No fim de março de 1964, diante do golpe de Estado em marcha no Brasil, o governo dos Estados Unidos atuou para apoiar militarmente a ruptura da democracia. Mobilizou uma frota de navios de guerra para que viesse à costa brasileira e desse retaguarda ao golpismo, intervindo caso João Goulart e seus aliados resistissem. Como se sabe, resistência não houve e o golpe de 1º de abril nos lançou num calabouço autoritário de 21 anos.

Naquela quadra, o patrocínio estadunidense ao autoritarismo em nosso País, na América Latina e noutras plagas inseria-se no contexto da Guerra Fria. Avalizar ditaduras de direita era parte da política externa norte-americana, sob pretexto de conter um suposto avanço comunista. Assim, a despeito do discurso de defesa da democracia e do “mundo livre”, os Estados Unidos não hesitavam em promover a destruição de regimes democráticos e das liberdades fora de seu território, respaldando golpes e governos tirânicos. A ideia foi lapidarmente sintetizada em frase atribuída a Franklin ­Delano Roosevelt, que assim se referia ao brutal ditador nicaraguense, Anastasio Somoza: “Ele pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta”.

Eis que o governo Donald Trump, com incentivo de Eduardo Bolsonaro, decide reeditar a Operação Brother Sam, adaptando às práticas contemporâneas da implantação autocrática o patrocínio norte-americano ao golpismo. Em vez de, como Lyndon Johnson, nos destinar uma frota bélica de navios, Trump ameaça nos mandar sanções. Difícil não lembrar da irônica máxima com que Marx corrige Hegel: “Todos os grandes fatos e personagens da história universal aparecem, por assim dizer, duas vezes (…) a primeira como tragédia e a outra como farsa”.

Pois a reedição farsesca da Operação Brother Sam nada mais é do que outra peça na engrenagem do golpismo bolsonarista. Ora, se contra a tentativa de ruptura institucional se insurgem as instituições, pau nelas! A instituição ora malhada é a inimiga favorita do bolsonarismo e da ultradireita populista mundo afora: o órgão de cúpula do Judiciário. Não é casual a predileção por tal nêmesis, pois em democracias sob ataque é frequente que a maior resistência provenha do sistema de Justiça. Hoje, nos Estados Unidos, é na ação de juízes que Trump encontra maior contenção. Por isso, têm-se intensificado ataques trumpistas a juízes, com pedidos de ­impeachment e ameaças de não acatamento de decisões judiciais.

Por lá, a objeção às investidas autoritárias do governo de ultradireita ocorre difusamente pelo Judiciário, pela ação de magistrados de primeira instância. A Suprema Corte não se tornou (ainda) bastião de oposição ao abuso – e há dúvidas de que se tornará. Não à toa, em julgamento nesse tribunal sobre a constitucionalidade de uma ordem executiva que cassa a nacionalidade dos filhos de imigrantes ilegais nascidos em território norte-americano, Trump optou por não confrontar diretamente a substância da matéria. Em vez disso, preferiu impugnar a possibilidade de juízes individuais tomarem decisões válidas para todo o país, o que afeta outros casos. O governo Trump, caso tenha sucesso em desempoderar a base do Judiciário e a Suprema Corte se mantenha inerte, tornará suas arbitrariedades fatos consumados. Contudo, se também o tribunal de cúpula operar como dique de contenção do autoritarismo, é provável que vire alvo da ira autocrática do líder populista, como ocorreu aqui.

Sanções ao ministro Alexandre de Moraes, por sua atuação nos casos envolvendo o golpismo bolsonarista, seriam chancela a este. Se o rápido reconhecimento da vitória de Lula pelo governo Joe Biden buscou dissuadir pretensões do presidente derrotado de não acatar o resultado eleitoral, sanções a um integrante de nossa Suprema Corte neste contexto representam o exato oposto: atacar a nossa democracia.

É significativo que seja Eduardo Bolsonaro o principal lobista nos Estados Unidos desse ataque estrangeiro ao STF. Foi ele que, antes mesmo da vitória do pai na eleição presidencial de 2018, afirmou que “se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo”. Logo depois, como é praxe em situações assim, desculpou-se, dizendo não pretender de fato dizer o que de fato disse e, portanto, fechar o Supremo. Sua atuação no autoexílio mostra que seu verdadeiro espírito foi expresso na fala original, não nas desculpas. Nisso, aliás, age como seu progenitor, que também ataca constantemente o STF e, ainda como presidente, ameaçou não cumprir decisões da Corte. •

Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Operação Brother Sam II’

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Last Update: 29/05/2025