Em seu prefácio para o livro “A Internacional da Lava Jato: imperialismo, nova direita e o combate à corrupção como farsa”, o professor emérito da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) José Paulo Netto aponta a operação Lava Jato, iniciada em 2014, como um fenômeno que elevou figuras jurídicas de questionável competência ao status de heróis anticorrupção.

Neto denuncia a adulação desproporcional da mídia e os danos significativos infligidos à estrutura legal e à sociedade brasileira, enquanto expõe as motivações políticas e os interesses externos por trás dessa narrativa. O prefácio antecipa a análise de Fernandes que desmistifica não apenas a operação em si, mas também revela suas conexões com o imperialismo contemporâneo e o capitalismo tardio, destacando a necessidade urgente de uma compreensão crítica e ampliada da história recente do Brasil.

A “Internacional da Lava Jato: imperialismo, nova direita e o combate à corrupção como farsa” (Autonomia Literária, 2024) será lançado em São Paulo este sábado (13/07), às 17h30, no Ateliê do Bixiga, e no Rio de Janeiro, no dia 22/07, às 18h, na Livraria Da Vinci.

Um livro imprescindível

A segunda metade dos anos 2010 assinalou, em nosso país, a glorificação daquela que ficou conhecida como operação lava-jato, cuja emergência verificou-se em 2014. A operação acabou por configurar um episódio que trouxe ao proscênio da cena brasileira bacharéis-doutores que, do ponto de vista jurídico, sob condições sociopolíticas de normalidade e maturidade democráticas, não teriam o menor relevo ou destaque – talvez senão como exemplares mediocridades agressoras do idioma (quem não se recorda do juiz parcial, inculto e ignorante, travestido de justiceiro-mor, cometendo barbaridades do tipo conje e depredaram?) ou como fazedores de toscos e mentirosos powerpoints (quem não se lembra daquele apresentado pelo ajudante do justiceiro-mor?).

Hoje, dez anos depois de iniciada a operação conduzida pela república de Curitiba (alusão à república do Galeão, grupelho golpista anti-Getúlio Vargas dos anos 1950), as máscaras e as fantasias caíram. Ninguém mais neste país, com um mínimo de informação e de decência, ignora a intencionalidade política que, por baixo do verniz “jurídico”, motivou e dirigiu a ação dos justiceiros paranaenses e seus êmulos – a sua ideologia reacionária saltou à luz com as opções político-partidárias que fizeram a partir de 2018.

A glorificação inicial esboroou-se – e se há vivandeiras (e elas existem!) da lava-jato, agora se comportam com menos arrogância: entusiastas apaixonados de ontem discursam na hora atual com fingida moderação… As provas do atropelo e da violação de normas jurídicas, da autêntica truculência e do quantum de arbítrio acumulado na ação dos pretensos justiceiros não credibilizam minimamente os seus feitos.

Talvez seja pertinente, antes de prosseguir na breve apresentação a este livro cujas importância e originalidade serão aludidas mais adiante, tecer, em sucintos parágrafos, uns poucos e rápidos comentários acerca da problemática da corrupção.

Deixando de lado os ingênuos e/ou mal-intencionados que argumentam que processos de corrupção acompanham necessariamente a humanidade desde o seu surgimento (o senso-comum mais rasteiro e vulgar considera a corrupção algo próprio de uma eterna “essência humana”), é sempre preciso levar em conta não só a historicidade da corrupção como a diversidade de fenômenos que ela envolve.

Não é preciso ser nenhum marxista perigoso e subversivo para constatar, por exemplo, a corrupção histórica da/sociedade burguesa nos Estados Unidos do século XX (v.g., o clássico estudo, de E. H. Sutherland, sobre os crimes dos “colarinhos brancos”) e noutros quadrantes do mundo, associando sujeitos do espaço privado a atores especialmente políticos (acerca da sua atualidade, basta apenas examinar, na Eurásia, as figuras de Putin e Erdogan, no Oriente a da sul-coreana Park Geun-hye e, na Europa Ocidental, as recentes – deste século – peripécias das honradas famílias reais da Espanha, da Bélgica e da Holanda).

Para esta perspectiva de análise, considerada a vigência da ordem burguesa, a corrupção é um componente estruturante desta sociedade – não há ordem burguesa sem a corrupção que lhe é própria. Mas esta sociedade se constitui e se desenvolve muito contraditoriamente – é dinamizada primariamente pelas lutas de classes (sabemos, há mais de um século e meio, que a burguesia, entre outras das suas belas criações, produz os seus coveiros) e explicita tensões e conflitos cada vez mais complexos e diferenciados, que vão muito além dos imediatos interesses classistas.

É característica histórica saliente da sociedade brasileira uma sempre reiterada e reciclada cultura da impunidade (e a prática que é a sua implicação necessária), já objeto de significativa e diferenciada literatura sociológica e antropológica. Muito frequentemente, a crítica a esse traço tão resiliente da nossa história provém de segmentos políticos de nítido posicionamento conservador e até francamente reacionário e com vieses de vulgar moralismo (tudo isto encontrável noutras latitudes).

Parece supérfluo assinalar que um tal background favoreceu a popularidade da lava-jato; a “informação” que a grande imprensa brasileira sistematicamente entregou a seus leitores destilou, dia a dia, a ideia segundo a qual os templários de Curitiba estavam “colocando os ricos na cadeia” – notável exemplo contemporâneo de como se opera um processo de mistificação massiva (jovens interessados em pesquisas sérias de psicologia social deveriam estudar hoje, com olhos críticos, a obra, do fim dos anos 1930, do velho S. Tchakhotine, há mais de cinquenta anos traduzida por Miguel Arraes – que procurem em alfarrabistas o clássico A mistificação das massas pela propaganda política).

Observei, linhas acima, que em dois capítulos (o 4º. e o 5º.) deste livro de Luís Fernandes apresentam-se subsídios para resgatar veraz e criticamente o que foi a lava-jato. Embora escrito por um historiador que em todos os seus textos jamais deixa escapar a historicidade das questões que enfrenta, a história daquele infausto episódio da vida brasileira não é o objeto central de A Internacional da Lava Jato: imperialismo, nova direita e combate à corrupção como farsa; aliás, já há farto material para avançar na elucidação dessa história.

Ponderando, a meu juízo muito corretamente, o hegemonismo dos Estados Unidos ainda no comando do imperialismo contemporâneo, Luís Fernandes circunscreve o que afirma ser o objetivo estratégico do “grande irmão do Norte”: liderar uma rede institucional e para-institucional de agências de governos, ONGs, entidades de classes e fóruns internacionais que viabilizem o seu domínio extraterritorial “legal”. Estou convencido de que a sua pesquisa, calçada em documentação probatória que não resiste a contestações, é um suporte indispensável para avançar na explicação/compreensão das atuais e dominantes formas de combate à corrupção levadas a cabo por aqueles que pretendem formalmente jogar fora a água suja do banho (isto é, a corrupção) sem realmente se desvencilhar do inatacável bebê (isto é, o capitalismo contemporâneo, no seu estágio tardo-imperialista).

Vê-se: este não é mais um livro importante, em meio aos já publicados entre nós, para lançar luz sobre a operação lava-jato que, em embalagem tropical, foi produto essencialmente conectado ao empenho da luta travada, em escala mundial, pelo Tio Sam para colimar o seu “objetivo estratégico” – é, decerto e muito simplesmente, um livro imprescindível.

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Última Atualização: 10/07/2024