por Cida de Oliveira
O mercúrio é um metal pesado considerado a substância mais tóxica já conhecida pela ciência moderna. Isso porque causa intoxicações, que dependendo do grau, provocam síndromes, como as neurológicas, muitas das quais graves, irreversíveis e letais. Altamente volátil, evapora mesmo à temperatura ambiente, permanecendo suspenso no ar, até ser inalado ou absorvido pela pele. Ao cair na circulação sanguínea, se deposita em órgãos onde fará estragos, como o sistema nervoso central, seu alvo principal.
Em gestantes, tem a capacidade de atravessar a barreira placentária, afetando diretamente tecidos fetais em desenvolvimento. Mas os bebês também podem ser intoxicados por meio do leite materno, como mostram estudos. A lista longa de problemas vai muito além, conforme pode ser conferida no final da reportagem. E há ainda os danos ao meio ambiente, com a contaminação de rios, do mar e de peixes, que traz mais doenças para quem deles se alimenta.
Por incrível que possa parecer, a substância responde por metade da composição do amálgama dentário, juntamente com uma liga de prata, estanho e cobre. A mistura, tóxica, está em 70% das obturações realizadas nos consultórios do serviço público de saúde do país. Dentro da boca de tanta gente, encurta o caminho dos vapores de mercúrio, que atravessam rapidamente as mucosas e o palato.
Já entre a clientela da rede privada, que pode pagar e fazer escolhas, a massinha cinza caiu em desuso. Entraram em seu lugar materiais biocompatíveis, resistentes, seguros, estéticos e com custo equivalente, segundo profissionais. Ou seja, é possível restaurar os dentes com a mesma funcionalidade, melhor resultado estético e ainda proteger a saúde de pacientes, equipe odontológica e o meio ambiente como um todo sem gastar mais por isso.
Segundo dados do Datasus, foram realizadas 708,3 mil restaurações com mercúrio em consultórios públicos de todo o Brasil entre 2020 e 2023. A ampla maioria está no estado de São Paulo, com 351 mil (49% do total). O número é quase 3,5 vezes maior que a soma desses procedimentos nos estados vizinhos da região Sudeste. Nesses mesmos quatro anos, as restaurações com resinas nos consultórios privados paulistas chegam perto de 5 milhões, algo perto de 93% do total.
Negacionismo
Essa triste liderança paulista poderia ter sido revertida. E o estado de SP poderia tomar a dianteira no combate ao mercúrio na odontologia, tornando-se um exemplo. No entanto, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) desprezou essa chance ao vetar, em outubro passado, o Projeto de Lei 1.475/2023, que disciplina a utilização do amálgama. De autoria do deputado Maurici (PT), a lei aprovada em julho de 2023, com votos até de integrantes da base governista, tem efeito imediato na proteção de gestantes, mulheres que estejam amamentando ou em idade reprodutiva. E também de crianças, adolescentes menores de 14 anos, pessoas com doenças neurológicas ou renais, além daquelas com histórico de intoxicação ou mesmo exposição prolongada à substância. O projeto, porém, é mais amplo. Determina um prazo de três anos para a abolição total dessas restaurações de massinha cinza.
Tarcísio desprezou apelos e argumentos de especialistas, pesquisadores, professores universitários, profissionais e ativistas brasileiros e estrangeiros que compõem a Campanha Mundial para uma Odontologia Livre de Mercúrio. E preferiu ouvir a voz apenas das entidades de classe do setor. Aliás, classe profissional que deve ser orientada pelos governos.
Em seu veto, o governador parece raso e confuso em seus argumentos. Cita erroneamente a resolução da Anvisa 171, de 2017, sobre revisão de alterações pós-registro e prazos para produtos já registrados, como se fosse a resolução 173, de 2017. E depois ele também menciona a resolução Anvisa 879 de 2024, que não contempla integralmente a Emenda das Crianças da Convenção de Minamata, como o PL/1475/2023 faz. E o veto também foi determinante para não disciplinar efetivamente o uso de amálgama dentário de mercúrio em São Paulo. Permanece, assim, a exposição continuada de profissionais e pacientes ao metal tóxico.
Tarcísio alega ainda que a “Secretaria da Saúde manifestou-se desfavoravelmente à propositura, assinalando que até o momento não há material no mercado com o custo, acesso, resistência e durabilidade comparáveis”. E que “o material (mercúrio) está caindo em desuso seja por suas características estéticas, ou por exigir maiores habilidades profissionais”. E mais: “que o Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CROSP), em evidente afronta ao princípio da precaução, observa que não há evidências científicas significativas que associem danos à saúde do paciente ou do profissional, se utilizado de acordo com as normas técnicas existentes, e que ainda fundamentam a possibilidade de continuidade da utilização do amálgama de prata”.
Entidades defendem metal tóxico
Após a decisão do governador, o conselho divulgou nota na qual afirma que, junto com a Associação Paulista dos Cirurgiões Dentistas (APCD) e a Associação Brasileira de Cirurgiões-Dentistas (ABCD), “elaborou um dossiê técnico com a participação de professores universitários, representantes do Poder Público e das Câmaras Técnicas e Comissões Temáticas do CROSP, o que foi determinante para fundamentar a justificativa do governo estadual”.
A redação procurou o conselho em busca de uma justificativa para o lobby negativo das entidades junto ao governo, que em vez disso deveria apoiar e proteger os profissionais e os pacientes, principalmente do SUS. Para isso pediu uma cópia do referido dossiê técnico, bem como uma explicação para a suposta segurança do mercúrio dentro da boca das pessoas, já que é reconhecido como altamente tóxico no meio ambiente. Entretanto não houve retorno até a conclusão da reportagem.
Segundo Jeffer Castelo Branco, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e integrante da Campanha Mundial para a Odontologia Livre de Mercúrio, o veto contraria a Convenção de Minamata. Isso porque o tratado internacional, do qual o Brasil é signatário, estabelece que os governos devem informar aos conselhos profissionais a importância da eliminação do amálgama dentário. “E o que temos visto no Brasil é o contrário. Em vez de os governos notificarem os conselhos, são eles que estão fazendo um lobby contrário junto aos governos para não eliminar o amálgama, colocando em risco os seus profissionais e aqueles que buscam serviços odontológicos. A gente gostaria de ter como parceiro o conselho profissional dos dentistas. É preciso que ele venha ao encontro da Convenção e faça o Brasil aprovar leis como a proposta por Maurici”, disse.
Diferentemente do negacionismo do governador Tarcísio, prevaleceu em Peruíbe, litoral sul do Estado, a preocupação com a saúde e o meio ambiente. Em 20 de novembro passado a Câmara dos Vereadores aprovou por unanimidade a Lei Ordinária nº 4587/2024, que restringe a utilização de amálgamas de mercúrio em procedimentos odontológicos. O projeto apresentado pelo então prefeito Luiz Maurício (PSDB), com indicação da vereadora Maria do Socorro Antunes Mendonça (PSD), é muito semelhante ao vetado por Tarcísio.
Além do prazo de três anos para a abolição total dos amálgamas de mercúrio, proíbe as empresas responsáveis pela sua destinação final ambientalmente adequada de comercializar o metal eventualmente recuperado. E as obriga de informar a quantidade, procedência e destinação de cada lote aos órgãos de vigilância sanitária. A lei pioneira no Brasil ainda determina que o poder público municipal estabeleça políticas e programas que favoreçam o uso de alternativas aos amálgamas em procedimentos odontológicos. E que promova juntamente com órgãos e entidades públicas e privadas o esclarecimento e conscientização dos profissionais e estudantes da área de odontologia sobre riscos e perigos do mercúrio, além da promoção de melhores práticas alternativas.
Mercúrio liberado na escovação
A cirurgiã-dentista Magda Siqueira, especialista com certificação internacional e especialista em ozonioterapia, integrou o grupo da Campanha Mundial para a Odontologia Livre de Mercúrio que esteve na Secretaria de Saúde após a aprovação da lei estadual. O objetivo era esclarecer os pontos da lei no sentido de obter apoio para a sanção junto ao governador Tarcísio. Mas segundo ela, durante a visita falou bastante sobre a toxicidade do mercúrio. Para seu espanto, as pessoas ali diziam desconhecer os riscos. “Mas sabiam que havia um parecer técnico de duas entidades dos dentistas em defesa do amálgama”, disse. “O desconhecimento está dentro dessas entidades técnicas também?”, questionou.
A especialista explicou que o perigo dessas obturações é grande. “Estudos apontam que há liberação constante de vapores de mercúrio durante a mastigação, a escovação dos dentes e a ingestão de bebidas quentes. Com isso há uma absorção sistêmica crônica”.
Na avaliação de Magda Siqueira, o uso contínuo no Brasil, especialmente em populações vulneráveis atendidas nos consultórios do SUS, com aval de gestores, contraria princípios constitucionais, a equidade e segurança em saúde pública. E fere diretamente a responsabilidade do Estado na proteção da integridade física, psíquica e ambiental do cidadão.
“O SUS tem a missão e o dever de garantir o cuidado integral, com a inclusão de materiais seguros e biocompatíveis, como resinas compostas, ionômero de vidro e cerâmicas, entre outros. O Brasil é signatário da Convenção de Minamata. É inaceitável que mesmo após 10 anos da assinatura não tenhamos políticas públicas e diretrizes efetivas para a transição segura e protetiva. E nem pessoas e gestores que olhem para esse detalhe”, criticou.
Para a especialista, o fim das obturações de mercúrio é uma questão crucial, tanto que em 2020 foi tema de alerta da agência dos Estados Unidos para medicamentos e alimentos (FDA). Sendo assim, é urgente incluir o mercúrio no currículo dos cursos de odontologia. “A formação acadêmica precisa refletir os avanços da ciência e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Professores têm responsabilidade ética de preparar seus alunos sobre os riscos do mercúrio dental e preparar essa nova geração para práticas éticas e seguras”, disse.
Mulheres e crianças: principais alvos
A assistente social Gleisy Xavier, conselheira tutela em Mauá, no ABC paulista, vê nas restaurações dentárias à base de mercúrio mais um componente da desigualdade social. “É cansativo vivenciar esse racismo institucional. Nós sabemos que o amálgama praticamente só é colocado na boca das mulheres, crianças, adolescentes e homens periféricos. Somos nós que estamos lá na ponta (do atendimento) e que vamos vivenciar isso que está sendo dito aqui. Essa é a verdade”, disse, durante participação na audiência pública na Alesp.
Ela reforçou as críticas a Tarcísio de Freitas. “E esse governo ainda persiste em marginalizar e discriminar a população pobre e preta. Não bastam as polícias nas favelas matando pretos, a gente ainda tem de ter isso em nossas bocas”, disse a conselheira, que defendeu a derrubada do veto e prometeu levar a grave questão para ser discutida em seu município. “São as nossas crianças e nossos adolescentes. Não dá mais para tolerar esse uso. Enquanto tiver mercúrio nas bocas pretas, a gente não vai poder discutir políticas de saúde bucal.”
A cirurgiã-dentista Martha Faissol, integrante da Academia Internacional de Medicina Oral e Toxicologia, aponta o risco elevado do uso de amálgamas de mercúrio para mulheres e crianças em geral. “Ao serem expostas no ambiente de trabalho, seja universidades ou nos serviços de saúde, milhares delas são alvos dos efeitos nocivos que comprometem a função ovariana, desregulam ciclos menstruais, favorecem a menopausa precoce e aumentam o risco de abortos espontâneos”, disse. Segundo ela, 58% dos profissionais da odontologia no Brasil são mulheres.
A especialista destacou que estudos recentes dão uma ideia da gravidade da situação. Mostram altos níveis de mercúrio no leite materno e uma correlação entre esses índices e o número de obturações; o pico de intoxicação em bebês logo após o nascimento, quando passam a receber leite da mãe contaminado; a presença de metal no organismo de mulheres acima do limite recomendado pela Organização da Saúde, mesmo entre aquelas com baixo consumo de peixes, uma outra fonte de exposição e intoxicação. “A bioacumulação de mercúrio favorece níveis letalmente elevados em gestantes, comprometendo diretamente o desenvolvimento neurológico de seus fetos e, posteriormente, prejudicando habilidades motoras, cognitivas e comportamentais. Dizer que esses riscos podem ser tolerados é, no mínimo, um desserviço que ameaça a saúde das futuras gerações”, disse.
Fragilidades no veto
Decorridos seis meses do veto de Tarcísio, a presidência da Assembleia Legislativa de São Paulo, que integra a base governista, ainda não pautou sessão para análise e possível derrubada. Por isso a Campanha Mundial para a Odontologia Livre de Mercúrio se articula nesse sentido. No último dia 23, especialistas, dentistas, estudiosos, lideranças de movimentos sociais e trabalhadores se reuniram em audiência pública no legislativo paulista. Juntos com o autor do projeto, deputado Maurici, discutiram o tema e propostas em defesa da promulgação. Entre elas, uma reunião com o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e com a direção da Anvisa.
Os ativistas e especialistas também têm críticas quanto às resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, especialmente a 879, citada pelo governador. Em seu artigo 1º, o texto diz que “ficam proibidas em todo o território nacional a fabricação, a importação e a comercialização, assim como o uso em serviços de saúde, de mercúrio e do pó para liga de amálgama na forma não encapsulada indicados para uso em odontologia”.
No entanto a mudança não traz proteção, segundo a cirurgiã-dentista Raquel Cembranelli, que pesquisa o tema. “Em 2019 a Anvisa seguiu a FDA e proibiu amálgamas abertas. Mas as cápsulas permitidas contêm o mesmo pozinho, o líquido, e o dentista também tem de agitar, usando um aparelho, de alta velocidade, que gera calor e mais vapor de mercúrio”, contou. Segundo ela, estudos mostram que a abertura de cada cápsula permite o vazamento de 400 microgramas de vapor de mercúrio. “Esse valor é quatro vezes maior que o pico máximo permitido de exposição ocupacional. Ou seja, a adoção das cápsulas não resolve nada; não é melhor que antes”, reclamou, referindo ao antigo preparo manual do amálgama.
“O mercúrio é um líquido volátil, que evapora em temperatura ambiente. E a cada 10º C que aquece, dobra sua volatização. Durante a remoção da massinha, a broca gira em alta velocidade, provocando calor que aumenta a vaporização. E há liberação da poeira de amálgama com partículas menores que um mícron, que é absorvida pela pele, pulmões. O consultório fica infestado de mícrons de mercúrio. Uma lambança sem fim”, afirmou.
Segundo ela, um estudo feito em Porto Rico mostra que essas partículas de mercúrio permanecem suspensas por 36 horas, em níveis acima do limite. “Ou seja, uma cápsula aberta na segunda-feira segue contaminando todos até na quarta. Como são usadas várias ao longo do dia, a pessoa que vai ao consultório fazer um orçamento sai de lá contaminada com o mercúrio que inalou”. E concluiu: “Não pode mercúrio na lâmpada, no termômetro, mas pode na boca do cidadão?”, questionou. Segundo ela, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos estima em uma tonelada a quantidade de mercúrio na boca dos americanos. “Não faz sentido. Há substitutos que não são mais caros e funcionam. Os dentistas são os profissionais mais expostos ao mercúrio”.
Outro pronto criticado na resolução 879 é o artigo 2º, que determina que “as notificações de produtos constituídos por liga de amálgama na forma encapsulada para uso odontológico deverão indicar, como advertência, que não são recomendados para uso em gestantes, lactantes e na dentição decídua (em indivíduos de até 15 anos de idade). “Notificações? Isso é um produto tóxico. Tem de ter registro. Notificação é para produtos que não são perigosos. É o primeiro detalhe nessa resolução que eles falham e a gente precisa corrigir isso”, destaca Jeffer Castelo Branco.
Ele aponta outra incorreção no mesmo documento, quanto à interpretação inadequada da Convenção de Minamata. “A resolução falha também ao dizer que em crianças até os 15 anos, os únicos dentes que não podem receber amálgama são os de leite. A convenção diz que não pode em nenhum dos dentes até os 15 anos”. Segundo o pesquisador, “a resolução é caótica, está em desacordo com a convenção internacional e por isso precisa ser consertada.”
A reportagem procurou a assessoria da Agência Nacional de Vigilância, que não respondeu até o fechamento.
Expectativas
Na avaliação do deputado Maurici, o governador Tarcísio não discute o mérito do projeto em seu veto. “Ao contrário, destaca que a matéria tem alta relevância para a área de saúde. E alega que se contrapõem às normas da União, no caso específico, da Anvisa. No entanto, a Constituição Federal faculta aos Estados a criação de leis que complementem ou aprofundem as normas gerais da União, especialmente quando são mais restritivas”, disse o parlamentar.
Segundo lembrou, este foi o entendimento da Comissão de Constituição e Justiça da Alesp que aprovou parecer, ressaltando que, “no que atine à constitucionalidade da proposta, não há qualquer ofensa de cunho material ou formal que venha a impedir a regular tramitação da proposta”.
Maurici acredita na possibilidade de reverter a decisão. Isso porque há um precedente em tema semelhante. Em 2013, um Projeto de Lei similar, do ex-deputado Marcos Martins (PT), proibindo instrumentos contendo mercúrio, como aparelhos de pressão e termômetros, foi vetado pelo Poder Executivo. “Porém, ao reexaminar o projeto, as comissões de Constituição e Justiça e de Meio Ambiente recomendaram a sua aprovação, o que foi seguido pelo Plenário, convertendo em lei o Projeto na Lei nº 15.313/2014, que está vigente e não sofreu contestação de constitucionalidade por parte do Executivo”, lembrou. “Então, a perspectiva é que, ao examinar vetos do governador com base nos precedentes e no posicionamento favorável já fixado, o veto será derrubado em favor da saúde da população e da preservação ambiental.”
Amálgama: alvo da vez
A luta pelo fim do amálgama já dura décadas. Mas se acirrou com a assinatura da Convenção de Minamata. Ratificada por mais de 140 países, busca eliminar o metal tóxico dos produtos, serviços e processos em todo o mundo. Neste ano chega ao fim o prazo para eliminação de todas as indústrias de cloro e soda que utilizam células eletrolíticas de mercúrio. De acordo com Castelo Branco, o processo de descomissionamento dessas indústrias já começou. “Tivemos rios e populações ribeirinhas contaminadas. Agora é hora do amálgama dentário, setor que mais usa mercúrio no mundo”, destacou. Segundo ele, o amálgama responde por 341 toneladas do metal colocadas anualmente no planeta por causa do uso na odontologia.
As discussões para a Convenção de Minamata começaram em 2010, após a constatação que a quantidade de mercúrio na atmosfera havia sextuplicado em algumas partes do planeta. O acordo foi assinado em 2013, entrou em vigor em 2017 e o Brasil promulgou em 2018. Um acordo anterior, a Convenção de Estocolmo sobre poluentes persistentes, que já poderia ter incluído o mercúrio, foi assinado em 2001.
Segundo Castelo Branco, que preside a Associação de Combate aos Poluentes (ACPO), dentistas de várias regiões relatam dificuldades de dar destinação ao amálgama tóxico. Isso porque as cidades sequer contam com serviço adequado para essa finalidade. E há outro detalhe: o mercúrio cuspido pelos pacientes durante o tratamento ou remoção vai para o esgoto. “Alcança a rede pública e contamina córregos e rios, afetando toda a vida aquática, marinha, como a gente tem visto em vários estudos”, disse. “Há inúmeras pesquisas de qualidade que associam o mercúrio ao Alzheimer, Parkinson, Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), Transtorno do Espectro Autista, doenças do pulmão, fígado, rins, da pele. E o SUS, possivelmente, arcando com toda essa despesa, que vem da exposição ao mercúrio contido no amálgama.”
Saiba mais sobre as intoxicações causadas pelo mercúrio usado nas restaurações
A intoxicação pelo mercúrio, o mesmo que é usado nos amálgamas dentários pode ser aguda – desencadeada por grande quantidade de vapores de mercúrio em um curto período – ou crônica, devido ao acúmulo de partículas no organismo pela exposição prolongada e contínua.
Na intoxicação aguda as vias aéreas são afetadas, causando irritação brônquica, bronquite erosiva, pneumonia intersticial difusa com dor torácica, falta de ar, tosse, hemoptise (expectoração de sangue), cianose (coloração azulada em várias partes do corpo), taquipneia (alteração na respiração) e edema pulmonar, que podem levar à morte. Há também intoxicação nos rins, irritação de mucosa da boca, náuseas, diarreia, fadiga, fraqueza, letargia e câimbras abdominais. Por isso esses sintomas exigem atendimento imediato.
Já na intoxicação crônica pode haver sintomas isolados ou simultâneos. Eles são agrupados em:
Síndromes no sistema neurológico – Geralmente aparece em toda pessoa intoxicada porque ao penetrar no Sistema Nervoso Central, o mercúrio se liga a proteínas e dificilmente se desprende delas. Por isso se propagam localmente e também no sistema periférico. Os problemas causados geralmente deixam sequelas. Os tremores são os sinais mais comuns e característicos da intoxicação. Mas há ainda cefaleia, insônia, nervosismo, vertigem, debilidade, mal estar, dores nas articulações e musculares, contrações musculares involuntárias, descoordenação motora, movimentos involuntários dos olhos, dismetria, dificuldade de realizar movimentos rápidos e alternados, de equilíbrio e de caminhar, nevralgia, parestesia, ardência nos pés, polineuropatia, visão borrada, hipertonia muscular com reflexos de postura exagerados, câimbras, paralisia flácida, voz monótona, arrastada e hesitante, com mudança de linguagem, gagueira e dificuldade de pronúncia, timidez. Há ainda encefalopatia difusa crônica, com redução das funções manifestada por mudança de personalidade, rigidez, movimentos involuntários, redução na função motora, incapacidade de se manifestar por gestos e sinais, marcha incerta e vacilante, ausência de reflexos, de recuperação do equilíbrio e fraqueza muscular. “Essas alterações neurológicas podem ser progressivas e piorarem após cessada a exposição. É o que a gente tem percebido no atendimento a trabalhadores expostos”.
Síndrome neuropsíquica ou eretismo psíquico (conjunto de alterações comportamentais) – “Pode começar com sintomas suaves, que vão se somando a outros até o embotamento intelectual, até a demência”, disse a médica Cecília Zavariz, que há décadas estuda o assunto. “Como o caso de pessoas que não podiam sair de casa sozinhas porque não sabiam voltar, se perdiam, não sabiam onde estavam e nem mesmo o seu endereço”, disse Cecília.
O quadro é caracterizado por sintomas como irritabilidade, ansiedade, mudanças de comportamento, apatia, perda da auto-estima e de memória, depressão, insônia, delírio, cefaléia, dores musculares e tremores. Pode haver também hipertensão arterial, problemas renais, imunológicos e alérgicos. Isso porque a síndrome pode acometer outros órgãos e sistemas, como o imunológico, enzimático, endócrino, visual e cardiovascular. Assim pode afetar a pele, fígado, pulmões e o ciclo reprodutivo, além de provocar abortos espontâneos, baixo peso ao nascer e anomalias congênitas.
Síndrome no sistema digestório (sabor metálico, sensibilidade, inflamação, edema e sangramento gengival, linha gengival azulada/acinzentada, necrose alveolar, halitose, afrouxamento e queda de dentes, irritação e ulceração de mucosa oral, palato, gengiva e língua, salivação excessiva, dor à mastigação e dificuldade para engolir, faringite, inflamação da língua, hipertrofia de glândulas salivares, saburra das vias digestivas, náuseas, vômitos, dor epigástrica, gastrite, duodenite, indigestão, diarreia, anorexia, emagrecimento, fadiga excessiva, fraqueza muscular, debilidade.
De acordo com Cecília, o diagnóstico é complicado porque não há exame específico e os sintomas variam de indivíduo para indivíduo e podem ser atribuídos a outras patologias. “O médico vai pensar em mil e uma doenças, e não na intoxicação crônica por mercúrio. Por isso é preciso uma anamnese muito profunda, esmiuçando o histórico laboral da exposição, além de avaliações oftalmológicas, psiquiátricas, neurológicas e neuropsicológicas para verificação de funções cognitivas (memória, atenção, concentração, raciocínio, abstração e linguagem), motoras (coordenação motora, rapidez de movimentos e precisão na execução de tarefas, capacidade/habilidades construtivas e visuoespaciais – usamos para controlar a possível distância entre dois objetos), além de estados afetivos. São feitas entrevistas psicológicas e aplicação de testes. A depressão é um dos sintomas mais comuns no exposto ao mercúrio.
Segundo ela, o prognostico é desfavorável quando a intoxicação atinge certa gravidade. Nos casos leves, pouco a pouco, ao longo de vários anos, o quadro pode reverter se a exposição ao mercúrio for interrompida. Pode também ocorrer um quadro intermitente, com período em que os sinais e sintomas se exacerbam, alternando-se com períodos de intoxicação latente. Alguns chegam a desaparecer temporariamente. Mas nos casos moderados e graves o quadro é irreversível e tende a piorar com o tempo.
“Em resumo, a intoxicação crônica pode ser ou se tornar grave, irreversível, incurável, incapacitante, penosa e ‘infelicitante’. O único caminho é a extinção do uso do mercúrio em quaisquer de suas formas químicas, pelo bem da saúde e do planeta. Cada grama lançada no ambiente causa o acúmulo de toneladas de problemas deste metal tóxico, que não se degrada e pode mudar para outra forma química ainda mais agressiva, o mercúrio orgânico”, disse a médica.
Outro pesquisador do tema, o dentista Rodrigo Venticinque alertou sobre outras situações problemáticas: como exemplo, alterações genéticas que podem afetar a capacidade do organismo em eliminar o mercúrio, além de outros metais pesados. É o caso da APOE4, uma variante da enzima CPOX4, que desempenha um papel importante na síntese da hemoglobina e na produção de energia das células. E ainda a glutationa GSTS, uma família de enzimas com papel crucial na desintoxicação celular, entre outras variantes.