mais de 34%, segundo o IBGE, eram chefes de família e responsáveis financeiramente pelas despesas da casa. O benefício não é, porém, suficiente para suprir toda a carência deixada pela tragédia. “Ao abordar a orfandade do feminicídio, enfrentamos o desafio de tratar os ‘fragmentos existenciais’ de uma profunda falha social, o que nos leva a refletir sobre a noção de reparação. A sociedade falha duplamente com essas crianças e suas mães: primeiro, pela morte impulsionada por uma cultura de machismo e, segundo, pelo descaso na aplicação dos mecanismos preventivos de proteção, como aqueles estabelecidos na Lei Maria da Penha”, ressalta ­Lili Grammont, hoje professora de dança e pesquisadora sobre o tema do feminicídio. Mesmo com uma base sólida, Lili teve uma vida muito simples, morava na casa de parentes e cresceu recebendo doa­ções de tios. A maior dificuldade foram as sequelas psicológicas que ficaram.

Inimigo íntimo. Seis em cada dez vítimas de feminicídio no Brasil foram mortas dentro da própria residência – Imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil

“Teria feito toda a diferença se tivesse recebido um auxílio do governo, e sei que existem muitas crianças em situação de vulnerabilidade muito maior. O recurso financeiro é a base da pirâmide, por isso essas políticas públicas são muito bem-vindas”, afirma Grammont, para completar: “Mas o trauma em si vai muito além do financeiro. O luto de um órfão do feminicídio não é o mesmo de quem perde mãe para o câncer, por exemplo. A morte é dura para as duas crianças, mas uma que é consequência de uma violência, de uma sociedade machista, é ainda mais difícil de assimilar. Não morre só a mãe, morre o pai e a ideia de família. Os órfãos do feminicídio têm o coração ferido e vão levar esse trauma para sempre”.

Edjane Sobral teve a mãe assassinada pelo então companheiro em 2019. Ela já era adulta, mas ainda sente as sequelas da violência sofrida. “Tenho problemas psicológicos, ansiedade, tenho depressão, tentei suicídio. As datas comemorativas já não são mais as mesmas, não têm mais graça. Aniversário, Dia das Mães, fim de ano, a gente passava sempre juntas. Isso me foi roubado porque alguém decidiu tirar a vida dela. A gente aprende a conviver, mas essa dor não passa nunca”, afirma Sobral. “Todos os filhos das vítimas do feminicídio têm alterações, eles não voltam mais a ter aquele brilho no olhar, aquele sorriso. Isso fica apagado”, salienta Amoêdo.

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Para a advogada Aline Pescaroli, o Poder Público está longe de ter as condições adequadas para atender essa população. “Estamos falando de crianças e adolescentes a enfrentar desafios significativos em sua trajetória. A proteção dessas vítimas secundárias do feminicídio apresenta fragilidades, exigindo um olhar mais atento para suas necessidades. Geralmente, falta capacitação de alguns profissionais na estrutura de acolhimento existente para lidar com o sofrimento dessa população e a complexidade das situações que vivencia. Os abrigos, que deveriam representar um espaço seguro, acabam por não oferecer o suporte adequado.” •

Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Órfãos do feminicídio’

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Last Update: 06/03/2025