Operação no RJ explicita riscos da interferência do crime organizado na política

A relação entre política e crime organizado e a infiltração deste nas instituições não é nova, mas está cada vez mais explícita e perigosa. A prisão do presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, deputado Rodrigo Bacellar (União Brasil) nesta quarta-feira (3), conta mais um triste e intrincado capítulo dessa história.

Uma das mais conhecidas e tradicionais relações entre esses dois universos começa com a aproximação entre políticos da direita, ligados ao regime militar ou alinhados ao ideário do “bandido bom é bandido morto”, ainda durante a ditadura, com esquadrões da morte. Mais tarde, evoluiu para o envolvimento com as milícias oriundas desse mesmo tipo “prestação de serviço”, passando, claro, pelo jogo do bicho.

Essas relações, no entanto, em geral eram tacitamente aceitas e até defendidas tanto no âmbito político quanto na mídia e na sociedade como uma forma justa de lidar com a “bandidagem” — a família Bolsonaro é um exemplo dessa defesa.

Com o tempo, a mistura entre o poder político e o crime foi se tornando mais heterodoxa e sofisticada, espraiando-se também para relações promíscuas com facções ligadas tanto ao tráfico de drogas quanto ao controle territorial e de serviços, que há algum tempo deixou de ser exclusividade das milícias.

O caso de Bacellar parece vir dessa mesma matriz. Sua prisão ocorreu no âmbito da Operação Unha e Carne, da Polícia Federal. O objetivo da ação é combater a atuação de agentes públicos envolvidos no vazamento de informações sigilosas, que culminou com a obstrução da investigação realizada no âmbito da Operação Zargun.

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Bacellar é suspeito de ter repassado antecipadamente informações sigilosas da Zargun, deflagrada em setembro, a Thiego Raimundo dos Santos Silva, então deputado estadual do MDB no Rio conhecido como TH Joias. De acordo com a Polícia Civil, há “provas robustas” de que TH teria favorecido o Comando Vermelho por meio de seu mandato e intermediado negociações relativas a drogas, armas e equipamentos.

Mas, o papel de Bacellar nisso tudo vai além. De acordo com a Procuradoria-Geral da República, ele também tinha ingerência no Poder Executivo estadual, interferindo na nomeação de cargos estratégicos nas polícias Civil e Militar.

Bacellar ainda tem seu nome apontado em esquema que pode levar à cassação e à inelegibilidade dele e do atual governador do RJ, Cláudio Castro (PL). Ambos protagonizam processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por abuso de poder político e econômico e irregularidades em folhas de pagamento do Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro (Fundação Ceperj) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em 2022.

Em novembro, a ministra relatora do caso, Isabel Gallotti, votou pela cassação e inelegibilidade de Bacellar, do governador e de seu vice, Thiago Pampolha (MDB). O julgamento, no entanto, foi suspenso por um pedido de vista do ministro Antonio Carlos Ferreira, mas a expectativa é de que seja retomado em breve.

Conexões avançadas

As conexões entre política e crime organizado há muito tempo avançaram também sobre Brasília. Não à toa, iniciativas recentes parecem ter sido moldadas sob medida para dificultar investigações que avancem sobre relações desse tipo.

A tramitação da PEC da Blindagem foi um exemplo claro desse tipo de interferência. Se fosse aprovada, a proposta criaria uma imunidade excessiva aos parlamentares e aumentaria o risco de infiltração do crime organizado no poder político.

Partidos que tradicionalmente se arvoram como defensores da segurança pública e combatentes do crime organizado — como PL e PP, entre outros — votaram em peso a favor da proposta, que acabou sendo barrada no Senado após forte pressão popular.

Outro caso sobre o qual pairam muitas dúvidas foi a desfiguração do PL Antifacção. Construído ao longo de meses pelo governo federal com especialistas da área com o objetivo de fortalecer o combate ao crime organizado, na Câmara a proposta acabou se transformando num Frankenstein pelas mãos da direita, sob a batuta do então secretário de Segurança Pública paulista, Guilherme Derrite (PP-SP), que se licenciou do cargo para poder estragar a matéria.

Após seis versões, o resultado final apresentado por Derrite (e aprovado na Câmara) foi duramente criticado por quem, de fato, conhece o tema. Na avaliação de Luís Flávio Sapori, professor da PUC-MG e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o “monstrengo jurídico” do deputado “desarticulava a atuação das forças policiais estaduais e de âmbito federal e ignorava o Ministério Público e a importância da Receita Federal e do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). Além disso, fragmentava ainda mais a atuação do aparato estatal que lida com o crime organizado”.

As críticas convergem com as de outros especialistas, para os quais aquela versão, além de reduzir recursos para a Polícia Federal, poderia limitar sua capacidade de investigar organizações criminosas com atuação interestadual ou internacional, transferindo inquéritos para a esfera estadual, onde as facções muitas vezes têm mais influência e poder de coação e de barganha.

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Na avaliação de Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Escola de Direito da PUC-RS e também membro do FBSP em artigo sobre o tema, “a condução da tramitação também revelou sinais de interesses que extrapolam o debate sobre segurança pública”.

Ele destacou que a reunião noturna de Derrite, em um restaurante de luxo em Brasília, com os ex-presidentes da Câmara, Eduardo Cunha (PRD) e Arthur Lira (PP), no dia 13 de novembro, em meio ao vai e vem de versões, “levantou suspeitas de que o endurecimento penal proposto contra as facções serviria simultaneamente para ressuscitar a chamada ‘PEC da blindagem’, com ‘jabutis’ inseridos no substitutivo para proteger agentes políticos e empresários envolvidos em crimes econômicos e de corrupção”.

Em outras palavras, acrescentou o professor, “o mesmo pacote que prometia punir duramente o crime armado com domínio territorial poderia, nas entrelinhas, funcionar para manter intactas as dinâmicas do crime organizado de colarinho branco, que opera por meio de redes políticas, financeiras e empresariais, e não nas favelas e periferias”.

Risco democrático

A alta possibilidade de interferência do crime organizado no meio político e o perigo que isso representa à institucionalidade e à democracia também foram detectados em relatório recém-divulgado pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), no qual o órgão aponta riscos para as eleições de 2026, entre os quais a atuação de facções e milícias.

“A crescente simbiose entre a criminalização da política e a politização do crime evidencia a capacidade de milícias e de facções de influenciar o processo eleitoral. Em áreas periféricas e de baixa presença estatal, grupos criminosos exercem poder paralelo, controlando a vida de comunidades e, consequentemente, o voto”, diz o relatório.

Essa influência, prossegue, “manifesta-se tanto em ações de financiamento de campanhas quanto em ações de coação de eleitores e indicação de candidatos próprios, chegando, em casos extremos, à eliminação de adversários políticos. A penetração da criminalidade
na política descaracteriza a representação democrática e ameaça as instituições, corrompendo-as por dentro”.

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