Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, que já levou mais de 3,8 milhões de espectadores às salas de cinema no Brasil, pode ter dado uma contribuição decisiva para o fim da impunidade dos algozes da ditadura. Por coincidência ou não, um processo que pede a responsabilização criminal dos militares envolvidos no desaparecimento forçado do ex-deputado Rubens Paiva, retratado no filme com três indicações ao Oscar, ganhou fôlego nas últimas semanas. Em recente manifestação ao Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria-Geral da República pediu que a Corte avalie se os acusados estão protegidos ou não pela Lei da Anistia de 1979.
Um degrau abaixo na estrutura do Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que sim, e arquivou uma ação penal movida contra os militares pelo Ministério Público Federal. A PGR recorre dessa decisão, por entender que o processo deveria ser apenas suspenso, até que o STF avalie se o desaparecimento forçado configura um crime permanente, não passível de anistia, como entende a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O ministro Flávio Dino, relator de um caso relacionado à Guerrilha do Araguaia no Supremo, é partidário dessa tese. “O crime de ocultação de cadáver não ocorre apenas quando a conduta é realizada no mundo físico. A manutenção da omissão do local onde se encontra o cadáver, além de impedir os familiares de exercerem seu direito ao luto, configura a prática de crime, bem como situação de flagrante”, anotou o ministro, ao reconhecer a repercussão geral da matéria – decisão que precisa passar pelo crivo dos demais colegas na Corte. Na peça, por sinal, Dino faz uma breve alusão ao filme de Walter Salles: “A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos seus direitos quanto aos familiares desaparecidos”.
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STF. O ministro reforça o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Imagem: Fellipe Sampaio/STF
Nos últimos anos, o MPF abriu mais de uma centena de inquéritos para investigar graves violações aos direitos humanos cometidas por agentes da ditadura. Eles resultaram em cerca de 50 ações, movidas tanto no âmbito cível quanto no criminal, que correm de forma independente e aguardam uma decisão judicial. O caso Rubens Paiva foi o primeiro a chegar ao STF e desde 2014 estava travado, depois que um dos réus ingressou com um habeas corpus. À época, o ministro Teori Zavascki, falecido em 2017, acatou o pedido, mas permitiu a coleta de provas. Alexandre de Moraes herdou o processo e, em novembro do ano passado, determinou o envio do caso para parecer da PGR. Rapidamente, a subprocuradora Maria Caetana Cintra Santos respondeu, reafirmando a convicção de que a competência para analisar o caso é do Supremo.
Enquanto os ministros do STF tardam a analisar o processo de Rubens Paiva, dos cinco acusados pela morte do ex-deputado três já morreram. No entanto, o general José Antônio Nogueira Belham e o capitão Jacy Ochsendorf e Souza ainda poderiam responder pelo crime, a exemplo do ocorrido na Argentina, no Chile e no Uruguai, países também subjugados por ditaduras na segunda metade do século XX.
Não é a primeira vez que o Supremo é provocado a reavaliar a extensão da Lei da Anistia. Em 2010, o tribunal rejeitou uma ação movida pela Ordem dos Advogados do Brasil, que questionava a validade da autoanistia concedida pelo regime militar a seus agentes. Meses depois, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu uma decisão, firmando o entendimento de que não podem ser perdoadas graves violações aos direitos humanos, além de suscitar a tese de que o desaparecimento forçado de dissidentes políticos e a ocultação dos cadáveres das vítimas constituem crimes permanentes, como Dino reconhece em sua decisão.
Para Flávio Dino, a ocultação de cadáveres é um crime permanente, fora do alcance temporal da Lei da Anistia de 1979
Presidente da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga explica que, após a decisão, o Ministério Público Federal passou a buscar a responsabilização criminal de agentes da ditadura identificados pela Comissão Nacional da Verdade. Na avaliação da procuradora regional da República, ela própria autora de várias ações com essa finalidade, o STF reconheceu que a Lei da Anistia também é válida para os agentes estatais da ditadura, mas isso não vale para todos os casos. Em 1998, o Brasil reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. E esta já decidiu que crimes permanentes ou contra a humanidade não podem ser anistiados. O Supremo terá de enfrentar esse debate.
De acordo com o procurador regional da República Marlon Weichert, antigo parceiro de Eugênia Gonzaga na luta contra a impunidade dos torturadores e algozes da ditadura, a manifestação do ministro Flávio Dino pode fazer avançar as centenas de inquéritos travados no Judiciário, porque o magistrado propôs ao plenário do STF o mecanismo de repercussão geral. Isso significa que o entendimento do tribunal deve valer para todos os casos semelhantes. “Não se trata de uma reinterpretação da Lei da Anistia, o Supremo precisa apenas adequar sua decisão ao que disse a Corte Interamericana”, explica. “A Lei da Anistia perdoou crimes cometidos até 15 de agosto de 1979, portanto, não tem validade para os crimes permanentes.”
Ex-presidente da Comissão de Anistia e professora de Direito da UnB, Eneá de Stutz lamenta que o Brasil tenha passado muito tempo debatendo se a Lei da Anistia é uma legislação “de memória ou de esquecimento”. “Se é de memória, não cabe ao Estado anistiar os responsáveis pelos crimes cometidos pelos agentes estatais.” Ela destaca que os crimes contra a humanidade não foram atos isolados. “Nenhum torturador acordava um dia com a pá virada e decidia torturar alguém. Havia uma ordem, era uma ação coordenada. Por isso, é possível investigar e punir. Se o País não acertar as contas com seu passado, estará condenado a repetir os mesmos erros.”
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Herdeiro da luta familiar. “Não vou sossegar enquanto não encontrar os restos mortais de meu avô”, afirma neto de Mário Alves, desaparecido em 1970 – Imagem: Acervo Família Mário Alves
Na condição de amicus curiae da ADPF 320, apresentada pelo PSOL para o Supremo rever o alcance da Lei da Anista, o Instituto Vladimir Herzog cobra do ministro Dias Toffoli que a matéria seja colocada em pauta. Segundo o diretor-executivo da entidade, Rogério Sottili, o magistrado alegou não ter pautado o tema em 2024 por tratar-se de um ano eleitoral, mas agora, sobretudo após a manifestação de Dino, seria uma boa oportunidade. “O debate sobre anistiar os responsáveis pela tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, bem como essas novas manifestações sobre a Lei da Anistia, é uma oportunidade histórica para o País não perpetuar a impunidade.”
Até o momento, o MPF tem obtido maior êxito com as ações no âmbito cível, normalmente para obrigar torturadores a pagar indenizações às suas vítimas ou a ressarcir os cofres públicos por reparações pagas pelo Estado. Há ainda ações que pedem ao Judiciário para extinguir os vínculos de agentes da ditadura com a administração pública, mesmo daqueles que já morreram, o que poderia afetar benefícios e pensões pagos aos familiares deles. Em um recurso apresentado ao STF na segunda-feira 13, a PGR defendeu o desligamento póstumo de dois coronéis do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, que comandaram o DOI–Codi paulista, um dos mais temidos centros de tortura do regime militar.
Mas os familiares de desaparecidos políticos ainda sonham com o dia em que agentes da ditadura sejam presos ou, pelo menos, obrigados a revelar o paradeiro dos restos mortais de suas vítimas. É o caso de Leo Alves, neto do jornalista e militante comunista Mário Alves, que desapareceu em 1970. Segundo testemunhas, ele foi barbaramente torturado no
DOI–Codi do Rio de Janeiro, a mesma masmorra onde o ex-deputado Rubens Paiva foi visto pela última vez com vida. “Minha mãe e minha avó foram muito corajosas, moveram todos os recursos possíveis ainda durante a ditadura. Graças a isso, meu avô foi uma das primeiras vítimas reconhecidas pelo Estado brasileiro”, recorda. “Eu herdei essa luta e, enquanto não tiver uma informação precisa sobre os restos mortais do meu avô, não vou sossegar.” •
Publicado na edição n° 1348 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Oportunidade histórica’